30 junho 2008

encantamento

Quando viemos para Berlim, a Christina inscreveu-se num projecto de musical que tinha quase tudo aquilo de que ela gosta: cantar, dançar, representar.
Ao longo dos meses o entusiasmo foi esmorecendo. Porque queria os sábados para fazer outras coisas, a organização estava terrível, as amigas começaram a abandonar.
Dissemos-lhe que não se deixa a meio um projecto destes, e ela foi continuando apesar da pouca vontade.
No sábado passado foi a primeira - e última - apresentação.
Ela estava aflita, com medo das luzes da ribalta e do tremolo na voz, preocupada com a impressão que o grupo, uma mistura aleatória de crianças de todas as idades e capacidades, daria. Mas foi, e nós fomos ver, preparados para lhe aparar a frustração e aplaudir como pais extremosos.

Às vezes o Matthias vem-se-me entregar em flagrante de uma admiração maior que qualquer instinto de concorrência: "a Christina canta mesmo muito bem, já reparaste?".
Sim, já tinha reparado. Quando ela se esquece de tudo e se entrega ao prazer de cantar pela casa. Quando se junta com amigas e uma guitarra. Quando, em momentos avulsos, o Matthias interrompe o que está a fazer, começa a compor um ritmo feito de palmas e castanholas, e a Christina, quase a sair para outro rumo, volta atrás e o olha com uma intensidade especial, e canta, Amy Winehouse, por exemplo, sem tirar os olhos do irmão. E eu espectadora desta espécie de cordão umbilical que os une sem passar por mim.

Sabia que ela canta muito bem, mas não estava preparada para ouvir a sua voz sem microfone a sobrepor-se ao acompanhamento do piano de cauda. A chegar segura, cheia e bem modulada a todos os cantos daquela sala enorme.
Sussurrei ao Joachim: "estamos a morrer de orgulho porque é a nossa filha, ou porque é mesmo boa?"

"Porque é mesmo boa", confirmaram outros pais, e até me deram o contacto de uma professora de canto.

Ontem fomos assistir à final do campeonato numa praça pública, a quase 4 km de casa. Um casal veio ter connosco: "ah, vocês são os pais daquela miúda que canta bem!"

***

Estes filhos que vêm através de nós, atravessam a nossa vida, e inventam para o seu caminho cores que nem somos capazes de sonhar - alguma vez lhes saberemos dizer como nos sentimos privilegiados pela partilha dos dias?

21 junho 2008

Nostalgia

Porto, pelas oito da manhã.

Entrava na catedral ainda adormecida na penumbra. Passava a cancela do
altar-mor. Abria uma porta e passava por um corredor escuro, cheio de quinquilharias mais ou menos partidas e ali esquecidas num século qualquer. Subia as escadas estreitas, percorria novo corredor, agora em sentido inverso. Ligava o fole eléctrico, entrava no varandim do orgão setecentista, experimentava os registos, escolhia os mais suaves.

Começava a tocar: primeiro a escala harmónica "ai meu deus, duas quintas
paralelas não pode ser, e agora fá M ou ré m?, deixa-me começar de novo
".
Depois, as invenções de Bach a duas vozes, as que conhecia bem, os dedos a
dançar sobre o teclado uma coreografia evidente. Ensaiava em seguida um Buxtehude, engenho e arte a suar as estopinhas.

Os acordes misturavam-se com os reflexos dos vitrais pelo chão, pediam
silêncio aos primeiros turistas do dia.

Ao fim de uma hora, fechava a tampa do teclado, desligava o fole, passava o
primeiro corredor, descia as escadas, pela milésima vez resistia à tentação
de roubar a tal jarra renascentista só um bocadinho rachada, fechava a
porta à chave, atravessava a catedral, saía para a rua.

Ficava por ali uns momentos, a saborear o sol espalhado pelos telhados,
pelas clarabóias em festa: Sé, Barredo, Miragaia, Alfândega. O rio, do outro
lado as caves de vinho do Porto e o mar lá longe. Os ruídos do mercado da
Ribeira e da Rua Escura... Pedaços entrecortados de conversas feitas aos
gritos, cheias de provocações amigáveis ("ó meu murcom-e, bai coçar esquinas
prá tua rua!", "benho práqui ajudar-te que tu nem as esquinas coças bem
").

Descia a rua tentando disfarçar o riso.

Depois ia para o trabalho.

Às vezes tenho saudades do tempo em que os meus dias começavam assim.



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Mas hoje não. Hoje chegam amigos de ainda antes do tempo em que os meus dias começavam assim. Alegria!

Deixo então este blogue por uns dias com uma tabuleta à porta:

FECHADO PARA AMIGOS

(e é bem verdade que o português é uma língua muito traiçoeira!)

20 junho 2008

momento cultural

Visitas de Portugal.
Levei-as à Filarmonia, assistimos a um concerto para famílias com o Scharoun Ensemble.
A Christina não quis ir, disse que o dia estava demasiado bonito para ficar dentro de uma casa.

Sentado na frente do palco, um actor lia os contos: "The mask of the red death", de Edgar Allan Poe, para a música de André Caplet, e o conto francês "Ma Mère l’Oye" para a música de Ravel.

Um encanto: não apenas as composições e a excelente interpretação daquele punhado de músicos da orquestra filarmónica, mas também - e sobretudo - o actor, belo pedaço de homem, que na leitura punha muito humor e uma pontinha de ironia, e depois, enquanto o ensemble tocava, nos olhava com um sorriso plácido e os olhos brilhantes.

Na viagem de regresso, o actor sentou-se ao meu lado no metro.
De modo que eu cheguei a casa e contei logo à Christina o magnífico momento cultural que tinha perdido.

***

Adenda, oferecida pela Rita (obrigadinhas, Rita, todas as que lemos este blogue agradecemos em coro!):

19 junho 2008

Gretchenfrage

"Gretchenfrage", para quem não sabe ler o wikipedia em alemão, é uma pergunta directa, que obriga a uma tomada de posição, e à qual se tem tentado fugir.

