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07 julho 2025

o problema não são eles, somos nós

 

Duas décadas depois de ter começado a celebrar acordos com diversos países para receber trabalhadores estrangeiros, a Alemanha deu-se conta de que a "mão-de-obra" que importava afinal eram pessoas com família e vontade de ficar no país. A pouco e pouco, a "política de estrangeiros" foi dando lugar à "política de integração".
A Alemanha assumiu-se como país de chegada, e repensou as leis da nacionalidade.
No início deste século, houve uma acesa discussão sobre a integração dessas pessoas, sobre a diversidade versus primazia da "identidade alemã" (a famosa cultura dominante), e sobre um possível peso excessivo de estrangeiros.
Foi nessa altura, há cerca de vinte anos, que li um comentário de um turco num artigo de jornal, dizendo mais ou menos o seguinte: "De que adianta tentarmos integrar-nos ao máximo? Olhem para os judeus: integraram-se tão bem nesta sociedade que a eles se devem algumas das páginas mais brilhantes da ciência, da cultura e da política alemãs. Mas nem isso os livrou de serem levados para Auschwitz."
É importante que se debata tranquilamente as questões de diversidade e de integração. E também é fundamental perceber que o problema talvez não sejam os que chegam ao nosso país, mas os nossos tiques nacionalistas, racistas, xenófobos.
E que por muito que quem vem viver para o nosso país tente adaptar-se e integrar-se, não é por isso que os racistas deixarão de ser racistas.

12 julho 2023

por pouco

Saí para ir fotografar a praia de manhãzinha. No regresso, subi as escadas do prédio, e virei distraída para a direita, em vez de virar para a esquerda. Meti a chave na porta, não abria. Fui virando a chave e tentando, e não abria. Até que ouvi uma voz: "Eh, lá!"

Olhei para o número, era o errado, claro. Expliquei e pedi desculpa em frente à porta fechada, e logo apareceu à soleira um homem de idade, com o seu quê de mal-encarado, para me anunciar que já tinha o bastão ali a jeito.

A primeira coisa que me ocorreu: "Esta foi por pouco, ufa!". E a segunda coisa que me ocorreu: "Se fosse negra, se fosse nos EUA, já estava morta". Basta isto: enganar-se distraidamente na porta da casa.

Já estava morta.






23 setembro 2022

a nossa Rainha Santa Isabel, essa autêntica sereia negra

 


A Disney "ousou" escolher uma actriz negra para o papel de Pequena Sereia, e eis que se ouvem críticas à deturpação do original, porque, dizem, ninguém tem o direito de se apropriar da história de Hans-Christian Andersen. 

O que me fez pensar imediatamente na Santa Isabel da Turíngia, que era muito amiga dos pobres e transformou pão em rosas. Soa familiar, não é? Pois claro que soa: a nossa rainha Santa Isabel, que nasceu quarenta anos depois de a sua parenta ter morrido, resolveu apropriar-se da lenda. E assim se passa de uma personagem principal de pele "tão clara e delicada como uma pétala de rosa, e olhos tão azuis como um lago profundo" (sim, dei-me ao trabalho de ir ler o Andersen) para uma de feições mais trigueirinhas, mais adaptada às nossas latitudes.

A culpa deve ter sido do SOS Racismo da Idade Média...

E se pensam que os exemplos chocantes acabavam com esta flagrante histórica de roubar aos loiros para dar aos morenos, enganam-se: antes de ser roubado para melhor acomodar os interesses portugueses, o milagre das rosas já tinha sido roubado para ser atribuído a um homem, o São Nicolau de Tolentino.  

A culpa será, deixa cá ver... do lobby gay? dos fanáticos da ideologia de género? dos machistas, que não suportam ver uma mulher a fazer boa figura?

Em todo o caso: Isabel, rainha santa, devolve o que não é teu! Arranja para ti um milagre original, em vez de te pores a roubar o que é tradicionalmente dos outros. Que coisa tão feia, e que grande vergonha para Portugal!...

(Sim, eu sei que é normal as lendas passarem de uns santos para outros, e também sei que quem conta um conto acrescenta um ponto. Mas os fanáticos da branquitude da pequena sereia parece que não sabem. Só me pergunto se estariam a dormir quando a Disney transformou a sereia albina do Andersen numa beldade ruiva, juntou mais algumas peripécias e permitiu um final feliz, bem ao contrário do do conto original. Vai-se a ver, e a única coisa que realmente não pode mudar é a cor da pele?...)

(Para quem diz que "não havia necessidade": lembro-me bem do que senti quando - eu, que nasci branca num mundo de brancos e numa família relativamente privilegiada - vi a primeira boneca com cabelos e olhos castanhos como os meus. Até então, eram todas loiras de olhos azuis, e eu sentia que entre elas e eu havia uma "não pertença", e que era eu quem não pertencia: não estava à altura das minhas bonecas.)

  


27 janeiro 2022

lembrar as vítimas do nazismo

 

(imagem: daqui )

27 de janeiro, a data em que o Exército Vermelho libertou Auschwitz, tornou-se o dia internacional em memória das vítimas do nazismo: judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, e tantos outros.

Hoje quero lembrar Karl Stojka, e o seu aviso:

"Não foi Hitler, nem Göring, nem Goebels, nem Himmler, nem nenhum desses quem me arrastou e espancou. Não. Foi o sapateiro, o vizinho, o leiteiro. E depois receberam um uniforme, uma braçadeira e um barrete, e passaram a ser a raça superior."

Karl Stojka nasceu em 1931 em Viena, numa família católica lovari - um subgrupo da etnia cigana, sobretudo conhecidos como comerciantes de cavalos. O sistema nazi odiava os povos ciganos, e ainda mais os grupos itinerantes como a família de Karl. Acusavam-nos de serem associais e preguiçosos, diziam que não se integravam e viviam do trabalho dos outros. Um ódio muito conveniente, porque permitia unir a população contra um inimigo exterior.

