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20 junho 2024

House, de Amos Gitai



O meu terceiro post sobre os "Reflexos e Reflexões", que decorreram na semana passada no âmbito dos Berliner Festspiele, é sobre a peça de teatro "House", que vi no domingo. Ao longo de um quarto de século, o realizador israelita Amos Gitai filmou as pessoas de uma casa centenária em Jerusalém Ocidental, na rua Dor Dor ve Dorshav, que significa algo como "cada geração interpreta à sua maneira". Assim nasceu a sua trilogia Bait (Casa): um filme em 1980, outro em 1998, e o terceiro em 2005.

A companhia de teatro La Colline adaptou agora os três documentários, recriando em palco essa metáfora de uma terra ocupada. No centro, em relativa imobilidade, os operários palestinianos que servem os donos da casa. Por eles passam os moradores de cada época e os seus vizinhos, ao som de música palestiniana e judaica. Cada um fala da sua história e das razões que tem, e todos têm razão, muita razão. Até que no final, numa cena de enorme pungência e dignidade, um dos operários palestinianos se senta à boca do palco, e começa a fazer perguntas ao público. No tom calmo de quem sabe que já lhe roubaram tudo, mas que a verdade não se deixa roubar. É uma peça fortíssima, muito bem feita, com uma beleza própria, feita de inúmeras sobreposições. Os actores vêm da França, do Médio Oriente e do Irão, as personagens falam em árabe, inglês, francês, hebraico, iídiche, arménio e turco. Em Berlim, passou com legendas em inglês e alemão.

*** No final, Amos Gitai falou com o público. Começou por dizer que não podemos esperar da arte que mude a realidade. O máximo que faz é guardar a memória, de uma forma muito própria. Guernica, por exemplo: no final, quem venceu em Guernica?

Na sua metáfora da casa, mostra como as pessoas coexistem num ambiente tóxico. Cada um vê apenas a narrativa do seu lado. Mas já Isaac Rabin dissera, pouco antes de ser assassinado, que não é possível resolver o problema de forma unilateral. Como se viu, aliás, nas guerras mundiais: Hitler resultou da vitória de 1918. É fundamental aprender a entender o ponto de vista do outro, como lembra Mahmoud Darwish no seu belíssimo poema:


Insiste: sem ser capaz de sair das suas próprias razões e entender o lado do opositor, não haverá nunca um cessar das hostilidades. 

Alguns momentos do debate:

- Qual foi o maior desafio na passagem de "Bait" do cinema para o teatro?
- Foi um longo processo. Gosto de coisas híbridas. Passámos de uma narrativa cronológica para uma justaposição de fragmentos. 

- Em "House" já encontramos sementes do que estamos a viver hoje em dia?
- Quando fiz o filme, há 40 anos, o nível de negação dos meus compatriotas era muitíssimo mais alto que hoje em dia. Provavelmente pensava-se que, se ninguém falasse sobre os palestinianos, estes iriam acabar por se evaporar. Agora, depois de tantos episódios terríveis de violência, ambos os lados perceberam que nenhum deles vai desaparecer. Mas em 1980 incompatibilizei-me com a televisão israelita, porque me recusei a tirar do filme as partes dos palestinianos que trabalhavam na casa e a referência aos primeiros proprietários. E fui alvo de muita hostilidade por levar o filme à Berlinale.
Podemos dizer que avançámos um pouco, mas em termos políticos estamos a recuar imenso. 
Contudo, ao menos há finalmente a consciência de estarmos perante um conflito existencial ao qual não podemos fugir. 
Mesmo os políticos de esquerda: alguns deles pensaram que era possível fazer acordos com outros países, sem considerar os palestinianos. Agora já perceberam que é impossível. 
E os judeus deviam saber isso. Porque a sua própria experiência lhes mostra que não se consegue vencer um povo pela violência. 
Neste momento, estamos numa encruzilhada. E não sabemos por onde vamos seguir. 

- Nesta peça de teatro, senti a dor profunda da perda. Mas também alguma esperança. A esperança vai conseguir sobrepor-se à perda?
- A música que ouvimos ao longo da peça é palestiniana, feita por músicos palestinianos. Foi muito importante para mim fazermos isto juntos. A solução só pode passar por olhar nos olhos o ser humano que tenho à minha frente.
Sobre a esperança: em Nablus, fiz exactamente a mesma pergunta a um líder palestiniano, acusado de terrorismo. Respondeu-me: "Ser pessimista é um luxo que não nos podemos conceder."

A senhora do kibutz que já tomara a palavra no fim do debate sobre a Nakba e a Shoah (contei aqui) voltou a fazer o seu relato desesperado. Amos Gitai responde-lhe brevemente:
- O actual governo israelita não quer saber de vocês, não se interessa. Vocês são pessoas de esquerda. Mas penso que todos os israelitas, mais tarde ou mais cedo, terão de se confrontar com a questão que os palestinianos levantam: "porque não podemos ser donos da nossa casa?"

- O que diz sobre o boicote a Israel e aos artistas israelitas em curso?
- Pessoalmente, não me posso queixar. "House" tem convites para Londres, Roma, Madrid...
O que mostra que, em plena tsunami de ódio, há quem tenha uma atitude de abertura e vontade de dialogar. 

Uma pessoa que se apresentou como refugiada russa tomou o microfone para fazer várias acusações: 
- O sentimento de impotência é insuportável. O Estado alemão está completamente passivo, faz de conta, assobia para o lado. E o senhor: esteve aí a gabar-se de todos os lugares aonde vai levar a sua peça. Mas será que isso basta? Não vai fazer mais nada para resolver o problema?

O moderador tomou a palavra:
- Está a ficar cada vez mais normal dizer mal do Estado por tudo e por nada, haja ou não razão para isso. Esse hábito é perverso e perigoso. Certamente não ignora que estes quatro dias da iniciativa "Reflexos e Reflexões" foram largamente financiados pelo Estado alemão. 

E Amos Gitai, secamente:
- Quando falei das cidades que nos convidaram, estava a responder à pessoa que falou antes de si, e desejo muito boa noite a todos. 

Pousou o microfone, foi-se embora.