Jürgen Habermas sugeriu que se coloque na Europa a "Gretchenfrage".

Ora nem mais, e sugiro o seguinte:
O Tratado entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009.
Nesse mesmo dia, faz-se simultaneamente em todos os países da União um referendo com esta pergunta: "quer o seu país dentro da União regida pelo Tratado de Lisboa?"
Este Tratado permite a saída da União, de modo que os países que votarem contra podem sair imediatamente, sem terem de se submeter a regras com as quais o seu povo não concorda.

Coloca-se a Gretchenfrage, responde-se, ficamos esclarecidos. Em vez de andarmos a perder tempo com tiradas demagógicas sobre a democracia europeia.

Se a maior parte dos países preferir sair da União a continuar nela nas bases do Tratado, é sinal que isto estava realmente tudo muito errado, e de facto não valia a pena.
Se forem apenas alguns países, tanto melhor: separadas as águas, avançamos todos mais facilmente - cada um na direcção que entende melhor para si.


PS. Alguém tem o número de telefone do conselho de ministros de hoje à noite? Ou alguém pode fazer um cartaz a propor isto, para mostrar durante o jogo de futebol Portugal-Alemanha? A Angela Merkel já disse que iria com o Sócrates espreitar o jogo volta e meia...
(mas fez uma piscadelazinha de olho, não sei como interpretar aquela piscadelazinha)
(este parêntesis foi só para evitar que amanhã venha na primeira página de algum jornaleco português o escândalo "Sócrates interessa-se mais por futebol que pelo futuro da União Europeia!")

a estupidez matemática de 27 referendos nacionais

Este é o título de um post muito interessante no Klepsydra, ao qual cheguei via Imagens com Texto.

E mais um: o NÃO ultra-liberal e atlantista da Irlanda.


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Foi no mesmo blogue que li um dos slogans mais fantásticos desta campanha:
"European Union has been great to Ireland, why change? Vote No!"

Mas há outros:

- um cartaz onde se faz referência ao chumbo da canção irlandesa para a Eurovisão: "They didn't vote for us. Get them back. Vote No to Lisbon."

- um cartaz onde se vêem os célebres macacos: "The new EU won't see you, won't hear you, won't speak for you."

- ou a mensagem dos anarquistas: Have They Ever Lied To Us Before? ---- If You Trust Liars Vote Yes.

- "no way, we won't pay" - este dava um belo ensaio sobre humor irlandês

- e o melhor de todos: "If you don't know, vote no."

Que valor tem o resultado de um referendo em que as pessoas que não sabem, em vez de se informarem, votam "não"?

Mais uma retumbante vitória para a Democracia na Europa...

18 junho 2008

Tratado de Lisboa - um ponto da situação

A Europa dos 27 precisa urgentemente de um novo conjunto de regras, sem o qual não pode funcionar com eficiência.

A Constituição, que deveria ter entrado em vigor em Novembro de 2006, foi chumbada por referendos.

A Constituição, como o Tratado de Lisboa, não foi obra de um ditador escondido na sua torre. Foi o resultado de um tremendo esforço para equilibrar os interesses dos 27 membros da União. Foi criada e discutida não apenas pelos temidos e odiados eurocratas, mas também pelos legítimos representantes políticos de cada país.
Duvido que, se este processo tivesse sido mais democrático, sendo o texto escrito por uma assembleia constituinte, os seus conteúdos fossem divergentes dos do texto de que dispomos actualmente (não estou a falar da complexidade na formulação, estou a falar dos conteúdos).

Dado que a Constituição (ou o Tratado) já é o resultado de um enorme e difícil esforço de convergência dos 27, não se pode perguntar por referendo se cada país concorda com o texto, porque isso obriga a retomar ad infinitum as discussões com os restantes 26. Não se pode votar o texto, mas pode-se votar a adesão do país ao grupo que aceita esse texto.

Se a pergunta do referendo não fosse "Approuvez-vous le projet de loi qui autorise la ratification du traité établissant une Constitution pour l'Europe?" mas "quer que o seu país faça parte de uma União onde esta Constituição vigora?", acredito que os resultados seriam bem diferentes. Especialmente se alguém se desse ao trabalho de fazer uma tabela simples a comparar o funcionamento da Europa "antes" e "depois" da aprovação desse texto.

Como a Constituição não passou e a Europa precisa urgentemente de regras novas, criou-se o Tratado, que devia entrar em vigor em Janeiro de 2009. Foi um truque pouco democrático? Foi. Mas quais eram os seus objectivos? Mais democracia e mais eficiência para a União, escapando às jogadas palacianas de cada país - essas sim, nada democráticas.

Foi um erro, vejo agora. Devia ter-se feito um referendo em todos os países a perguntar isto: quer uma Europa cada vez mais unida e com regras que a tornem viável, ou uma a várias velocidades e, nesse caso, o seu país deve pertencer ao núcleo duro ou à periferia?

Uma vez realizado esse referendo, os países do núcleo duro recomeçariam tudo de novo, criariam uma assembleia constituinte para escrever o texto, que seria levado a discussão nos países, e far-se-ia um referendo global para aprovação dessa Constituição. Perder-se-iam anos, para ganhar concretamente o quê?
Isso que se quer ganhar está irremediavelmente perdido se este tratado for aprovado agora pelos representantes eleitos de cada nação e entrar em vigor em Janeiro de 2009?

Este tratado desloca o poder da oligarquia de Bruxelas para a democracia de Estrasburgo, para os parlamentos nacionais e para os cidadãos. Pode ter começado de forma pouco democrática, mas o seu resultado é mais democracia do que a que existe actualmente. Além disso, permite a saída dos membros - nenhum país fica obrigado a aceitar um status quo com o qual não concorda.

Pode dizer-se que o tratado não foi referendado nos outros países, e que se houvesse mais referendos haveria mais chumbos.
Mas um referendo não é a única forma de protesto. Onde estão as manifestações de rua? Onde estão as primeiras páginas de jornal a avisar que na Europa está a ser perpetrado um golpe de Estado nos bastidores das secretarias? Onde estão os debates ao rubro nos Parlamentos? Em que países há sinais de que este tratado causa um profundo mal-estar?