Quando Karl tinha dez anos, os nazis levaram o pai dele para Dachau. Assassinaram-no alguns meses depois. Aos onze anos, Karl foi enviado com a família para Auschwitz, onde lhe trocaram o nome pelo número Z5742 ("Z" de Zigeuner, cigano) e acabaram por matar grande parte dos seus.
Ele conseguiu sobreviver ao Porajmos.
Muitos anos depois começou a pintar as dolorosas memórias do campo - como esta imagem que partilho, com o título "medo". Assinava as suas pinturas com o nome e com o número que lhe deram em Auschwitz. 
(Mais imagens e informações: aqui e aqui)

Falamos bastante do que os nazis fizeram aos judeus, e frequentemente ignoramos as outras vítimas. O resultado é que estamos mais sensíveis aos discursos antissemitas, mas nem reparamos quando hoje em dia políticos (ou amigos nossos) falam sobre os ciganos nos mesmos exactos termos em que os nazis o faziam há oitenta anos. Ouçamos ao menos o aviso de Karl Stojka: não foi Hitler quem o maltratou, foram os seus vizinhos, o leiteiro, o sapateiro. Pessoas banais, integradas na sociedade, inteiramente convencidas que eram pessoas de bem. 

No livro "SS", Guido Knopp avisa:

"
A moral da história? Qualquer pessoa poderia ter-se tornado um agressor. Quando um Estado criminoso destrói as barreiras entre o certo e o errado, qualquer pessoa fica em situação de risco. A natureza humana por si só é vulnerável. Em cada um de nós há um Himmler e um Mengele, um Eichmann e um Heydrich
Noutros tempos e sob outras circunstâncias, todos estes homens teriam tido "vidas normais", teriam sido cidadãos que não davam nas vistas."

Hoje passei no Gleis 17 - um dos memoriais que lembra as deportações dos judeus de Berlim. Tinha uma flor em cima de todas as placas que assinalam os comboios que partiram desta cidade em direcção aos campos de concentração. Para essas vítimas, pouco mais podemos fazer que pousar flores em placas frias. Mas para os nossos irmãos judeus, os nossos irmãos ciganos, os nossos irmãos refugiados, e todos os que hoje são vítimas do discurso e da ideologia nazi recuperados ao gosto do nosso tempo: não podemos assistir de braços cruzados. Há muito trabalho a fazer. 

Para que os nossos netos não nos perguntem depois como foi possível termos deixado acontecer. 





19 fevereiro 2021

falar do nosso colonialismo

Partilho um testemunho sobre a vida nas regiões que colonizámos, escrito pela Leah Pimentel na sua página de facebook. É preciso falarmos disto: para não esquecer, e para nos confrontarmos de forma séria com o nosso racismo, em vez de continuarmos a repetir ideias feitas que herdámos acriticamente do Estado Novo. 

Devemos isso aos povos que escravizámos e explorámos, cujos descendentes - muitos deles nossos compatriotas - vivem ainda sob o jugo das consequências dessa História que lhes foi imposta.

Devemo-lo também a nós, porque (desculpem a revelação) os cidadãos do resto do mundo não foram socializados pelo Estado Novo - o que significa que os não-portugueses não olham para a História de Portugal com a mesma indulgência que nós nos permitimos. Ter consciência disso permite-nos evitar alguns incómodos quando nos movemos num contexto internacional.   

Passo a palavra à Leah Pimentel:

«Não consigo falar de racismo

Pertenço à quarta geração de angolanos brancos e nunca conhecemos Portugal. Alguns de nós acabámos por cá vir parar, mas os outros, ou ficaram por lá ou fizeram o périplo Africa do Sul/Brasil.
Lembro-me da minha mãe distribuir galhetas democráticas entre o meu tio negro por bater na mulher e o meu tio mais loiro, por gostar de se envolver com mulheres casadas. Mas isso era lá em casa.

Na rua via o meu amigo engraxador de sete anos ser espancado pelo patrão, um borra botas fugido da miséria de Vila Real. Contou-me a minha mãe como, chegados ao fim do mês, a mulher metia talheres nos bolsos da roupa que penduravam os empregados para vestirem os uniformes, e como chamavam a polícia por roubo. E eram espancados na esquadra. E não recebiam o salário. Vi como, aos sete anos, linchavam um homem ao meu lado, por ter roubado uma lata de leite em pó. Nunca mais tolerei aglomerações.

Pela voz do meu tio soube de meninas de doze anos violadas por berliets inteiras de tropas esfaimados. O António Lobo Antunes fala disso, tratou algumas delas.

Angola foi para mim um mundo de terror. Nunca foi aquele território pitoresco onde se bebiam Cucas ao preço da chuva em esplanadas à beira mar. Nem nunca será. Foi a terra onde os patas rapadas abusavam, roubavam, exploravam, e se algum negro refilava, era de imediato morto, para exemplo. Conto muito pouco do que vi. É demasiado duro.

Mas o que mais revolta é sentirem-se expoliados. E não terem vergonha na cara. E continuarem a dizer que Angola era a terra deles, de beleza ímpar, e que agora está toda estragada. Sei que está toda estragada, sim. Mas eles não se dão conta de quem a estragou.»


12 maio 2020

a banalização da ciganofobia - episódio número não sei quantos

A proposta do André Ventura para criar um regime de confinamento especial para ciganos nunca foi uma proposta séria para ser debatida no Parlamento. Era simplesmente mais uma jogada para dar uma alegria à sua base de apoio, e acelerar a banalização da ciganofobia. A performance no Parlamento dá mais força ao cidadão que se insurge contra "o politicamente correcto que não o deixa dizer as coisas como elas são". É lamentável que os responsáveis do fórum da TSF não tenham percebido isso, e tenham oferecido de mão beijada ao André Ventura um enorme palco para a sua estratégia de banalização da ciganofobia.