01 novembro 2023

contributos para um debate


Trago da página de facebook do Lutz Brückelmann este excerto de um debate com o seu irmão: "Querido irmão, Dizes que um Estado tem o direito à autodefesa, mesmo à custa de vítimas civis do inimigo. Não sou especialista, mas sei que o direito internacional permite a legítima defesa e parto do princípio de que uma certa quantidade de "danos colaterais" é aceite como inevitável. No entanto, o direito internacional proíbe ataques dirigidos a alvos civis e exige proporcionalidade.
Até lá, estamos de acordo, embora eu veja o direito internacional – que na língua alemã tem um nome que revela a sua problemática: „Völkerrecht“ „direito dos povos“ - apenas justificado como instrumento e a falta de melhor, ao contrário dos direitos humanos, que não protegem povos mas seres humanos, indivíduos, e para mim são de outra qualidade, essenciais. Não sei se os juristas vêem as coisas da mesma maneira, mas, do meu ponto de vista moral, o direito humano deve sempre prevalecer sobre o direito internacional.
Proporcionalidade:
Será um sinal de proporcionalidade quando, neste conflito de longa data, o rácio entre vítimas mortais palestinianas e israelitas é de 20:1? Isto aplica-se ao período entre 2008 e o agosto deste ano. Não tenho dúvidas de que, apesar do massacre de 7 de outubro, a guerra atual produzirá um rácio semelhante entre as populações civis.
Israel é economicamente, tecnologicamente, militarmente, e também em termos de liberdade de movimento, muito superior aos palestinianos. Porque então, na sua autodefesa, não consegue evitar um número tão alto de vítimas civis do outro lado? Incapacidade, falta de brio ou intenção?
Isto leva-me à questão da retaliação, que também levantaste e defendes por ser também uma medida defensiva de dissuasão. Penso que esta ideia já foi desmentida muito antes do atual conflito Palestina/Israel. A experiência ensina que a retaliação é contraproducente porque só faz aumentar o ódio. Lembra-te que o nosso pai contou-nos que, mesmo entre os anti-nazis, como os seus pais e ele próprio, os bombardeamentos das casas não os capacitaram nem motivaram para derrubar Hitler e por fim ao sofrimento. Confirmaram, pelo contrário, que o inimigo, os ingleses no caso, era o mal absoluto e não podia haver outra coisa do que o combate até à última gota de sangue. Vejo as hipóteses da população de Gaza de derrubar o Hamas como semelhantes às hipóteses de os alemães derrubarem Hitler em 1944. E a vontade do Hamas de se abster, por causa da retaliação, de futuros crimes igual à vontade de Hitler de fazer semelhante.
Mas sim, há dois casos em que a retaliação funciona:
1. a ameaça de retaliação quando afeta de forma credível os próprios decisores: a dissuasão nuclear da Guerra Fria. Mas isso é a ameaça da retaliação. Esta não aplica, porque já estamos em guerra. E
2. uma retaliação tão maciça que exclui a possibilidade de um contra-ataque: a aniquilação. Segundo Maquiavel: se fizeres o mal, fá-lo completamente! Esse certamente não queremos.
Estou convencido de que a retaliação no conflito Israel/Palestina e noutros locais é sempre, antes de mais, uma coisa: vingança. Considero vingança contraproducente e imoral, mesmo quando visa exclusivamente o agressor. Uma vingança coletiva então que intencionalmente ou „apenas“ como "dano colateral" aceita a morte de pessoas inocentes é um crime contra a humanidade e nunca se justifica. Tão pouco é apenas um excesso que possa de alguma forma ser compreendido e minimizado. Veria isso assim também se o direito internacional não estivesse de acordo comigo neste ponto.
Se concedêssemos um direito a retaliação com vítimas inocentes, a título de dissuasão, teríamos também de admiti-lo como justificação para o massacre de 7 de outubro. Há razões de sobra dos palestinianos para querer mostrar aos israelitas que não podem violar impunemente a Palestina. Provavelmente engasgaste-te neste momento: "O massacre de 7 de outubro justificou-se?“ - Pois: exatamente não! Nunca. Mas este crime podia ser racionalizado como dissuasor com os mesmos argumentos implausíveis. Talvez consideras relevante a diferença de que os terroristas do Hamas terem feito sofrer com um prazer tão exibicionista. Mas eu acho que o obsceno prazer exibido pelo assassino é negligenciável do ponto de vista da vítima. Se a garganta de uma criança israelita é cortada à frente da sua mãe ou se uma criança palestiniana é queimada viva à frente da sua mãe como "dano colateral" num bombardeamento, ou se simplesmente sufoca porque a ventilação no hospital falha porque Israel desligou a eletricidade, entre estes horrores não há, a meu ver, qualquer diferença relevante.
Vivendo fora da Alemanha durante já muitos anos, estou agora mais desperto do que antes para como o discurso público lá é caracterizado por um preconceito pro-Israel, que tem, naturalmente, causas bem conhecidas.
Lembro-me de dezenas, se não centenas, de programas noticiosos ou notícias de jornais que falam dos "ataques de retaliação" de Israel como se isso fosse perfeitamente normal e não fosse, pelo menos, moralmente questionável. Ninguém na Alemanha oficial e "decente" duvida do facto de que Israel é sempre quem se defende e os atacantes são sempre os árabes.
Os 2 milhões de palestinianos que estão presos em Gaza há 56 anos são os agressores. Quando saltam as vedações para fugirem e pisarem a terra de onde os seus pais foram expulsos e atiram pedras aos soldados israelitas que os empurram de volta com bastões e balas de borracha, são eles os atacantes. Os soldados israelitas são os defensores. E aqueles que são mortos vinte vezes mais são os atacantes. O facto de a defesa israelita produzir sempre muitas vezes mais vítimas é algo que o público alemão sabe mas que julga não merecer atenção.
Não me interpretes mal: é claro que não sou a favor de que Israel abra as fronteiras amanhã e devolva toda a terra (não todo o país, nunca a muita terra que em Palestina/Israel em 1948 foi propriedade legítima de judeus) a 5,5 milhões de pessoas e depois, todos juntos, se dotem de uma nova constituição. Mas não sou contra isso porque seria errado. Apenas porque é obviamente impraticável e acabaria num banho de sangue. Sou a favor da solução de dois Estados, por razões pragmáticas e humanitárias.
Nós, alemães - todos nós alemães decentes aprendemos a ver-nos carregados com o legado histórico do Holocausto, do crime tão grave contra o povo judeu que isso nos deixa eternamente em dívida para com eles. Foi assim que eu também o vi e senti.
Até que, pouco a pouco, me apercebi de que esta responsabilidade, este dever eterno, que continuo a sentir com a mesma intensidade, não é para com um povo mas para com todos os seres humanos ameaçados e maltratados.
Para poder cumprir este dever, o primeiro passo é tentar ser verdadeiro. Interrogar-me constantemente. Se sou a favor dos direitos humanos, como é que posso considerar aceitáveis ataques de retaliação que (também) afetam pessoas inocentes? Será que, neste aspeto, sou mais tolerante com Israel do que com os outros porque nós, alemães, devemos solidariedade a Israel? Tenho o direito de sê-lo, se outros sofrem? - Devo solidariedade antes de mais aos que sofrem, aos oprimidos, sobretudo aos que não têm poder. Estes são os habitantes de Gaza. Israel é tudo menos impotente. Israel tem dinheiro, uma sociedade altamente educada, tecnologia de ponta, um exército poderoso, e tem ainda a bomba nuclear e os EUA como garantes.
Um massacre como o de 7 de outubro é terrível, como foi terrível o 11 de setembro, mas não é mais uma ameaça existencial para o Estado Israel, para a sociedade e para toda a população do que foi o 11 de setembro para os EUA. Psicologicamente, posso compreender que os israelitas não sintam assim neste momento, tal como os americanos não sentiram isso depois do 11 de setembro. Nós, os Estados Unidos e os seus aliados, fizemos com que os países do Iraque e do Afeganistão, e indiretamente a Líbia e a Síria, pagaram, se não pela vingança de 3.000 mortes, a restauração do nosso sentimento de segurança com 1.500.000 vidas. (Vê na Google a entrada "Guerra ao Terror".) Israel está agora a fazer o mesmo com Gaza. No entanto, Israel não tem a desculpa que nós, ocidentais, tínhamos há 20 anos. Muitos de nós acreditavam e tencionavam não só livrar o mundo do terror, mas também levar a liberdade e a democracia a esses países. Israel não tem esse objetivo em relação à Palestina.
Então, o que é que isso significa, perguntas? Israel deveria deixar o ataque do Hamas sem resposta? Não. Os EUA também não teriam deixado o 11 de setembro sem resposta se não tivessem travado a guerra contra o Iraque e o Afeganistão. Demorou muito tempo, mas Bin Laden e os seus homens foram apanhados. E se não tivessem invadido o Iraque, não teria havido Estado Islâmico.
Podia ser consistentemente contra uma guerra de agressão e um bloqueio total de Gaza sem ter resposta à pergunta "Mas então o quê poderiam fazer?". Mas as minhas respostas são:
"Em todo o caso, não criem uma catástrofe humanitária através de um bloqueio total".
"Em todo o caso, não criem, em poucas semanas, um número enorme de vítimas inocentes, um múltiplo dos que morreram no massacre de 7 de outubro!"
"Melhorem as vossas medidas defensivas! Foram tão bons nisso, certamente poderão voltar a sê-lo."
"Sim, suportem este sofrimento sem fazer que outros inocentes sofram por ele!"
"Concentrem-se nos verdadeiros autores e nos seus mentores. Persigam-nos como fizeram após o atentado de Munique.“
"Acima de tudo, façam uma política de aproximação, retomem onde Yitzhak Rabin parou porque foi assassinado por um terrorista judeu."
A nós, alemães, eu digo:
"Libertem-se da obediência cega a Israel! Assumam a responsabilidade! Pensem por vós próprios, como Kant nos exigia. Não repitam mantras criados por uma geração - com razão - atormentada por uma grande culpa, que era de boa vontade mas ainda influenciada por uma visão nacionalista do mundo, que acreditava que povos devem a povos. Povos não devem a povos, pessoas devem a pessoas."