A minha proposta:
- o tratado entra em vigor em Janeiro de 2009 para os países que o aprovarem
- os países que não o aprovarem passam para uma segunda liga, e vão discutindo ao ritmo que quiserem os mecanismos de excepção que querem para si
- nos países que aprovarem o tratado sem referendo, e onde se notar muita resistência a essa escolha, faz-se um referendo: quer permanecer no núcleo duro ou prefere passar para a periferia?


***

Uma outra questão, só para provocar: pelos vistos, a Irlanda rejeitou o tratado por medo de perder autonomia em questões tão importantes como o casamento dos homossexuais e o aborto. Será que a União Europeia quer no seu seio um membro que entende ser obrigação do Estado complicar a vida aos casais homossexuais e criminalizar as mulheres que abortam?...
(por estas e por outras é que nunca chegarei a Presidente da Comissão)

17 junho 2008

declaração de desinteresses

O tratado de Lisboa não me interessou muito até Domingo passado.
Parti do princípio que o simples facto de ter sido feito por pessoas nomeadas pelos respectivos países e ter sido arduamente negociado pelos representantes políticos dos 27 países da União seria uma garantia para o equilíbrio dos diversos interesses.

Se os governantes portugueses acham que o tratado está suficientemente bem para Portugal o aprovar, eu vou por eles, e não preciso de um referendo.

O único referendo que me parece lógico fazer, a propósito da Europa, é este: "quer mais Europa ou menos Europa?"
Eu quero mais Europa.

Mas se é para falar do tratado, aqui está "O Tratado em Poucas Palavras". É breve e simples. Vão lá, leiam, informem-se, e depois digam-me que parte disto é mentira, que parte disto significa um recuo democrático, e que parte disto é contrário aos interesses de um país concreto. E os eventuais medos que vos possam ocorrer, mas desta vez baseados em factos, sff.


Adenda (em 20.06.08)
Não me pronunciarei sobre o que penso do carácter daqueles que usaram uma frase deste post para fazerem gracinhas do género "respeitinho" e "outra senhora".
A quem seguiu o link, agradeço ter-se dado ao trabalho de ler a frase no seu contexto.

Surpreende-me esse reflexo pavloviano de desconfiar por princípio do governo.
Por onde vai a Democracia Portuguesa?

Lógica hilariante:
- se uma pessoa vota "não" num referendo, porque não se deu ao trabalho de se informar, é um magnífico sinal de Democracia;
- se uma pessoa vota "sim" num referendo, porque não se deu ao trabalho de se informar mas confia que um texto disputado arduamente pelos representantes democráticos dos 27 países envolvidos terá atingido o melhor ponto de equilíbrio possível, é um sinal de "respeitinho".

Tenham juízo.

para que serve a Europa?

A propósito da nossa Europa, aqui vai mais um artigo, que, como de costume, traduzi rapidamente e abreviei em parte. É de Stefan Kornelius e foi publicado no dia 16.06.08 na Süddeutsche Zeitung. O original, em alemão, pode ser lido aqui.



Não é fácil definir com precisão como é que a Europa desapareceu das cabeças. Em compensação, é facílimo determinar como é que poderia ter entrado nelas: o Muro caiu em 1989, o euro chegou em 2002, em 2004 e 2007 o alargamento trouxe a aproximação jurídica de regiões que, desde a separação religiosa na Idade Média, cresceram como Ocidente Cristão, por oposição à Igreja Cristã do Oriente.

A união europeia de 27 nações, ou seja, a união política, económica e monetária que cria uma região de paz e prosperidade, é um feito histórico único nesta parte do mundo, que ao longo dos séculos se entregou à auto-dilaceração e a devastadores jogos de poder.

Os cidadãos europeus deixaram de se dar conta disso: a guerra está muito longe, tal como a pobreza. Na Europa, pela primeira vez desde há séculos, nascem crianças no seio de estruturas familiares que não foram atingidas por conflitos militares. Esta é a primeira geração que pode crescer junto aos pais e aos avós sem a ameaça e a dor da guerra. Há apenas uma geração não havia família alguma que não tivesse perdido um dos seus membros nas tragédias do continente europeu.


Palavreado sentimental? Tomar, por compaixão, o partido de Bruxelas? Não. Esta abordagem histórica permite a distância suficiente para mostrar aos eleitores irlandeses a responsabilidade que tinham em mãos quando escolheram o "não".
862 415 cidadãos irlandeses contra 752 451 cidadãos irlandeses queriam decidir se uma dinâmica histórica de 490 milhões de europeus pode atrofiar; ou seja, se no dia 12 de Junho de 2008 a Europa já atingiu o seu grau máximo de unidade, ou se se pode validar um guia moderno com instruções de uso para a coexistência de 27 Estados no séc. XXI.

É disto que se trata: a Europa tem uma visão positiva? Existe vida para lá da estreiteza dos nacionalismos que tantas desgraças provocaram ao longo da História? Ou será que a integração chegou ao fim? Será que esta votação irlandesa marca a inversão da tendência, a favor do Estado nacional, que por enquanto triunfa em silêncio nos bastidores, mas em breve pode mostrar a sua face grotesca, quando lutar por barris de petróleo ou afastar ondas de refugiados? É fácil criticar os políticos por não explicarem o tratado ou por serem incapazes de conquistar a simpatia dos cidadãos para esta causa.

Mas talvez se possa também criticar os cidadãos europeus, que não fazem caso do complexo edifício político que os envolve. O cidadão prefere acreditar nos políticos populistas que lhe asseguram que é possível simplificar. Aí temos um tratado extremamente complexo, uma obra-prima da mecânica política, equilibrando 27 nações, 27 sensibilidades nacionais e relações de maioria, 27 comissários, 785 deputados europeus e centenas de milhares de vozes populares, interesses de lobbies e gente que pensa que sabe tudo melhor. Um tratado que traz mais democracia, mais participação, mais controle. O tratado de Lisboa desvia parte do poder de Bruxelas para os eleitores - mas exige também mais interesse da parte destes.