Repito o que já muitos disseram: Portugal não tem um problema com ciganos, tem um problema com comportamentos de determinadas pessoas. Não se castiga toda a população de determinada etnia por causa do comportamento de algumas das pessoas que fazem parte desse grupo. Quero deixar isso muito claro, até por um mecanismo de autodefesa: é que se, por exemplo, a Alemanha decide tirar conclusões sobre os portugueses com base nas notícias do Correio da Manhã (onde os portugueses aparecem maioritariamente como indivíduos violentos, toscos e corruptos), o meu futuro na sociedade alemã vai ficar muito dificultado. Não faças aos outros...

Mas: se André Ventura tivesse realmente a intenção de resolver um problema (o alegado desrespeito de determinados grupos pelas regras para contenção da pandemia da covid-19), e não simplesmente habituar os portugueses ainda mais ao discurso racista contra ciganos, gostava de lhe fazer algumas perguntas:

1. Tendo em conta que a Lei é igual para todos, e portanto teria de prever campos de confinamento especial para todos os que desrespeitassem as regras, mandava todos os desrespeitadores para o mesmo campo? Ou separava-os por - sei lá - sexo, localidade, idade, rendimento?

2. O regime de confinamento especial só se aplicaria aos indivíduos que tivessem, de facto, desrespeitado as regras? Ou o Estado (por uma questão de saúde pública, claro, claro...) devia internar toda a família, toda a vizinhança, todos os colegas de trabalho, todos os amigos dos indivíduos desrespeitadores?

3. Esses campos de confinamento seriam improvisados com tendas, ou o Estado devia construir aldeamentos de edifícios pré-fabricados para alojar todas essas pessoas?

4. Se - por mera hipótese distópica - Portugal quisesse pôr-se do lado dos párias da História e criasse um regime de confinamento especial apenas para as pessoas de etnia cigana, quem seria considerado cigano? Um descendente de ciganos completamente assimilado pela cultura dominante em Portugal (seja lá o que isso for) também é cigana? Se um dos progenitores for cigano, o filho é automaticamente cigano? E se for um dos quatro avós? E um dos oito bisavós?
Pergunto, porque o "sangue cigano" é como o "sangue judeu": quantos de "nós" podem garantir com toda a certeza que não têm um antepassado cigano ou judeu?
Pergunto, porque convém que as pessoas tomem consciência desse facto antes de começarem a sonhar com regras para - pensam elas - aplicar aos "outros". 

Em todo o caso: da próxima vez que a TSF quiser organizar um fórum para debater este tipo de questões a que chama "polémicas" - e que de polémicas não têm nada, pelo menos para quem aceita os valores e a ordem legal mais básica do nosso tempo -, de bom grado lhes ofereço uma pergunta para levarem a debate público  que seja menos catastrófica que aquela "faz sentido criar um plano de confinamento especial para a comunidade cigana?"


07 maio 2020

"língua portuguesa"

Durante muitos anos aceitei a "nossa" versão da importância da #língua_portuguesa. A quinta língua mais falada do mundo, a primeira do hemisfério sul, os tantos povos unidos por uma língua comum, e, claro, aquele orgulhozinho de "somos os maiores".

O primeiro contacto com outra realidade ocorreu quando comecei a traduzir para "português neutro" - um idioma que devia ser compreensível em Portugal e no Brasil. Mais valia ter dito que estava a inventar o "desesperanto", de tal modo a tarefa era impossível. Foi nessa altura que ouvi frases como "os portugueses e os brasileiros estão separados pela mesma língua", ou "o brasileiro tem tantos falsos cognatos do português que, à primeira vista, até parece a mesma língua" - e me dei conta de que isto não é tão simples como até então tinha pensado.

O segundo contacto com outra realidade ocorreu quando li "memórias da plantação", da Grada Kilomba. Esse conjunto de povos que falam português equivale à perda da diversidade representada pelas suas próprias línguas e culturas.

É verdade que a língua portuguesa nos aproxima uns dos outros. Mas: a que custo? Nunca até então tinha pensado no sofrimento das pessoas obrigadas a pôr a sua própria cultura em segundo plano para pertencer ao novo contexto social, a ter de conquistar um lugar na sociedade exprimindo-se numa língua que não era a sua língua materna, e forçadas a aderir a valores e comportamentos que não são os da sua tradição cultural.

Curiosamente, a minha própria situação tem alguns paralelos com a dessas pessoas: vivo noutro país, noutra cultura e noutra língua. Bem sei o que custou e ainda custa - mesmo sendo o resultado de uma escolha livre, voluntária, consciente.

De modo que: sim, a língua portuguesa continua a ser linda, grande e enriquecida pelo contacto com outros povos. Mas pelo caminho perdi aquele sentimento de "somos os maiores".
Não fizemos isto sozinhos: fizemos com os outros povos - ou talvez devesse dizer: contra os outros povos.


18 fevereiro 2020

mais algumas razões para gostar tanto de Berlim


(foto: Twitter Hertha BSC)


1. Traduzo da página do Hertha BSC:

Declarações sobre o incidente na Liga Regional B-Junior

Devido a insultos racistas, a nossa equipa abandonou o campo em Auerbach antes do fim do jogo.

Berlim - No jogo de sábado (14.12.19) na B-Junior-Regionalliga Nordeste do nosso U16 na VfB Auerbach 1906 ocorreu um incidente de racismo. Vários jogadores da nossa equipa foram insultados de forma racista pelos seus adversários.

Após dar indicações ao árbitro, decidimos sair de campo aos 68 minutos do segundo tempo, quando marcava 2-0 a nosso favor, e não continuar o jogo, porque nós, o Hertha BSC, condenamos o racismo e a discriminação em todas as suas formas.