31 outubro 2023

vocês querem resolver o problema?

Tenho andado muito calada por aqui. Por excesso absoluto de trabalho, e por excesso absoluto de horror. O que se passou em Israel e o que se está a passar em Gaza deixa-me sem saber o que dizer.

Pouco depois do massacre dos terroristas do Hamas, fiz um apontamento no facebook:

Não tenho palavras para falar do sofrimento dos habitantes da massacrada "Terra Santa". Todos eles. Tantas tragédias - a que se junta o desespero de não ver uma saída para tanto horror.
Não tenho palavrões para insultar os terroristas do Hamas - perante aquela orgia de crueldade calculada, qualquer insulto fica aquém.
Também me faltam palavras para dizer a estupefacção perante o comportamento do Egipto, que mantém a fronteira de Gaza fechada "por motivos de segurança interna". A falta que às vezes faz uma Merkel...

Onde faltam as palavras, ergam-se os gestos de solidariedade. Aqui deixo uma lista de organizações que estão a ajudar no terreno, e precisam do nosso apoio: lista de organizações publicada no Sete Margens.


Tenho debatido bastante com uma amiga, também de Berlim, que me manda textos, filmes (entre eles, um inenarrável do Varoufakis) e apelos para participar em manifestações contra a guerra em Gaza. Tenho-lhe respondido assim: 


Começando pelo Varoufakis: pouco depois do massacre do Hamas, comparou o Hamas ao ANC. Isso é profundamente indecoroso, a vários níveis, e acho que não preciso de explicar porquê. Portanto: o que o Varoufakis diz não me interessa, porque ou é muito ignorante ou é muito desonesto ou está de tal maneira cego pela ideologia que não consegue reparar no sofrimento dos humanos.

Quanto ao Hamas: usa os civis palestinianos como reféns da sua própria estratégia de poder. Quer exterminar Israel, e quer criar naquela terra o seu próprio Estado de terror islâmico. Cometeu esta chacina sabendo perfeitamente que a consequência seria uma chacina muito maior por parte de Israel. Juntaram-se ali os mais terríveis interesses de um e do outro lado, e quem paga são os palestinianos, encurralados entre um Hamas que se serve deles como carne para canhão e um governo israelita na mão de fanáticos e de foragidos à Justiça. Que nos sirva de aviso: aceitar os motivos dos que advogam a violência, por mais justa que a causa nos pareça, conduz mais cedo ou mais tarde à chacina de civis.   