Será que a uma obra tão complexa se pode dizer apenas "sim" ou "não"? O governo irlandês cometeu um atentado ao acreditar que poderia reduzir o largo alcance de tal reforma a uma alternativa tão simples. O tratado de Lisboa era o remate obrigatório de uma onda de alargamento que unificou a Europa no fim da guerra fria. As regras necessárias ao funcionamento de 27 Estados são diferentes daquelas de que 15 Estados precisam. O alargamento foi, até agora, o objectivo central da União Europeia, quase se diria a sua razão de existir. Agora, que o brilho da União está a esmorecer e a sua capacidade de atracção diminui, põe-se ao clube dos 27 a questão do sentido desta unidade.

Para que quererá mostrar os músculos? A favor de ainda mais Estados, que - como as nações dos Balcãs - necessitam da ordem europeia para poderem viver em paz? Quererá mostrar a sua força num mundo económico cada vez mais rude, um mundo que escreve as suas próprias leis se o deixarem? A Europa tem de decidir se tem força para mais do que o seu próprio alargamento. E por isso precisa deste tratado de Lisboa.


A Europa não se pode deixar travar por estes 862 415 irlandeses. O governo irlandês devia estudar os tratados, satisfazer a vontade do seu povo e iniciar de moto próprio uma fase de abstinência. Porque a Europa está ainda muito longe de ter chegado ao fim da sua História.



***

Apesar de alguns exageros, como por exemplo aquela história de todas as famílias europeias estarem atingidas pela guerra há apenas uma geração, e de não fazer referência ao problema do défice democrático no actual funcionamento da UE, faz uma abordagem fundamental para exigir responsabilidades a quem acha que pode usar a Europa para os seus jogos de capelinhas.

se a Europa agora for a duas velocidades...

Se a Europa agora for a duas velocidades, o que me faz pena é que ninguém avisou os irlandeses - os que perverteram o debate com demagogia, os que votaram e os que não votaram - que o resultado do referendo podia ter consequências graves para o seu país...

censos

Estatísticas à moda de uma transversal do Ku'damm: em Berlim existem grandes comunidades de todos os países que participam neste europeu de futebol.
Todos os dias tem havido festa da grande.
Mas a maior comunidade de Berlim, maior ainda que a turca, é a alemã.
À uma da manhã ainda havia buzinas.

16 junho 2008

referendos

Um dos melhores artigos que li sobre o "não" irlandês ("Schluss mit der Rosinenpickerei", de Gerd Appenzeller, aqui) dizia isto:

Um dos países mais pobres da Europa transformou-se, graças ao esforço do seu povo e aos milhares de milhões recebidos, numa economia forte e saudável. Uma minoria de eleitores desse país inviabilizou o tratado de Lisboa. As reformas urgentes dos processos de decisão desta união de 27 países terão de ser adiadas. Os irlandeses impediram aquilo que o tratado pretendia obter: uma maior democratização dos processos europeus.
Mas não podemos dramatizar. Os irlandeses limitaram-se a fazer o mesmo que os franceses e os holandeses, quando rejeitaram Nice. Os referendos sobre a Europa têm sido utilizados para protestar contra problemas políticos, económicos e sociais internos. Por outro lado, tem havido uma prática perversa dos políticos de atribuir ao seu governo as evoluções positivas e a Bruxelas tudo o que provoca contrariedade. De modo que os irlandeses, numa altura em que a economia do seu país dá sinais de estar em abrandamento, culpam a Europa e acusam o tratado de Lisboa de facilitar a prostituição e o aborto.
Que as pessoas sejam capazes de acreditar em tanta palermice é também resultado do comportamento dos eurocratas e, não raro, da arrogância dos políticos europeus - e isso diz respeito a todos, não apenas à Irlanda.
O texto dos tratados (quer o de Lisboa, quer o de Nice) é muito extenso e quase incompreensível. A complexidade do texto sufoca a vivacidade central do projecto europeu. O que resulta é um texto que ninguém consegue - nem quer - ler.
O que é irritante neste enfado europeu é o esquecimento de que devemos à Europa muito daquilo que hoje é para nós algo normal: desde a liberdade de viajar e de estabelecer uma empresa em qualquer país, à de escolher o país onde se trabalha ou se estuda.
A Europa corre o risco de ter o destino de muitas empresas familiares: a primeira geração criou as fundações, a segunda alargou a construção, e a terceira dá cabo da herança.
Que a base da União é o princípio de dar e receber é um facto que interessa a poucos, como se vê agora nos irlandeses, que dizem "não" com os bolsos cheios.
Chegou o tempo de considerar seriamente uma proposta feita por políticos da CDU há quase uma década e meia: precisamos de uma Europa a duas velocidades, um núcleo europeu com países que se articulam de forma muito coesa, e à sua volta um conjunto de países com todo o tempo que precisarem para discutir se querem ou não fazer parte deste núcleo. Também na Alemanha, na França e nos países do Benelux há resistências contra a crescente perda das competências nacionais. Mas estes Estados - e quem mais quiser fazer parte do grupo - não podem continuar a ser travados por aqueles que do bolo só querem as passas.

***

Vê-se bem que o Eduardo Pitta estava na Alemanha quando soube a notícia do resultado do referendo na Irlanda: "A Irlanda deve ir à sua vidinha. Tão simples como isto."
Foi essa a primeira reacção de muitos políticos alemães: uma Europa a duas velocidades.
O que é uma coisa fácil de decidir quando se tem a certeza que se vai no pelotão da frente. Para os países mais pequenos, que temem ser carne para o canhão europeu, há medos que têm de ser desfeitos.