Paul Keuter, membro da direcção do Hertha BSC: "Há situações nas quais para nós até o futebol se torna secundário. Temos uma responsabilidade para connosco próprios, para com os nossos jogadores e também para com a sociedade. Levamos esta responsabilidade muito a sério. Por isso, não continuar o jogo era a única decisão aceitável. Talvez esta medida seja um alerta para todos nós - jogadores, clubes, associações e adeptos - para finalmente pormos termo a este problema. Em casos destes, os valores e uma atitude clara têm para nós muito maior importância do que ganhar ou perder em campo.

[ O caso foi levado a um tribunal de desporto, que decidiu atribuir uma derrota a esta equipa do Hertha BSC por 2-0. Embora o tribunal tenha decidido a favor do Auerbach, levou em conta as declarações dos sete jogadores do Hertha que se declararam vítimas de insultos racistas, o que dará origem a outro julgamento sobre uma possível penalidade contra o clube saxão e seus jogadores. Talvez seja parte importante desta equação saber que, nas eleições do ano passado na Saxónia, Auerbach deu à AfD 26,4% dos votos e 39,5% à CDU; SPD e Die Linke somados tiveram 18,1%. Auerbach esteve também recentemente nas notícias devido à decisão da Diocese de Dresden de manter como professor das aulas de religião católica um político da AfD que critica as declarações do papa Francisco sobre os refugiados e que numa aula de informática criou com os alunos um jogo em que um avião é dirigido contra uma mesquita. ]


2. Num jogo no princípio deste mês contra Schalke 04, Jordan Torunarigha, jogador do Hertha BSC, foi repetidamente insultado com ruídos de macaco por parte de adeptos do clube adversário. De cabeça perdida, num momento em que caíra junto ao treinador do Schalke 04 e este o segurou pelo pescoço, agarrou numa grade de bebidas e atirou-a para o chão com toda a força. Tanto ele como o treinador levaram cartão vermelho. As cenas pode ver-se aqui.

No jogo seguinte, milhares de adeptos do Hertha BSC exibiram cartazes com o número do jogador, além de muitos outros cartazes com mensagens de apoio. Um deles dizia "unidos contra o racismo - se for preciso, com grades de bebidas!" Inspirados por um desabafo de Torunarigha no Instagram, "ninguém pode escolher a cor da sua pele!", os jogadores brancos do Hertha BSC fizeram um risco escuro no rosto, e os jogadores negros um risco branco.

Os responsáveis do Schalke 04 mostraram-se chocados com o incidente e manifestaram o seu total apoio ao jogador. O clube está a colaborar com a polícia, a quem entregou material de vídeo para permitir a identificação dos autores dos insultos, e já declarou que aceitará sem reservas qualquer pena que lhe venha a ser aplicada.
(A notícia em alemão, de onde tirei também as imagens, está aqui)


(Foto: City-Press GmbH)

(Foto: City-Press GmbH)

(Foto: Ottmar Winter)

"25 - Um de nós!"


3. A foto que publiquei no início deste post é da conta de Twitter do Hertha BSC. A frase que a acompanha diz: "Quando uma imagem diz mais que palavras. Estamos contigo, Jordan!"

Traduzo algumas das reacções:

* Como adepto do Schalke, acho profundamente vergonhoso o que aconteceu ontem. Peço que o S04 renuncie à vitória e não jogue nas quartas-de-final. Como uma afirmação clara de que o racismo não tem lugar no #Schalke.

* Os adeptos do Schalke também estão contigo! Força!

* O futebol está a ficar cada vez mais anti-social. A atitude certa teria sido parar o jogo. Mas têm medo dos hooligans.

* Ok, o Jordan já teve alguns momentos de fúria na sua carreira. Mas desta vez era possível ver ao vivo como ele estava a perder a cabeça cada vez mais. Um sinal claro de que algo mais estava a acontecer.

* Caramba, estamos 1.000% contigo! WTF... eu teria reagido da mesma maneira!

* Esta não foi a primeira vez e não vai ser a última. Que comportamento tão desprezível. Não admira que ele não conseguisse conter as suas emoções. Quem teria conseguido na mesma situação? Gostava de saber como é que o próprio árbitro teria reagido, se fosse contra ele. 

* Espero que identifiquem esses idiotas e lhes dêem uma pesada pena. O único lugar certo para os racistas é a cela de uma prisão. Força, @Jordanynany !

* Não precisamos desta merda no futebol! Isto não tem nada a ver com rivalidade saudável entre os clubes, é apenas nojento. #NoToRacism #hahoe #Lifelong green

* Os acontecimentos de ontem deixam-me triste e profundamente revoltado. Estamos em 2020 e as pessoas ainda são alvo de insultos raciais. O que há de errado com vocês? As minhas desculpas como adepto do #S04 vai para @Jordanynany e o @HerthaBSC. Isto é insuportável.

* Espero que os idiotas racistas sejam encontrados e proibidos de voltar a entrar num estádio. Esses adeptos não têm lugar na arena! Tolerância zero para os racistas! Todos os que forem testemunhas de comportamentos destes devem levantar a sua voz em protesto.

17 fevereiro 2020

nazis fora!



(No filme vêem-se pessoas do público a apontar para o ofensor, e no final ouve-se: "Nazi raus!" - "nazis fora!")


Na sexta-feira passada estava a decorrer na cidade de Münster um jogo entre o SC Preußen Münster e os Würzburger Kickers quando, já perto do final do jogo, um espectador começou a fazer ruídos de macaco na direcção de um jogador alemão de pele negra.

Traduzo a notícia do Liga 3 - Online sobre o que aconteceu no campo:

Nazis fora!