Portanto: quem, na Europa, quiser realmente ajudar os palestinianos, tem de se demarcar de forma muito clara do Hamas e de tudo o que possa ser estratégia favorável ao Hamas. Tem de se demarcar de quem, por exemplo aqui na Alemanha, diz que ficou muito contente com o massacre no festival, e de quem anda a assinalar casas onde moram judeus. A mim é que não apanham numa manifestação onde essas pessoas possam estar. 

Uno-me com toda a convicção aos protestos contra a guerra em Gaza, esse massacre de civis. Mas quero-me bem longe de dinâmicas de "free Palestine", porque infelizmente o Hamas está a usar essa causa em proveito próprio, e não nada está claro se o "free Palestine" significa "paz para o povo palestiniano" ou "fim a Israel". Recuso-me a participar no jogo do Hamas. Este está nos antípodas do interesse do povo palestiniano, como estamos a ver: o Hamas desejou ardentemente a catástrofe que se está a abater sobre os civis palestinianos, segundo o lema "quanto pior, melhor". Se não tivesse havido o 7 de Outubro, hoje era uma segunda-feira normal em Gaza. Bem sei que o "normal" já era péssimo, mas isto aqui é uma tragédia sem fim.

Quanto a todas essas teorias sobre a origem do anti-semitismo, mais a culpa original, etc., só me lembra um advogado que nos ia defender em tribunal e atalhou os nossos argumentos com esta pergunta: "vocês querem resolver o problema, ou só querem provar que têm razão?"

06 novembro 2015

"ruínas" (2)




Em Maio de 2014 nasceu no Sul da Alemanha um coro de alemães e refugiados sírios, chamado "Refúgio". Traduzo as palavras de um dos cantores:

"Chamo-me Ahmed Osman, e sou de Homs, na Síria.
Estive meio ano na prisão, três anos em fuga, e estou agora na Alemanha com a minha mulher e os nossos três filhos.
Obrigado, alemães, por nos abraçarem e acolherem.
Temos uma mensagem para todo o mundo:
Basta de sangue! Acabem com as guerras!
"Janna" significa paraíso. A nossa canção sobre o paraíso fala das cidades belíssimas da Síria, de onde viemos, e agora estão reduzidas a ruínas.
 Peço-vos, alemães: preservem a vossa Paz!"


10 maio 2015

70 anos depois














Setenta anos depois da derrota dos nazis, na praça que remata o Ku'damm, junto às ruínas de uma igreja que ali ficaram como cicatriz e memória, faz-se uma festa da Paz. Uma sobrevivente de Auschwitz canta com uma banda que une três religiões, perante um público variado que inclui mulheres de hijab e um grupo de crianças com deficiência mental que dançam animadamente ao som das melodias hebraicas, de Le Déserteur, Bella Ciao e Bandiera Rossa. Setenta anos depois estou numa festa no coração de Berlim, e parece que as ideias nazis estão profundamente derrotadas.

Parece. Mas não nos iludamos. O respeito pela dignidade humana - pela dignidade de todos os humanos - não é um combate ganho há setenta anos. É uma maneira de estar na vida, é enviar raízes para o futuro, é um permanente estado de alerta.

Esther Bejarano falou de tudo isso. Falou da sua convicção de "nunca mais" e do seu choque ao descobrir nos anos 60 que tantos nazis continuavam à solta e bem colocados na sociedade alemã, falou da farsa que é só agora julgar os poucos nazis que restam, enquanto os neonazis passeiam pelas ruas e fazem manifestações. Lembrou que a polícia faz questão de ignorar as pistas que apontam para terrorismo da extrema-direita. Disse que é um escândalo o dia 8 de Maio, o dia da libertação, não ser um feriado na Alemanha. Diz também que não gosta que falem dela como se a vida dela se resumisse a ser uma sobrevivente de Auschwitz. O mais importante na sua vida é o trabalho para a paz. Esta mulher, que foi perseguida pelos nazis apenas pelo seu sangue, é agora rejeitada pela comunidade judaica de Hamburgo, cidade onde vive desde 1960, devido às suas ideias demasiado críticas em relação à política de Israel contra os palestinianos.

Canta com a sua voz de noventa e tal anos, com uma energia de adolescente. Canta "quando se abrirá de novo o céu?", canta "Mir lebn ejbig" em iídiche.

Fiz alguns filmes, todos de péssima qualidade (ainda tenho de aprender muito antes de concorrer aos óscares). Mas deixo-os aqui, apenas como sinal do ambiente desta festa. Vejo agora que devia ter-me fixado menos na cantora e mais no grupo de crianças que dançavam - há setenta anos não havia lugar para eles nas ruas da cidade.

*

Canção de um rapazinho que queria ser pássaro para substituir os que desapareceram da árvore, mas a sua mãe não deixou, e ele conclui "a minha mãe não me deixou ser pássaro porque me amava muito":







"quando se abrirá de novo o céu?"




"vivemos eternamente":



"...apesar disso vivemos,
vamos viver e ver e sobreviver apesar dos apesares,
apesar disso vivemos - estamos aqui!"

"...wir leben trotzdem, wir werden leben und erleben und schlechte Zeiten überleben, wir leben trotzdem, wir sind da."

[ Adenda: eu devia dormir uma ou duas noites (anos?) sobre a tradução de um poema. Esta manhã ocorreu-me que não é adequado usar "apesar dos apesares" para "trotz" e "schlechte Zeiten", quando o que está em causa é o antisemitismo que levou ao Holocausto. Talvez jogar com as palavras "contra" e "ventos contrários"? Em suma: isto não é uma tradução, é um esboço de alinhavo. ]


19 dezembro 2014

sem surpresa



A alegria e naturalidade deste tango neste lugar: não me surpreenderia encontrar aí Jesus a dançar com Maria Madalena. Por contraste, ocorreu-me a surpresa e o embaraço de "As Sandálias do Pescador", quando o papa decide vender as riquezas da Igreja para ajudar os famintos. Impensável, inimaginável.

O mundo mudou: ninguém ficaria surpreendido se este papa resolvesse vender aos museus as vaidades dos Barberini, Bórgia, Medici & Cª, e transformar a Santa Sé numa extensão dos abrigos de Lampedusa.


11 setembro 2014

vocês desculpem, mas (a propósito de 11 de Setembro)




Vocês desculpem, mas quase sinto vergonha de lembrar o 11 de Setembro de 2001 porque, a cada ano que passa, mais nítida se vê a torpeza do aproveitamento mediático daquela tragédia, com o objectivo de criar uma janela de oportunidade para baralhar e dar de novo no jogo estratégico do Médio Oriente. Pobres vítimas do 11 de Setembro: a vida foi-lhes ceifada pela al-Qaeda, e a memória foi-lhes conspurcada pela máfia que se apoderou dos presidentes dos EUA.