O Lutz, que é alemão mas tem andado em estágio em Portugal, faz uma análise mais cuidada (vale a pena ler o post todo):
Devemos agradecer aos irlandeses ter nos dado, em cima da hora, talvez a última oportunidade para colmatar a ineficiência e o défice democrático da União.
Proponho criar uma Assembleia Constituinte, ocupada de forma proporcional por representantes de cada país membro, que elabore a constituição, não mais complicada nem menos clara do que outras constituições de outros países. Uma que dote instituições comuns com poderes verdadeiros, sujeitos ao escrutínio directo de todos os eleitores comunitários.
Depois, cada país a referende, com o efeito de quem a rejeitasse, ficaria fora. Ponto final.


Nos comentários desse post, o MP-S, que é português mas tem andado em estágio na Alemanha, acrescenta alguns pontos interessantes:
(...) Por fim, cada pais poderia decidir (por referendo ou outro processo que entenda melhor) se aderiria ou nao ao projecto. Quem nao o quisesse fazer, deixaria de participar nos processos de decisao politica da Uniao.
(...) O voto nestes referendos e' muito 'barato'; os votantes votam de forma 'leviana' porque a percepcao generalizada e' a de que as consequencias praticas sao quase nulas e/ou muito longinquas no tempo. O pessoal vota para chatear porque sabe que a UE vai continuar mais ou menos na mesma, nao se vai dissolver, nem nada de remotamente perturbante ira' acontecer em resultado da eleicao. Ate' ver
....

E eu, que só sei o que sou realmente, e sem margem para dúvidas, quando a Alemanha joga contra Portugal, acrescentei lá o seguinte:

Proponho uma nova regra para a realização dos referendos: só pode votar quem passar um exame para provar que sabe o que está a ser referendado.
Um exame cujas perguntas e respostas tenham sido previamente divulgadas nos meios de comunicação social.

heróis do mar, nobre povo

Agora que voltamos a ouvir com frequência o hino nacional, seria boa ideia aproveitar para fazer um brain storming e mudar algumas coisas.

Gosto da primeira parte. Até aos "egrégios avós que hão-de levar-te" vai tudo bem.
"Levar-te à vitória" também é aceitável, sobretudo tendo em conta que o hino é muito usado antes dos jogos de futebol.
É um caso de sentido de oportunidade, passa.

Mas o resto, santa sapiência, tem de ser mudado.
(Já contei isso aqui na altura do mundial de futebol: ensinámos aos miúdos a letra do hino alemão; depois, quando lhes ia ensinar o português, cheguei à parte das armas e eles perguntaram: "tu estás a gozar, não estás?!")

"Às armas, às armas, sobre a terra e sobre o mar" agora, com os submarinos do Paulo Portas, deve passar a ser: "sobre a terra e sob o mar".
E aquele fim, em jeito de coda, "contra os canhões marchar marchar", é ultrapassado. Que canhões? Há que anos que já não se usam canhões! E quem é que hoje em dia se sujeita a marchar contra canhões? Isso era no tempo das invasões francesas, a táctica da guerra entretanto já mudou um bocado.
A não ser que se trate outra vez de linguagem codificada do futebol, mas, convenhamos, nem tudo pode ser futebol no nosso hino.

E não me digam que os franceses assim e assado. Depois podemos tratar do hino francês, mas de momento o que me preocupa é o nosso.


Assim, aqui abro oficialmente um concurso para melhorar os últimos versos do nosso hino.


As minhas propostas:


1. Roubada a Fernando Pessoa:

(...)
que hão-de levar-te à vitória.
Dê sopro, ou ânsia
que-a chama do-esforço remoça,
de novo lutemos
pra conquistar a Distância--

do mar ou ooooou-tra, mas nossa!



2. Ou então, à maneira de Sophia:

(...)
que hão-de levar-te à vitória.
Este é o dia
que nasce das nossas mãos
solenes, atentas
à melhor luz dos avós.

Porque o futuro somos nós.



3. Quer dizer, se é mesmo de Sophia que estou a falar...

(...)
que hão-de levar-te à pureza.
Este é o dia
que nasce das nossas mãos
solenes, atentas
plenas de luz e beleza.

No nosso mar sôfregas naus.



***

Foi má ideia tê-los deixado morrer sem lhes encomendar um novo texto para o hino.
Agora vamos ter de nos desenrascar sozinhos.

15 junho 2008

apontamento

Hoje fomos passear de bicicleta para os lagos de Grunewald.

Encontrámos milhões de rãzinhas, nem 1 cm teriam, que iam do lago na direcção da floresta.

Agora percebo porque fazem túneis debaixo das estradas para as rãs não serem atropeladas - faz mesmo impressão avançar sobre aqueles bebés todos, uma pessoa até se sente o rei Herodes.

***

E depois li no jornal que a natureza está a invadir a cidade: primeiro os javalis, que, desde que os soldados russos se foram embora de Potsdam e deixaram de os caçar para melhorar o rancho, se passeiam pelas avenidas principais como se fossem turistas. E agora as rãs que estão a invadir os jardins de Dahlem.

Dahlem: só estive lá uma vez, em Outubro, quando andava à procura de escola para os miúdos. É uma zona de palacetes e ricas vivendas, com imensas árvores. Aquele dia viera cheio de sol, e passava uma leve aragem que soltava as folhas das árvores. Digo Dahlem e vejo assim: céu azul, ruas sossegadas, belíssimas casas - cenário para uma dança lenta de folhas douradas, magia de paisagem à luz gloriosa do Outono.

Potsdam: passei lá esta semana, e fiquei fascinada. É ainda mais bonito que nas fotografias.

12 junho 2008

dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Cá para nós, e não se zanguem comigo: não percebo este feriado tão complexo. Pessoalmente, bastava-me que fosse o Dia de Portugal. Tem espaço para Camões, para Pessoa, para o Poeta Aleixo e para todos os portugueses.
Também não percebo porque é que há tantos feriados (hiiiii, o que eu fui dizer...): num Dia de Portugal deviam caber também a Independência, a República e a Liberdade.
Adiante, que este tema é perigoso, esqueçam, nada, não disse nada.