O jogo ia no 86º minuto. Os Würzburger Kickers tinham um lançamento e Leroy Kwadwo recebeu a bola em frente à bancada principal. Como os Kickers estavam a mudar um jogador, o jogo foi brevemente interrompido - e neste preciso momento um espectador do bloco B fez sons de macaco na direcção do jogador de pele escura de Würzburg. Testemunhas também relataram que o homem gritou "Volta para o teu buraco". Kwadwo reagiu imediatamente, apontou para o espectador, dirigiu-se furiosamente à árbitra Katrin Rafalski e teve de ser acalmado pelos assistentes da equipa. Entretanto outros jogadores e responsáveis também se deram conta do incidente e, nas bancadas, o público começou ao gritar ao fã racista para que saísse do bloco.

O autor do insulto retirou-se. Lá fora, a polícia já o esperava para o levar para a esquadra. O orador do estádio, Martin Kehrenberg, leu uma declaração contra o racismo, o público reagiu com fortes aplausos e entoou "nazis fora" - um sinal muito forte. Kwadwo, visivelmente incomodado, foi aplaudido por vários jogadores das duas equipas, no que parecia serem sinais de elogio ao jogador e à árbitra. Depois disso, o jogo continuou.

"Exemplo de comportamento estúpido"

Depois do jogo, Kwadwo descreveu a cena para "100 PercentMeinSCP" da seguinte forma: "Eu ia pegar na bola para o lançamento quando ouvi que alguém no bloco estava a fazer ruídos de macaco. Comecei por achar que me teria enganado, mas depois reparei na pessoa. O homem continuou a fazer esses ruídos. Isto é completamente incompreensível. Um exemplo crasso de comportamento estúpido." Para o jovem de 23 anos foi o primeiro incidente deste tipo: "Nunca pensei que algo assim pudesse acontecer comigo, mas provavelmente vai haver sempre idiotas como este". No sábado, Kwadwo publicou uma declaração no site do clube: "Posso ter uma cor de pele diferente, mas nasci aqui, neste maravilhoso país que tanto me deu, a mim e à minha família, e tornou isto possível. Sou um de vocês, vivo aqui e posso realizar a minha vocação e paixão como profissional dos Würzburger Kickers".

Entretanto, o SC Preußen, numa declaração intitulada "Não há lugar para o racismo no Preußenstadion", distanciou-se do comportamento do espectador e "pediu expressamente desculpas a Leroy Kwadwo e à equipa adversária". O presidente do clube, Christoph Strässer, deixou claro: "Não pode haver lugar para isto num campo de futebol, e certamente menos ainda no nosso estádio. Não queremos nem precisamos de gente dessa aqui." Também o porta-voz da imprensa Marcel Weskamp enfatizou na conferência de imprensa: "Isto não é Münster. Münster é o que aconteceu a seguir".

Agradecimento aos fãs

Os treinadores de ambos os clubes também elogiaram a reacção notável do público: "Isto diz tudo sobre Münster e sobre os nossos fãs", elogiou o treinador Sascha Hildmann. Schiele, por usa vez, afirmou: "O apoio dos fãs foi fantástico, estamos muito gratos. Os polícias também reagiram muito bem e tomaram imediatamente conta do caso."

Kwadwo também elogiou os fãs: "A vossa reacção é exemplar - não fazem ideia do que isso significa para mim e para todos os outros jogadores de cor. Devemos todos continuar a lutar como VOCÊS fizeram e impedir que a semente dê fruto. Obrigado por cada mensagem! Espero que em breve estas coisas deixem de acontecer."

A interdição de frequentar o estádio do SC Preussen será provavelmente o menor dos problemas do ofensor, que se arrisca a uma acusação por incitamento ao ódio.  "Espero que ele nunca mais possa assistir a outro jogo de futebol", escreveu o capitão do Kickers, Sebastian Schuppen, no Twitter, após o jogo. Entretanto, o SCP terá de pagar uma multa, mas serão consideradas as medidas que foram imediatamente tomadas em relação ao ofensor.

the show must go on




Profundamente confrangedor e embaraçoso: a insistência dos que tentam demover Marega da sua decisão de abandonar o jogo.

Bem sei que naquele momento as equipas têm a adrenalina a mil, e que só estão focadas numa coisa: fazer o melhor jogo possível. Mesmo assim, não deviam ter pressionado daquela maneira uma pessoa que estava a ser vítima de um ataque racista tão aviltante.

A boa notícia é: a luta contra o racismo está a ganhar. É o facto de se condenar abertamente o racismo que deu força a este jogador para sair do campo e não se sujeitar àquilo. Este processo chegou a um ponto de não retorno. Da próxima vez, ninguém vai tentar impedir a vítima de tomar uma posição clara de recusa. Bom seria que houvesse em campo alguém capaz de tomar a decisão de parar o jogo enquanto a polícia não levar os provocadores racistas para fora do estádio.

[ O Mário Machado, o que há tempos foi ao programa do Goucha dizer que é preciso recuperar os valores de Salazar, já tem um vídeo a dizer que insultos fazem parte do jogo de futebol, e que se fosse gordo lhe chamavam gordo e que se tivesse o pescoço alto lhe chamavam girafa, portanto ele que não se arme em esquisito porque apenas foi insultado como é normal fazer-se durante um jogo de futebol. Também por causa desta mensagem é fundamental que doravante se interrompam os jogos onde estes ataques acontecerem. ]

não ao racismo

Sobre esta resolução do congresso da UEFA em 2013, em Londres, agradecia que me explicassem - a mim, que não percebo nada de futebol - qual foi a parte de "urges referees to stop or even abandon matches in the case of racist incidents" que entendi mal?

Partilho o texto completo do site da UEFA:


Congress adopts anti-racism resolution

Friday 24 May 2013 by Mark Chaplin & Michael Harrold

UEFA and its member national associations have issued a resolution underlining European football's commitment to combating racism at the XXXVII Ordinary UEFA Congress.