Por estes dias fala-se muito do modo como o Estado Islâmico sabe criar realidades e imagens com o objectivo central de chocar os americanos, simplifiquemos assim, e discute-se se os meios de comunicação social ocidentais devem fazer o jogo deles. Oh, cambada de virgens! Não se terão apercebido que os do Estado Islâmico são simplesmente bons alunos? Observaram com atenção as televisões americanas no dia 11 de Setembro de 2001, a passar repetidamente imagens dos que saltavam das torres - especialmente aquele casal que saltou de mãos dadas -, e logo a seguir imagens de arquivo de um grupo de palestinianos em festa. Examinaram o fenómeno da manipulação dos povos a partir da gestão das notícias e das imagens, talvez até me tenham ouvido falar de quando vivíamos em San Francisco e, algumas semanas depois do 11 de Setembro, cancelámos a assinatura do jornal e arrumámos a televisão na cave, para podermos voltar a ser gente normal, sem deixar que o medo nos tolhesse os valores e o distanciamento que permite um olhar crítico.



 

Os nomes das vítimas do 11 de Setembro nos EUA estão inscritos num memorial no Ground Zero, organizados não por ordem alfabética, mas numa comovente rede de afectos. Tudo se sabe sobre essas 2.977 vítimas, os seus familiares, os seus sonhos cerceados, o seu heroísmo. Quanto às outras vítimas do 11 de Setembro, por exemplo as dezenas de milhares de iraquianos, tantas que já ninguém se dá sequer ao trabalho de as contar, não se lhes conhece o nome e as circunstâncias.

Por isso me envergonho de lembrar o 11 de Setembro de 2001, e de repetir as imagens cada vez mais transformadas em toques de sineta para fazer de nós cães pavlonianos. Porque nos mostram estas imagens? E nós, a salivar: salivamos ao serviço de quem?

Parte da resposta a esta pergunta pode vir de um 11 de Setembro anterior, noutro continente. Como dizia um amigo meu esta manhã, no facebook:

Há 41 anos, o Chile amanheceu banhado em sangue, para que os ricos pudessem continuar ficando mais ricos.




A Salvador Allende en su combate por la vida


(Pablo Milanés)
Qué soledad tan sola te inundaba
en el momento en que tus personales
amigos de la vida y de la muerte
te rodeaban.

Qué manera de alzarse en un abrazo
el odio, la traición, la muerte, el lodo;
lo que constituyó tu pensamiento
ha muerto todo.

Qué vida quemada,
qué esperanza muerta,
qué vuelta a la nada,
qué fin.

Un cielo partido, una estrella rota,
rodaban por dentro de ti.
Llegó este momento, no hay más nada
te viste empuñando un fusil.

Volaba,
lejos tu pensamiento,
justo hacia el tiempo
de mensajes, de lealtades, de hacer.

Quedaba,
darse todo al ejemplo,
y en poco tiempo
una nueva estrella armada
hacer.

Qué manera de quedarse tan grabada
tu figura ordenando nacer,
los que te vieron u oyeron decir
ya no te olvidan.

Lindaste con Dos Ríos y Ayacucho,
como un libertador en Chacabuco,
los Andes que miraron crecerte
te simbolizan.

Partías el aire, saltaban las piedras,
surgías perfecto de allí.
Jamás un pensamiento de pluma y palabra
devino en tan fuerte adalid.
Cesó por un momento la existencia,
morías comenzando a vivir.
(1973)


12 fevereiro 2014

God bless the grass





Malvina Reynolds - Sings the truth (1966)

God bless the grass that grows thru the crack.
They roll the concrete over it to try and keep it back.
The concrete gets tired of what it has to do,
It breaks and it buckles and the grass grows thru,
And God bless the grass.

God bless the truth that fights toward the sun,
They roll the lies over it and think that it is done.
It moves through the ground and reaches for the air,
And after a while it is growing everywhere,
And God bless the grass.

God bless the grass that grows through cement.
It's green and it's tender and it's easily bent.
But after a while it lifts up its head,
For the grass is living and the stone is dead,
And God bless the grass.

God bless the grass that's gentle and low,
Its roots they are deep and its will is to grow.
And God bless the truth, the friend of the poor,
And the wild grass growing at the poor man's door,
And God bless the grass.


20 dezembro 2013

postais de Natal (2)



(fotos tiradas deste site, que tem um bom artigo sobre o tema)

Se bem entendi, foi assim: o Paulo queria receber postais, e fez um site na internet para criar uma comunidade de troca. As pessoas acharam tanta graça à ideia, que hoje o postcrossing é um fenómeno de espírito natalício durante todos os dias do ano: uma pessoa, num país qualquer, dá-se ao trabalho de escolher, escrever e enviar um postal para alguém que pode viver do outro lado do mundo, ou na mesma cidade. Um gesto pelo prazer de alegrar o dia de um desconhecido, uma ponte que liga pessoas independentemente das nacionalidades, das crenças religiosas, das cores da pele e de tantos outros motivos de divisão. Também têm um blogue daqueles capazes de iluminar os dias mais cinzentos: de post em post vamos descobrindo o tanto que há de bom nestas gentes. Recentemente o postcrossing passou os trinta milhões de postais: trinta milhões de boas surpresas na caixa do correio, trinta milhões de sorrisos.

Com este meu jeito especial para estar no lugar certo no momento certo, tive a sorte de me cruzar com a Ana e o Paulo, de conversar bastante com eles, de ver o brilho nos olhos da Ana quando explica que a ideia não é proporcionar uma maneira de alguém aumentar a sua colecção de postais, mas multiplicar pequenos momentos de felicidade ao abrir a caixa do correio.  E até recebi dois postais deles - pelo que, segundo as minhas contas, eles já vão em 30.000.002 sorrisos.

Obrigada, Ana e Paulo. Gosto tanto de vocês e do que fazem, que até estava capaz de vos deixar passar à minha frente naquela famosa fila de espera (famosa para os leitores deste blogue, entenda-se) para as medalhinhas do Dez de Junho.