Li o discurso do Senhor Presidente da República em Viana do Castelo, e não fiquei nada esclarecida.
Na realidade, até me lembrei do padre da minha aldeia a organizar uma excursão a Lourdes, e a combinar quem é que trata do farnel e qual é a parte que pode ser arranjada em França, por aquela vizinha da cunhada de não sei quem, que já lá está há vinte anos e tem uma loja onde vende vinho tinto ao garrafão e nos pode fazer um preço de amigo.

Se estava a falar das Comunidades Portuguesas, gostava que me tivesse dado umas luzes sobre se hei-de ir registar o meu filho como português ou não.
Agora é mais fácil, o Consulado fica ao lado do escritório do meu marido, já não é preciso tirar um dia de férias.
Mas será que o Matthias é português? A minha família diz que sim. Nos dias em que gostam muito dele dizem "este é cá dos nossos". Mas isso é porque nunca viram as listas que ele faz para organizar o seu dia, com pormenores como "10:45 - ler um livro do Astérix". É alemão, não há dúvida que é alemão, é do melhor alemão que há. Porque haveria de ter um passaporte português?

O Presidente, que visitou "as Comunidades Portuguesas na diáspora", saberá melhor que eu do que fala. Porque eu nem sei se vivemos em diáspora, ou se andamos à nossa vidinha.
E que dizer da identidade dos filhos e dos netos dos emigrantes? À parte o folclore, o que haverá ainda de português nos bisnetos dos que foram para o Brasil e a Argentina no princípio do século XX? O que há de português nas Marie-France Silva e nos Jean-François Moreira que nasceram e estudaram em Paris?
Quando o mais alto representante dos portugueses diz aos emigrantes "sei que podemos contar convosco" estará a imitar o Erdogan, quando veio à Alemanha lembrar aos três milhões de turcos aqui residentes que deviam fazer lobbying pela Turquia? Sabe que pode contar connosco para, concretamente, o quê?
Como é que se concilia a lealdade ao país de origem com a lealdade ao país que acolhe?

E que dizer dos novos emigrantes, o pessoal que sai para doutoramento e acaba tão altamente qualificado que nem tem como regressar a Portugal, porque não encontra aí lugar compatível com as suas aptidões? Ou os outros, os que simplesmente se apercebem que a vida é mais fácil noutros países?
"Comunidades Portuguesas em diáspora" é também com eles?
E eu, que apesar de ter um traje à vianeza e saber dançar muitos viras, um malhão traçado e quase-quase a Gota de Afife (hehehe, com esta é que ninguém estava a contar), ainda não me inscrevi no grupo de folclore português que há em Kreuzberg, e não registei os filhos como portugueses - o contrário de tradição é traição?

O Presidente não explicou muito sobre essas diferenças. Não falou da construção de identidade. Ou das questões políticas: os emigrantes deveriam poder votar nos dois países? A propósito de Camões falou na língua, mas não tocou no tema do desacordo ortográfico.
Só disse "Sei que podemos contar convosco. Podem e devem contar com Portugal."

Sim, está bem, mas: e as acções?
Nem sequer nos convidaram para ir festejar para o Consulado com uns pasteizitos de bacalhau. Ao menos isso. Aposto que ao terceiro croquete já estaria a registar o Matthias, e a pedir se não davam um jeitinho para poder registar a Christina também.

10 junho 2008

die Rasse

O meu filho anda desesperado para encontrar aqui em Berlim uma loja que venda bandeiras de Portugal (agradeço imenso a quem me souber indicar uma).

Ele acha que Portugal vai ganhar o campeonato, que está com uma equipa formidável e tal, e precisa de uma bandeira para pôr na bicicleta.

Sendo filho de um alemão e de uma portuguesa, está registado apenas como alemão, porque nós não nos demos ao trabalho de tirar um dia de férias (ambos os dois) e fazer 200 km para lhe dar a nacionalidade portuguesa até fazer 18 anos. Passam tão depressa...

De modo que esta fixação na bandeira portuguesa só pode ser uma manifestação incontrolável da raça.

Sim: é a raça!!!
O presidente Cavaco Silva é que sabe.

***

Agora num registo mais sério: o facto de não precisar de ir ao meu Consulado é significativo do novo tempo em que vivemos. Que seria de nós numa Europa menos Europa? Prefiro assim: não me preocupar muito com a nacionalidade que dou aos meus filhos. Não ter de perder tempo (ou até pedir visto) para atravessar uma fronteira. Não ter de levar quatro bolsas com moedas diferentes para fazer os 2000 km entre a Alemanha e Portugal. Poder partir do princípio que as farturas vendidas na Senhora da Agonia não me farão mais mal que os churros vendidos no mercado do Winterfeldplatz no coração de Berlim.
Viva a Europa!

E também: viva Portugal!
E vivam os portugueses! Que sejamos todos capazes de reinventar o nosso país, conscientes de que o seu futuro é tarefa e responsabilidade nossa.
E que a tanto nos ajude o engenho e arte.

o meu marido é muito infeliz

Começou a contar, todo empolgado, que a empresa tinha dado ao chefe dele um carro com mais de 300 cavalos, que vai dos 0 ao 100 em 4 segundos, e dos 0 aos 200 em 8 segundos (ou talvez mais, ou talvez menos, não sei), e que facilmente vai por aí fora a 260, e só não dá mais porque não o deixam, e então eu perguntei-lhe assim:
- Se te derem um carro da empresa, pedes um híbrido, não é?

09 junho 2008

Berlim com molho inglês

Há em Berlim um jornalista inglês que tem um blogue para descrever o que vê nesta cidade/sociedade, e o que mais calha, a partir da sua plataforma de observação situada nem dentro nem fora, muito antes pelo contrário.
Andei por lá a vasculhar, e encontrei este post (em inglês) que, para além de muito divertido, dá umas boas achegas para a questão do consumo responsável e das boas intenções do consumidor, e do Dalai Lama.