UEFA and its member national associations have adopted a resolution emphasising European football's determination to eliminate racism from football.

The resolution, entitled European football united against racism, was adopted at the XXXVII Ordinary UEFA Congress in London on Friday and pledges that UEFA and the associations will step up their efforts to eradicate racism from football. It calls on players and coaches to make a full contribution to the campaign, and urges referees to stop or even abandon matches in the case of racist incidents. As part of a zero tolerance stance towards racism, strict sanctions are demanded in the resolution against officials, players and supporters guilty of racist behaviour.

This is the latest move in football's fight against racism. In March, the Professional Football Strategy Council (PFSC), comprising Europe's national associations (UEFA), clubs (ECA), leagues (EPFL) and players (FIFPro Division Europe), unanimously adopted a joint position paper aimed at combating racism and discrimination in the game.

The Congress resolution was ratified by the UEFA Executive Committee at its meeting in London this week. UEFA's disciplinary regulations for the 2013/14 season, also given the green light by the Executive Committee this week, have been revised to include tougher sanctions against racism.

"It is clear that UEFA's member associations and other stakeholders in the football family are unanimous that we need to do more to tackle this problem," said UEFA General Secretary Gianni Infantino.

"We strongly believe that our actions will speak louder than words, and we count on UEFA's member associations not only to support this resolution, but to implement it. This is a real issue … and I think I speak for every one of us when I say that it's time to put an end to racism once and for all.

The resolution adopted at the XXXVII Ordinary UEFA Congress:

• The UEFA Statutes provide that a key objective is to promote football throughout Europe in a spirit of peace, understanding, fair play and without discrimination of any kind.

• Similarly, UEFA's 11 key values contain a pledge that UEFA will adopt a zero-tolerance approach towards racism.

• These same 11 values declare that football must set an example. Football unites people and transcends differences. Respect is therefore a key principle of the game.

• Against this background, European football is united in its firm belief that racism and other forms of discrimination must be kicked out of football, once and for all.

• UEFA and its member associations hereby resolve to re-double their efforts to eradicate racism from football. Stricter sanctions must be imposed for any form of racist behaviour affecting the game.

• Referees should stop, suspend or even abandon a match if racist incidents occur. Following UEFA's three-step guidelines, a match will first be stopped and a public warning given. Second, the match will be suspended for a period of time. Third, and after coordination with security officers, the match will be abandoned if racist behaviour has not ceased. In such a case the responsible team forfeits the tie.

• Any player or team official found guilty of racist conduct must be suspended for at least ten matches (or a corresponding period of time for club representatives).

• If supporters of a club or national team engage in racist behaviour this must be sanctioned (for a first offence) with a partial stadium closure concerning the section where the racist incident occurred. For a second offence, this must be sanctioned with a full stadium closure, as well as a financial penalty. In addition, supporters found guilty of racist behaviour should be banned from attending matches in future by the state authorities.

• Clubs and national associations are required to run awareness programmes to tackle racism. Furthermore, disciplinary sanctions for any racist behaviour should be accompanied by such awareness programmes, which anti-racism organisations could helpfully assist with. Education will help to address the problem, both in football and in wider society.

• Players and coaches must also be leaders in the fight against racism. Speak out against it – it's part of your duty to football.

• UEFA is fully committed to these strong sanctioning and awareness policies and all national associations support the implementation of similar policies, having regard to their own domestic circumstances. Football is about leadership, both on and off the field. European football is united against racism. Let's put a stop to racism. Now.


13 fevereiro 2020

faça-se então um desenho (2)


Quanto anti-semitismo há nesta caricatura?

Uma representação de Netanyahu que cita os estereótipos dos desenhos nazis anti-semitas, com uma braçadeira onde se vê a estrela de David em vez da bandeira israelita (ou seja, liga esta violência aos judeus em geral, em vez de a ligar a Israel), a meter num forno crematório um caixão coberto com a bandeira palestiniana, mesmo por baixo da inscrição "Arbeit macht frei".

A mensagem parece clara: "der Jude" está a fazer aos palestinianos o que a Alemanha nazi lhe fez a ele.

A intenção do cartoon era chamar a atenção para o sofrimento do
povo palestiniano, vítima de uma ocupação injusta, abusiva, brutal e cada vez mais invasiva. Mas falha estrondosamente: porque exagera de tal modo a situação actual em Israel/Palestina que perde toda a credibilidade, porque relativiza o que aconteceu em Auschwitz e porque insulta a memória das vítimas do Holocausto.

Seja intencional ou por descuido do cartunista, parece-me que seria difícil conseguir  mais anti-semitismo que o que está patente neste cartoon. 

Alguns apontamentos soltos:

1. "Der Jude": ao escolher representar o primeiro-ministro israelita na tradição do anti-semitismo nazi, o caricaturista está a entrar perigosamente no terreno ideológico que reduz todos os judeus à figura ameaçadora do "judeu maligno" - "der Jude". É esta a crítica mais imediata à caricatura: tem de ser possível criticar a actuação de Israel sem usar - e reforçar! - o anti-semitismo de que as pessoas judaicas foram e continuam a ser vítimas.

2. "Arbeit macht frei": o cartoon compara o primeiro ministro de Israel a Hitler, e o sofrimento do povo palestiniano ao sofrimento do povo judeu na Alemanha nazi. Mas qual é a base factual que justifica a imagem de um "Holocausto dos palestinianos"?