18 dezembro 2013

la conquête du pain


O Joachim trouxe-nos de Paris um presente muito especial: um pão.
"O pão da anarquia!" - anunciou ele, entre a graça e o entusiasmo. Melhor dizendo: de uma padaria de anarquistas, na qual todos os trabalhadores ganham o mesmo salário - 1350 euros líquidos. O pão tem um sabor muito bom - mesmo para lá do seu tom de vermelho vivo, e do belo fim de boca com taninos de justiça.
Fui-me informar um pouco mais (aqui e aqui, e no seu blogue: La conquête du Pain), e gostei do projecto: salário igual para todos, autogestão, procura de consensos, confiança nas pessoas (desconto automático no preço a quem disser que não tem muito dinheiro), generosidade, bio sem fundamentalismos, capacidade de fazer concessões à realidade.
Um pão admirável.




Transcrevo do site Rue 89:
Si le projet inspire la sympathie, la mise en pratique de l’autogestion reste, malgré la bonne volonté ambiante, encore à l’état d’ébauche. « Ce n’est pas de la vraie autogestion », commente Florence, affublée de son T-shirt à l’effigie du groupe de punk-rock Anti Flag.
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L’autorité irréductible

« Il y a toujours des enjeux de pouvoir »
A La Conquête du pain, personne n’a, théoriquement, de pouvoir sur personne. Au fond, l’autorité est refusée en bloc par les tenants de l’anarchie. Pas de doute sur leurs intentions : « On essaie de fonctionner de façon horizontale », dit Florence.
Ils reconnaissent ne pas tous être sur un exact pied d’égalité :
« On écoute d’abord ceux qui ont le savoir-faire. Si Pierre [un des cofondateurs, boulanger de profession, ndlr] dit qu’il faut pétrir de cette façon, on ne va pas le contredire. »
Ils réactivent, finalement, une vieille relation entre savoir et constitution d’un pouvoir. Certains invariants semblent à l’épreuve des expériences alternatives.
Florence termine sur un postulat indéboulonnable :
« Quel que soit le groupe humain, il y a toujours des enjeux de pouvoir. »
2

Eviter la division du travail, tant qu’on peut...

« Les tableaux de comptabilité, j’y pige rien »
Dans l’idéal, les entreprises anarchistes se passent de la spécialisation des tâches. Nul n’est censé être irremplaçable, car la compétence exclusive génère les privilèges.
Thomas : « Il faut une capacité à la rotation, pour éviter les nœuds d’étranglement. » Toutefois, la promesse est difficilement tenable. L’équipe divise le travail en quatre secteurs : logistique, vente, livraison et production. Et chacun a ses chasses gardées, à l’image des entreprises ordinaires. Pierre, cofondateur, est le principal en charge des lourdes questions administratives. Que personne ne lui envie :
« L’administratif fait chier tout le monde, on n’a pas assez d’expérience, on essaie de se le répartir comme on peut... Et les tableaux de comptabilité, par exemple, j’y pige rien. »
Tout bien pesé, les possibilités concrètes de rotation sont, ils ne le cachent pas, assez réduites. « Le roulement imposerait de former tout le monde. Je pourrais remplacer Pierre pour le four mais pas pour la pâte. » Il est des maillons sans lesquels la boutique ne peut pas tourner.
3

L’impasse du capital

« On est dans tellement de contradictions... »
Pas supposés peser dans les décisions, les moyens de production jugulent aussi leurs ambitions : « On est dans tellement de contradictions. On ne possède pas le capital, on a contracté un prêt de 250 000 euros », confesse Thomas. Propriété sans laquelle il est difficile de s’affranchir des influences extérieures.
Leurs locaux souffrent de grandes imperfections. Florence : « On a plein de bonnes surprises, les plombs qui sautent, l’eau qui coule du plafond, un jour un four a pété... » Bilan de ce dernier épisode : 32 000 euros, en (petite) partie financé grâce aux souscriptions :
« Les gens nous envoyaient des sous avec des petits mots, on a récolté 10 000 euros. »
Ils ont été contraints de verser « dans le productivisme à mort », confie Thomas. « On a des conditions de travail de fou. »
Ils voient aussi leurs exigences « bio » à la baisse : « La farine, les graines sont clairement bio, mais le beurre et les œufs, non, ça augmente les coûts matière de façon conséquente », certifie Thomas. D’autant que cela reviendrait à hausser les prix, ce qui ne colle pas vraiment à leurs objectifs.

La boutique de La Conquête du pain (Paul Conge/Rue89)

L’autogestion à petits pas

Ils s’en doutaient un peu : l’idéal politique n’est pas au rendez-vous. « L’autogestion, c’est un processus », reconnaît Florence. La tête sur les épaules, ils ne pèchent pas par excès d’idéalisme.
Tout de même, ils ont taillé un système de démocratie directe, et transparente, à leur image : « On essaie d’être cohérents avec nos engagements. On prend toutes les décisions collectivement, en cherchant le consensus. » Salaires, primes, orientations, grands et petits changements : tout y passe.
Une semaine sur deux, ils tiennent une assemblée générale de deux heures, visant à « raconter tout ce qu’on fait, et à examiner les points sur lesquels on n’est pas efficaces », résume Thomas.
Les désaccords sont rares, mais « il peut parfois y avoir un vote, lorsqu’on est en présence de positions vraiment tranchées... Dans ce cas, on a un consensus mou ».
Autogestion en demi-teinte, certes. Mais ils peuvent se targuer d’un succès assez solide : « On engrange un bénéfice important qui nous permet de rembourser nos dettes », commente Thomas. Entre 200 et 300 clients défilent chaque jour à la boulangerie. « 231 pour le 5 juillet ! » affirme-t-il après avoir consulté son ticket Z.
Le tout leur permet de pérenniser leurs activités.
« Les gens gardent en tête qu’on est une boulangerie anar et qu’on fait du bon pain. »
L’essentiel est par là.

16 março 2010

PÁSCOA, UMA ESPERANÇA ESTIMULANTE

Tal como a Primavera nos confirma a revitalização cíclica da natureza, a celebração anual da Páscoa reafirma a confiança na emergência da vida mais forte do que a morte.