06 junho 2008

vida de cão

Aqui no meu prédio há um cão, daqueles com ar de mal-encarados (assim: com o focinho amassado - ou seja, um cão daqueles com ar de mal-enfocinhados) que passa a vida a ladrar. Mas eu não faço nada, que o cão pertence a umas mocinhas que parece que trabalham para uma empresa não sei quê, eu só as vejo a sair e a entrar muito bem vestidas, e os gajos que as vêm buscar e trazer andam sempre nuns carros formidáveis. Parece que a empresa dá muito lucro aos empresários, já às mocinhas duvido, mas em todo o caso não sou eu quem há-de ir tocar àquela campainha para dizer que o cão delas precisa de um psicólogo.


****

Agora que penso nos carros que eles conduzem mas elas não: e se houver por trás de tudo isto histórias muito sórdidas? e se elas forem escravas sexuais? e se, sei lá, os empresários as terão nem-imagino-o-quê e agora as têm presas por alguma espécie de culpabilidade? e se são miúdas desaparecidas há 10 anos, vítimas de uma completa lavagem ao cérebro?
Quem acha que os vizinhos do Fritzl tinham obrigação de ter visto e reagido, diga-me agora o que é que eu devo fazer. Porque eu não sei.

05 junho 2008

assombro e asco



Anda uma pessoa preocupada a tentar conciliar os fish and chips, de que tanto gosta, com o despovoamento dos mares, e a pensar naquela história do Génesis sobre dar nomes a todos os seres, o que equivale a ser responsável pela Criação, e a lutar contra a má consciência por querer manter um estilo de vida a que se habituou, apesar de saber que tudo tem custos para o Ambiente, anda uma pessoa, dizia, a remoer questões éticas enquanto vai pondo coisas no carrinho do supermercado, e depois as devolve à prateleira, para daí a nada voltar por elas, anda uma pessoa a chatear os filhos dizendo que não se pode deitar fora o peixinho que têm no prato, porque a única justificação para os matar é que eles são muito importantes para a nossa alimentação, anda uma pessoa, em suma, a tentar gerir os seus consumos pela cartilha do Chefe Seattle...
...e fica a saber que em Portugal destruiram peixe no contexto da greve dos pescadores.

Não sei se já aconteceu ou não, mas gostava de ver os cristãos em Portugal a protestar veementemente.
Com assombro e asco.

Os não cristãos também podem, e devem, claro - que a nossa Sociedade somos nós todos.
Mas eu falo pelo meu "clube" - este é para mim um daqueles casos em que faz todo o sentido que as Igrejas venham interpelar as consciências, anunciem os valores cristãos, perguntem "é por aí que queremos ir?!".

(Mas se me perguntarem o que é que eu faço se souber que tenho ratos na despensa, calateboca.
Que foi o que um cientista, de um laboratório que faz experiências com ratos e ratazanas, perguntou a um membro da comissão de Ética que estava muito preocupado com as condições de vida das cobaias.)

(E assim vai a vida: procurando um sentido, avançando de perplexidade em perplexidade.)

04 junho 2008

os outros dos outros

Desde que a Alemanha começou a exigir conhecimentos mínimos de alemão para permitir a entrada de cônjuges neste país, houve uma redução significativa dos casamentos arranjados na Turquia.

Segundo entendi, a regra destinava-se a dificultar a importação de noivas.
Pelos vistos, as famílias turcas iam buscar noivas que dêem mais garantias de moralidade e bons costumes do que estas filhas de turcos nascidas na Alemanha, que são obrigadas a ir à escola e tudo, e lá são contaminadas com as modernices deste país.

Mas, afinal, quase metade das entradas de turcos via casamento são homens.
Pelos vistos, os pais entendem que os rapazes vindos da Turquia têm melhor carácter, parece que acham que há demasiados criminosos entre os rapazes turcos nascidos na Alemanha.

Ora bem: se até os meus outros se dividem entre eles e os seus outros, fica cada vez mais complicado separar o trigo do joio. Que cansaço.

***


Adenda:

Quanto mais penso nessas categorias, "trigo" e "joio", mais vazias se tornam.
Tanto mais que eu própria posso ser um joio na Alemanha. Quando para cá vim, não falava quase nada alemão. Se fosse hoje, será que não me deixavam vir viver aqui com o meu marido?
(Ainda ando a tentar perceber se esta regra só se aplica a turcos. Sem comentários.)

03 junho 2008

albíssaras!

O Bios Politikos voltou!

Fico tão contente que até troco os bês pelos bês.

***

Um pouco a despropósito:
Tenho um amigo do Porto que, quando quer falar muito bem, desata a falar com vês. Sávado, avacate, etc.

Ora aí está uma ideia realmente inovadora para mudar a língua a sério, e não a brincar como no acordo ortográfico:
- para dar ênfase à importância da ocasião, dizer v em vez de b;
- para dar ênfase aos conceitos, dizer as consoantes mudas, ou até inventá-las. Um homem "como deve de ser" é um hhhhhhomem com um h que se ouve bem, quase r - e se for muito macho, será então muito matcho; uma humidade sufocante é, claro está, uma hhhhhhumidade - percebe-se logo muito melhor como é que a gente se sente.
- quando algo é realmente muito, é munta (já existe, mas não se escreve - e porque não?). Um hhhhomem munta matcho, que tal? (fujam!)
Etc.
E aqui se me acaba o intervalinho, que até parece que não tenho mais nada para fazer.
A verdade é que em Berlim está um calor insuportável (hhhinsuportável, com agás como um suspiro, podem crer!), e a minha vontade era largar tudo e ir dar um mergulho no Wannsee.

Perante essa impossibilidade, refresco-me neste post do Miguel: Acontecimentos.

02 junho 2008

o escândalo nosso de cada dia nos dai hoje (2)



Os produtores de leite estão em greve. Mas as vacas não. Por isso, é preciso mungi-las (duas vezes por dia), directamente para o esgoto.

Sim, o mercado, os direitos, o lobby, a política agrária comum, tudo.
Todos cheios de razão.

Mas há algo profundamente imoral nesta fotografia.