Os números são estes (agradeço que corrijam se estiverem errados):

População judaica na Europa em 1939: 9,5 milhões
População judaica na Europa em 1945: 3,5 milhões
Assassinados na máquina do genocídio: 6 milhões (63% da população)

População árabe na Palestina em 1922: 670.000
População árabe na Palestina em 1945: 1.200.000
População árabe na Palestina em 2005: 4.420.000
Vítimas (palestinianas e israelitas) da guerra de ocupação israelita de 1948 a 2009: 14.500 (1,2% da população palestiniana em 1945)


Israel está a fazer uma guerra de ocupação contra os palestinianos, mas não instalou uma máquina de extermínio para apagar esse povo da face da terra. Não tem câmaras de gás. Não faz listas de nomes para deportar pessoas para campos de concentração onde se espera que morram de fome, doenças e exaustão. Não há fronteiras fechadas para impedir os palestinianos de escaparem à máquina da morte. Mesmo o horroroso gueto que é Gaza está muito longe de se comparar ao gueto de Varsóvia: em Gaza há subalimentação, mas não há crianças a morrer literalmente de fome pelas ruas; a densidade populacional em Gaza é de 5.000 habitantes/m2 (12.000/km2 na cidade de Gaza) contra os 146.000/m2 do gueto de Varsóvia.

3. Se as realidades são tão diferentes, porque é que chamam "Holocausto" à situação dos palestinianos sob ocupação israelita?

Mais: porque é que só se usa a palavra Holocausto quando o agressor é Israel? O napalm no Vietname não é holocausto, a perseguição aos Royinga, aos Yazidi ou aos Uigures não são holocausto, o genocídio dos Tutsi (um milhão em quatro meses) não é holocausto.

Arrisco uma hipótese: alguns caem na armadilha de usar a tragédia do povo palestiniano para atingir cruel e certeiramente todo o povo judeu no seu nervo mais sensível. E para poder ferir sadicamente o povo judeu, banaliza-se deliberadamente a palavra "Holocausto", aplicando-a a uma guerra de ocupação que causou 14.500 vítimas em 75 anos.

4. Um requinte de cinismo: europeus que, para agredir e humilhar o povo judeu, se servem de um crime terrível contra os judeus perpetrado por europeus.

5. Um requinte de sadismo: equiparar genocídio a guerra de ocupação, retirando peso simbólico àquele. 

6. Há quem argumente que esta menção a Auschwitz serve para lembrar a Israel de onde veio, e que não deve fazer aos outros o que lhe fizeram a eles. Para além de estar muito longe de ser o que lhe fizeram a eles, e para além de esta acusação esquecer os bombistas suicidas e os ataques que são lançados de Gaza contra Israel, convém ter presente que nenhum judeu em Israel precisa que lhe lembrem de onde veio. Qualquer um deles sabe muito bem, e muito melhor do que nós. Por exemplo, Amnon Weinstein, o luthier proprietário dos Violins of Hope, contou que à mesa da sua casa se sentavam ele, o pai, a mãe, e quatrocentos parentes assassinados no Holocausto. Amnon Weinstein está longe de ser um caso único. Por isso, dizer a esta gente que se deve lembrar do Holocausto é sinal de inacreditável arrogância e cinismo da nossa parte.

7. Arrogância e cinismo - e uma enorme falta de vergonha.
Perguntemos: porque é que os palestinianos estão a viver sob ocupação?
Porque os judeus europeus não encontraram um porto seguro em nenhum país da Europa. Porque a Reconquista cristã destruiu a situação de coexistência pacífica de que gozavam em El Andaluz. Porque os Reis Católicos e o seu Édito de Alhambra puseram em fuga mais de 100.000 judeus. Porque a Inquisição em Portugal e na Espanha os perseguiu sem dó nem piedade. Porque no massacre de Lisboa de 1506 uma população enfurecida sem razão matou mais de quatro mil. Porque ao longo de muitos séculos foram vítimas de pogroms em toda a Europa. Porque em meados do século XX a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos do mundo, pôs em prática um plano frio e eficiente de extermínio dos judeus europeus, para o qual contou com o apoio activo ou pelo menos com a passividade de grande número de outros países da Europa.

O sofrimento do povo palestiniano resultante da implantação do Estado de Israel no seu território é uma consequência directa do anti-semitismo dos europeus.

8. De cada vez que um Vasco Gargalo faz um cartoon como este, entre os judeus reforça-se a convicção de que o único lugar do planeta onde podem viver em relativa segurança é Israel, e que têm de lutar com toda a força para manter esse país e garantir a sua sustentabilidade - nomeadamente em termos de água. Pelo que o resultado imediato de um cartoon que usa uma linguagem anti-semita para criticar Israel é o agravamento da situação dos palestinianos, considerados obstáculos à segurança e à sustentabilidade de Israel.

Se era para ajudar o povo palestiniano, mais valia ao Vasco Gargalo fazer desenhos sobre outros temas. Pelo menos não estragava ainda mais.



faça-se então um desenho (1)



Julius Streicher, editor do semanário ferozmente anti-semita "Der Stürmer", publicou em 1938 o livro infantil "Der Giftpilz"/"O Cogumelo Venenoso". Este livro, muito lido nas escolas do III Reich, representava os judeus como pessoas fisicamente muito diferentes dos "arianos" e moralmente inferiores. As ilustrações eram do caricaturista mais importante daquele semanário anti-semita: Fips, pseudónimo de Philipp Rupprecht. A imagem que se vê acima ilustra o capítulo "como reconhecer um judeu": uma criança aponta as características do "corpo judeu", nomeadamente o "nariz curvo na ponta, fazendo lembrar um 6".
 
(Mais informações sobre o livro: aqui e aqui - o segundo link remete para um arquivo onde se encontram as traduções para inglês dos textos do editor Julius Streicher.)