Os recentes desastres naturais e a persistência de uma terrível crise económica, deixando milhares de famílias destroçadas pela praga do desemprego e da pobreza, lembram-nos, de forma dramática, que a paixão de Cristo assume um negro realismo nas imagens da morte e do sofrimento, regularmente actualizadas. Celebramos a Páscoa numa altura em que nos confrontamos com acontecimentos de tristeza e de desolação, sejam os que decorrem dos gritos de dor, no Haiti como na Madeira, no Chile como no Afeganistão e Turquia, sejam aqueles que corporizam os vergonhosos casos de pedofilia em instituições católicas ou que mostram o desespero dos que foram mais vitimados pela crise financeira.

Nuns casos, a destruição saiu à rua pela força dos elementos da natureza, lembrando ao homem a sua condição frágil, magnificamente retratada por Camões nestes versos de Os Lusíadas: Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno? Noutros casos, as forças da morte foram provocadas pela crise do sistema neo-liberal, assente numa lógica que está a sobrepor-se à própria razão do homem. O aumento das assimetrias sociais, tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, é a denúncia clara de um «progresso» que não põe a pessoa humana no centro. O messianismo secularizado, depois de ter visto as consequências desastrosas do mito da crença no progresso indefinidamente crescente, pretende agora afirmar-se através do mito do imperativo absoluto da revolução técnico-científica, ao serviço de um Estado omnipresente e das elites que o compõem e o perenizam. Este modelo de progresso, cujos benefícios de revelaram efémeros e enganadores, está agora a ser travestido na exaltação de uma tecnologia que robotiza e serializa, mostrando como a frieza da técnica está a impedir a eclosão de um mundo mais humanizado.

Felizmente que, ao lado das funestas notícias diariamente propaladas pela comunicação social, também há muitas alegrias celestes nesta terra, ainda que não detectáveis pela voracidade dos media. Um olhar atento poderá testemunhar realidades bem luminosas a acontecer diariamente. A corrente de solidariedade na sequência dos desastres ocorridos no Haiti e na Madeira revelam bem que no coração humano não está atrofiada a bondade. Muitas mais provas disso se verificam no anonimato quotidiano. O estilo de vida simples, o espírito de partilha, a capacidade de renunciar ao ter em nome da felicidade do outro e uma relação inteligentemente respeitosa com a natureza são exemplos de gestos que fazem diminuir o sofrimento e que incrementam relações humanas mais harmoniosas. Manda, por isso, o realismo que não podemos minimizar a gravidade do momento presente, acreditando ingenuamente que um mundo novo possa nascer da desordem actual. Mas também não devemos abandonar a esperança numa sociedade melhor, com a desculpa de que todas as utopias falharam. As previsões catastróficas em relação ao futuro, em vez de suscitarem alertas preventivos, vão-nos preparando psicologicamente para aceitar a inevitabilidade da desgraça. Pelo contrário, a capacidade de encarar o porvir com esperança pode transformar a presente crise numa bênção mobilizadora de energias. Todavia, as dificuldades tornam-se intransponíveis se deixarmos morrer a confiança, já que, como intuiu Picasso, a nossa maior perda não é a morte, mas aquilo que morre em nós enquanto vivemos.

Os cristãos acreditam que continua a avançar na história o sonho de Deus sobre a humanidade e sobre o cosmos. Esse sonho pareceu brutalmente interrompido na cruz, mas foi aí que se manifestou verdadeiramente a força da vida para lá da morte. Não há nada de contraditório, quando os cristãos, em nome desta esperança estimulante, se comprometem na transformação concreta da sociedade, sem caírem no logro das consolações fáceis.

22 dezembro 2007

Feliz Natal!

Feliz Natal a todos/as!
2008 seja a Esperança renovada num Mundo mais Justo e Pacífico.
* Saúde * Paz * Alegria *

20 março 2007

A propósito de guerras preventivas...

Tolerância: um exercício de liberdade e confiança

Ser tolerante implica aceitar correr o risco de confiar no outro, invocando valores comuns como a Vida, a Liberdade, o Conhecimento, a Dignidade Humana, etc. Apesar disto, não se pode ignorar que diferimos nas aspirações, na cultura, no estilo de vida, nos modelos socio-políticos, familiares, na religião, na expressão dos afectos, etc.


  • Não vale a pena apelar à tolerância a partir de atitudes defensivas (atendendo, por exemplo aos nossos interesses, segurança e bem-estar).


  • Não vale a pena apelar à tolerância se não queremos correr o risco do confronto com a novidade, escudando-nos na irredutibilidade da tradição e da religião, tomando-as como inquestionáveis e até rivais.


  • Não vale a pena apelar à tolerância se não nos dispomos a confiar no outro, tratando e exigindo ser tratado/a em plena igualdade.



1. Complacência e fragilidade das próprias convicções


“Tenho de ter cuidado para não dizer nada que critique ou fira as convicções religiosas de alguém...”


Nesta opção, o “viver e deixar viver” são entendidos numa perspectiva unidimensional. Isto é uma noção de “tolerância” pobre! que implica deixar as pessoas sozinhas com a sua fé e sensibilidades. Uma vez que as religiões têm propostas diferentes quanto à natureza e à essência de Deus e quanto ao sentido da vida humana, que mobilizam emoções e convicções íntimas, o respeito mútuo não passa de uma atitude complacente de silêncio e ausência de crítica.

Quem assim procede, não pretende entender perspectivas diferentes da sua, espera passar despercebido para não desencadear animosidades que julga podem vir a pôr em causa sua segurança e as suas certezas.

Por outro lado, a atitude complacente, mascara a fragilidade das próprias convicções e a dificuldade em deixar-se interpelar pelas mesmas, quanto mais pelas convicções dos outros!

Mas a religião não deve ser entendida como um reduto silencioso e fechado. O respeito mútuo não pode fundar-se na ausência da crítica, até porque a crítica já está implícita nas afirmações de qualquer credo.


2. Tolerância inócua e limites à liberdade de expressão


Uma outra atitude de respeito mútuo aceita que a crítica e a discussão entre religiões são aceitáveis e incontornáveis. Esta tolerância bidimensional aceita o debate insistindo em que a crítica deve ser séria, honesta e respeitosa.


“Tenho de ser sensível ao papel que religião desempenha na vida de alguém e não devo lidar de forma ligeira, sarcástica ou insultuosa”.


Segundo este modelo, o debate corre mal, não porque se dirimem argumentos, mas pelo tom ofensivo que possam apresentar. Esta forma de tolerância tenta combinar: busca da verdade, racionalidade e respeito. Esta tolerância que afasta o escárnio, a ofensa e o insulto, permite-nos compreender noções de sacrilégio e blasfémia, identifica os princípios que enformam o respeito pelas convicções humanas mais profundas e estabelece os limites da convivência pacífica.