Vou estar atenta às marcas que continuam a vender leite - muitos deles são agricultores biológicos, que já comercializam o leite ao preço que consideram justo. E vou passar a comprar apenas o leite desses.

o escândalo nosso de cada dia nos dai hoje (1)

A Natascha Kampusch tem agora um programa na televisão. Foi ontem a primeira emissão, uma entrevista ao Niki Lauda.

O filme que anda na net para publicitar o grande acontecimento é espantoso: como se não bastasse o seu ar de insegurança e a fragilidade na sua voz, passa imagens da cave em que ela viveu durante oito anos. Se era para ligar para sempre essa cave à imagem daquela pessoa, podiam ao menos tê-la arrumado antes de a filmar?

Tem vinte anos, e dão-lhe um programa na televisão. No seu currículo, o único facto que interessa é o de ter passado oito anos completamente à mercê de um tarado. Independentemente das pessoas que ela convidar para as entrevistas, o que nos interessa é a sombra do horror nela.

Neste mundo em que vale tudo, mais que nunca tenho de estar atenta à questão "e eu, quanto me valho?"

***

Não é que "dantes" fosse melhor. Num mundo onde quase tudo estava predefinido, era necessário interrogar a obediência, onde hoje se interroga a liberdade.

01 junho 2008

do baú de recordações

Em Outubro de 2002, poucas semanas depois do 11 de Setembro, assisti a um concerto da Maria João em San Francisco.
"A pedidos", repasso o e-mail que na altura escrevi para alguns amigos dos EUA e do Brasil.



Acabei de chegar do concerto da Maria João.

Sou cliente antiga e posso afirmar que está cada vez melhor – e já era muito boa da primeira vez que a vi!

A sala toda presa da força daquela mulher. Ela canta, dança, corre, salta como uma menina, dança de novo, canta sempre. A música sai-lhe pela garganta, pelos dedos, pelo corpo todo, e a sala inteira olha fascinada.

Dentro do vestido de cauda e sem alças, de um furta-cores entre o vermelho, o rosa e o laranja, vejo uma mulher completa: feliz no seu corpo transformado em instrumento, arrebatada pela música que lhe sai por todos os poros - sensual, alegre, terna.

Entre duas canções, a conversa. Acabei de cantar num dialecto moçambicano, terra da minha mãe (e eu: ah, pois, logo vi!), esta é a segunda ou terceira vez que vimos aos EUA, é difícil músicos portugueses virem aos EUA, na Europa as notícias são uma catástrofe (sacode os braços sobre a cabeça, arrepela os cabelos), mas decidimos vir na mesma (o público irrompe em aplausos), estou fascinada com a simpatia das pessoas nos restaurantes, nas lojas, até na estrada, em Portugal é bem diferente, todos apitam, mas aqui não, só vez por outra, não é como em Portugal onde os condutores são impossíveis, habituei-me a sair do carro e a ir discutir com eles (dá meia volta no palco e afasta-se para o fundo, esbracejando para um condutor imaginário, depois regressa) e quando volto para o carro o meu filho, de 11 anos, diz: “mãe, que vergonha!”, o meu país, Portugal, é um país pequeno, 600 km por 200 km, quanto é isso em milhas? (o baterista troca-lhe os cálculos: “Miles Davis?”), mas tem muito mais que fado para oferecer, adoro o fado mas também gosto de muita outra música, nós fazemos música com dois pés, um (levanta a saia, mostra o pé descalço) que faz jazz e o outro (mostra o outro pé, a saia levantada até ao joelho num gesto cheio de naturalidade) suga, suga tudo (e o pé move-se, parece que procura as notas que sobraram da última canção) e... é com estes dois pés que caminhamos, esperamos que andem bem!

Vou apresentar os músicos, na percussão um escandinavo nascido acima do círculo polar?, círculo ártico? (confunde-se, faz um gesto solto) não importa, bem lá em cima, ele é maravilhoso, toca connosco há três anos, é um amigo, confidente, lindo, alto, com uma maravilhoso sentido de humor (e o viking levanta-se e abre os braços, quase pedindo desculpa pelo exagero, e ela volta-se para o pianista), e aqui, atrás do seu instrumento enorme (a sala ri), refiro-me ao piano, aqui está o Mário Laginha, que tem uns óculos novos que lhe ficam muito bem (ele esconde a cabeça nos braços), e é o compositor de tudo o que ouviram hoje e é para mim o melhor músico do mundo.

Recomeçam a tocar, o baterista faz um solo e ela senta-se numa parte mais escura do palco, os pés dançam, os braços dançam, levanta-se de novo e continua a dançar ao som dessa música, o piano entra, vem a voz. Ménage à trois bem sucedido, aqueles três nasceram uns para os outros.

Não sei se irão a Los Angeles ou Nova Iorque, se irão a São Paulo. Se forem, não percam o espectáculo. Não adianta comprar o CD, a música que sai daquela mulher tem de ser vista.

Em pleno concerto, a referência à mãe moçambicana faz-me recuar a uma revelação antiga de vinte e cinco anos. Era o tempo dos retornados, o país enchia-se de portugueses diferentes de nós. Na aula de educação física, onde aprendíamos a dançar o “água leva o regadinho” e o “malhão”, resquícios do Estado Novo nos programas escolares, uma aluna pediu para mostrar uma dança nova. Trouxera o disco de casa, e dançou perante o nosso olhar fascinado a um ritmo completamente novo. Era de Moçambique.

Tive muitos amigos de famílias de retornados. Muitos contavam que tinham fugido ao som de metralhadoras, alguém lhes tinha apontado uma arma à cabeça, saíram para a escola e nunca mais voltaram a casa. Não conseguia entender a alegria deles, mas apreciava a jovialidade, a cor nova que traziam ao ambiente da escola. Como seria Portugal se eles não tivessem voltado?

A Maria João, nascida em Portugal com raízes africanas, combinando fado com jazz com música africana com música indiana e com música brasileira, materializa o que há de mais positivo na história dos descobrimentos.

E eu volto para casa com um orgulho enorme de ser portuguesa – embora esse seja um resultado do acaso e a Maria João não me deva nada, a não ser talvez uma pequena comissão pela publicidade.