Fips/Philipp Rupprecht não inventou este "corpo judeu" a partir do nada, antes aprofundou o estereótipo que viera a desenvolver-se ao longo de sete séculos. Segundo a medievalista Sara Lipton, no livro "What's in a nose?", „for many centuries Jews were indistinguishable in appearance from non-Jewish figures in western Christian art.” A alteração no modo de os representar, em desenhos religiosos de finais do séc. XIII, não terá tido a intenção de identificar os judeus como um grupo com características físicas diferentes, mas de chamar a atenção para a sua atitude junto ao Cristo agonizante na cruz „ostentatiously blind to Christ’s beauty and indifferent to Christ’s suffering, as bestial or evil“. O desenho de perfil, desviando o olhar da cruz, sublinhava o desprezo que lhes era atribuído. O nariz de tamanho exagerado não pretendia descrever uma diferença de fisionomia, mas simplesmente marcar as personagens malignas daquela cena. „The hook-nosed, pointy-bearded Jewish caricature was born“, e (ainda segundo Sara Lipton) a repetição da representação distorcida treinou nas pessoas a predisposição para ver uma diferença física nos judeus: „Viewers came to be trained to ‚see‘ significance in the noses of Jews.“

Na Alemanha do século XIX, durante o processo de emancipação dos judeus e consequente abandono dos sinais exteriores de diferenciação (como vestuário, corte de cabelo, etc.), a representação do "corpo judeu" com traços diferentes tornou-se ainda mais exagerada, com o objectivo de criar uma separação entre esse grupo e a restante população. O fosso escorava-se agora em factores biológicos imutáveis, no qual o tamanho e o desenho do nariz - muito mais do que a cor da pele - se tornou um elemento fundamental. A multiplicação destas caricaturas de judeu possibilitada pela intensa actividade editorial contribuiu para cimentar a ideia racista do "corpo judeu", reforçando simultaneamente o sentimento de superioridade estética dos "alemães".

Numa publicação de 1815, Johann Michael Volz apresenta uma série de tipos de judeu:


Em 1912, o hotel Kölner Hof de Frankfurt, que se orgulhava de não ter judeus entre os seus clientes, publicou uma série de etiquetas para fechar envelopes, nas quais o estereótipo anti-semita aparece mais acentuado:


O caricaturista nazi Philipp Rupprecht radicalizou essa imagem do "corpo judeu". Prescindindo inteiramente de detalhes de vestuário diferente, optou por simplificar e enfatizar o traço que distorce a fisionomia do "judeu" ao ponto de criar um estereótipo inconfundível: feições faciais repulsivas com nariz proeminente, testa baixa, lábios carnudos, orelhas grandes e salientes.


Estava criada a imagem standard do "corpo judeu", para usar como importante arma do anti-semitismo. E este estereótipo entrou com tal força no nosso imaginário cultural que ainda hoje é usado por caricaturistas menos atentos.

No entanto, e por saber bem que esta caricatura jogava ainda mais no campo da distorção que no do exagero, o autor do livro "O Cogumelo Venenoso" teve o cuidado de incluir o capítulo "como reconhecer um judeu" (aqui, em inglês), no qual o professor avisa os alunos de que esses traços distintivos não estão presentes de forma tão clara em todos os judeus, e que em alguns casos até é difícil perceber logo à primeira vista que se trata de um deles.

Simultaneamente, a imagem distorcida espalhava-se e ganhava um lugar estável no imaginário das pessoas. Alguns exemplos dessa economia de traço:

Philipp Rupprecht, "a verdade crua e nua":

Philipp Rupprecht, "O Judeu apresenta-se", 1943:


Vasco Gargalo, 2019:



Num artigo que analisa o anti-semitismo presente em caricaturas contemporâneas (do qual retirei algumas ideias e imagens de arquivo alemãs presentes neste post) Isabel Enzenbach conclui o seguinte:

Existe uma proximidade estrutural entre a caricatura e o anti-semitismo. O caricaturista e o anti-semita desenham - à excepção do tipo da "bela judia" - uma imagem de judeu repugnante. Ambos trabalham com imagens preconcebidas do corpo e com estereótipos. O "nariz judeu" tem um papel central na análise da motivação destas imagens, mas não é o único elemento. Em resumo: um nariz grande por si só não faz automaticamente de um judeu uma caricatura anti-semita (e nem todas as caricaturas sem nariz grande estão isentas de anti-semitismo). Mas: é um sinal de alarme. Tal como no caso de qualquer caricatura de um sujeito pertencente a um grupo vítima de discriminação, se o caricaturista não quiser cair na armadilha do estereótipo, ou reforçar intencionalmente uma imagem essencialista, tem de usar do máximo cuidado ao desenhar um judeu.

O caricaturista contemporâneo poderia alegar que a caricatura exagera naturalmente elementos que já estão presentes na pessoa representada. Mas:
- talvez esteja pré-condicionado para dar mais importância aos elementos fisionómicos do estereótipo, como notava Sara Lipton na frase citada no início deste post;
- tem obrigação de saber o risco que corre ao escolher aderir ao traço ideológico do semanário anti-semita "Der Stürmer";
- é possível fazer caricaturas de judeus sem se servir do estilo criado por Philipp Rupprecht, como se pode ver nas imagens abaixo de Woody Allen, Bob Dylan, Leonard Cohen, Nathalie Portmann, Mel Brooks.

Voltando ao artigo de Isabel Enzenbach, uma recomendação para os caricaturistas contemporâneos que não queiram ver o seu trabalho ser acusado de anti-semitismo:

Basicamente, existem algumas regras simples: ao desenhar políticos ou representantes israelitas é necessário evitar o exagero no tamanho do nariz, bem como outros traços corporais clássicos do desenho antissemita. O Estado de Israel deve ser simbolizado pela sua bandeira, e não pela estrela de David. Há muitas mais armadilhas para além destas, uma vez que o arsenal de elementos pictóricos anti-semítico é muito complexo e diferenciado. Por isso mesmo é necessário usar da máxima sensibilidade ao fazer estas caricaturas.


(William Medeiros)

 (The Simpsons)

 (Sajith Kumar)

 (Eno)

(Katie Miranda)