Contudo, nesta tolerância bidimensional há uma falácia! O que é sério? O que é ofensivo? Estes conceitos não são neutros. São definidos de modo diferente por exemplo: consoante a época, os modelos culturais, religiosos, etc.

Em algumas tradições religiosas o debate recorre a metáforas. Há grupos sociais que consideram uma afronta a participação de mulheres numa discussão religiosa, independentemente da sobriedade do seu tom e, no tempo de Nero, seria impensável que um escravo, (ou mesmo um cidadão), se pronunciasse com ironia sobre a divindade do imperador.

O modo como os debates de natureza religiosa devem ser conduzidos é, em si mesmo, um problema sobre o qual os pontos de vista se dividem. Esta questão está imbuída pela ideia de que aí se toca nas regiões mais profundas da verdade, do conhecimento e dos valores. De facto, para a controvérsia religiosa não é fácil a observância de regras de um debate ponderado, racional e respeitoso. É difícil imaginar como a liberdade de expressão poderia ter evoluído se fosse psicologicamente inócua.[1]

Apesar disso, algumas pessoas agarram-se às suas crenças de forma tão devota e beata, que mesmo a crítica mais sóbria e respeitadora lhes parece um insulto ou um pecado mortal. Alguns são tão devotos e beatos que não conseguem suportar a crítica de um não-crente.

As religiões levantam questões importantes, (a existência e a essência de Deus, o sentido da existência humana, a morte, o mal), não apenas para os respectivos crentes, mas também comuns aos não-crentes, todavia não podem estabelecer os termos nos quais estas questões devem ser tratadas.

O tipo de resposta dada por uma pessoa, um grupo hierárquico, ou mesmo de um milhão de crentes, não pode impedir os outros de colocar as questões nos moldes que lhes parecerem mais apropriados e de responderem de formas diferentes.



3. Desafio à vivência da tolerância multidimensional


“As mutações económicas, tecnológicas, sociais e culturais da 2ª metade do séc. XX fizeram emergir um indivíduo novo, cuja maneira de ser, pensar, sentir e fazer as coisas difere profundamente dos seus antecessores. Algumas descobertas científicas, a globalização da economia, a flexibilidade generalizada que lhe é inerente, bem como as novas exigências de capacidade de reacção, a par da revolução das tecnologias de informação e comunicação, [da compressão espácio-temporal], etc. jogam um papel essencial no despertar deste novo tipo de individuo”.[2]

Chamamos “hipermoderno” a este indivíduo para destacar a ideia de excesso e de superação que caracterizam a nossa sociedade de modernidade exacerbada. Tentamos hoje compreender e explicar de que modo tantas mudanças perturbantes, tocam o Homem na sua mais profunda identidade”.[3]


Se as mudanças são tão profundas… Então, o desconforto perante as múltiplas respostas dos outros faz parte do risco que aceitamos correr porque este é o nosso aqui e agora comum à escala planetária.

Somos desafiados a vivenciar a tolerância multidimensional. As pessoas e os povos devem deixar-se uns aos outros livres para colocarem as questões da religião, da filosofia e outras, das formas que melhor traduzam o que necessitam explicitar e com os recursos que tiverem à sua disposição.

No mundo contemporâneo isto poderá significar que toda a panóplia de meios de comunicação, todas as técnicas, todas as artes, a fantasia, a ironia, a poesia, os jogos de palavras, o malabarismo das ideias – serão usados naquilo que muitos consideram o sagrado, o imaculado, o dogma. Como poderia ser de outro modo?

Questões tão importantes põem à prova os nossos recursos psicológicos e intelectuais. Conduzem-nos aos limites da disputa linear e para além deles. Porque dizem precisamente respeito aos limites, ao que é assustador, perturbador, impensável.

As religiões consagram os seus símbolos, fazem as suas afirmações, contam as suas histórias e tudo isto é lançado no mundo como propriedade pública, faz parte da mobília cultural e psicológica que não podemos pegar com pinças cautelosas. No nosso desejo de dar sentido à existência, temos que fazer o que podemos com as questões e as respostas que foram lançadas sobre nós.[4]


Todos buscamos a compreensão do mal, da doença, dos crimes, da morte!


… E os céus estão silenciosos
… E não parece haver um sentido nestas coisas!


O respeito pela sensibilidade de alguns não pode ser usado, em consciência, para limitar os meios disponíveis por outros para lidar com os problemas que são comuns a toda a Humanidade. Os grandes temas das religiões são demasiado importantes para serem enclausurados pela sensibilidade dos crentes.

As coisas que parecem sagradas para alguns, são, nas mãos de outros, objecto de brincadeira, riso, tomadas de forma ligeira, objecto de fantasia, cantadas, sonhadas ao contrário, plasmadas de forma divertida e caleidoscópica, baralhadas, abjuradas… É uma forma de procurar dar sentido à experiência humana, o que não significa que os temas e o modo de os tratar sejam intencionalmente ofensivos para os crentes![5]


Não há outra forma de vivermos juntos e de respeitar a vida de cada um, a não ser (re)inventando o modelo de tolerância multidimensional, que implica a aceitação da pluralidade de abordagens, aprendendo a caminhar e a crescer juntos/as, estabelecendo laços de confiança e amando-nos uns aos outros.


FONTES:

[1]
MILL, John Stuart – Da Liberdade, Ibrasa, São Paulo, 1963. – “Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade.” Quando Stuart Mill (1873) apresentou esta tese a favor da livre discussão, a perturbação da complacência e o abanão na fé, eram valores positivos no debate.
[2] AUBERT, Nicole e Roux-Dufort, Christophe - L'individu Hypermoderne , Érès, Paris, 2004.
[3] AUBERT, Nicole e Roux-Dufort, Christophe - Le culte de l'urgence. La société malade du temps, Flammarion, Paris, 2003.
[4]
Waldrom, Jeremy - "Who is my neighbor? humanity and proximity",
The Monist, vol. 86, no.3, (2003).
[5]
Waldrom, Jeremy - “The Satanic Verses” , Times Literary Supplement, Março, 1989 e incluído em Political Though.


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O Lugar das Religiões na Construção de um Mundo Mais Justo e Pacífico