Queria falar sobre o tema do momento, a acção de um grupo de activistas trans que interrompeu a peça "Tudo sobre a minha mãe" no São Luiz, no passado dia 19. Mas antes de falar sobre o caso, sugiro que vejam (aqui) o vídeo do que aconteceu e ouçam o que Keyla Brasil diz. Ela apresenta-se de corpo e alma, com toda a angústia, toda a dor, toda a raiva, toda a urgência. Para mim, é uma cena dilacerante. E para vocês?
Muitos queixam-se da violência desta invasão de um palco e do significado deste acto de ataque à liberdade da cultura. Entendo a frustração do público, entendo o temor do cancelamento, e entendo a necessidade de agir daquele grupo. Mais: invadir, interromper, ser excessivo e incomodar os outros é da natureza do activismo radical, desde sempre. E, conforme o caso e a causa, rimos, encolhemos os ombros, aplaudimos ou criticamos severamente. Ou será que algum dos meus leitores critica com a mesma convicção cada uma das invasões e interrupções que partilho na imagem acima? E vamos realmente propor que, doravante, em nome da ordem e da lei, todos os protestos sejam feitos por requerimento em papel azul de vinte e cinco linhas, com todo o juízo e civismo?
Quanto ao motivo do protesto: acredito que um dia - e espero que não demore muito - nos vamos surpreender por, no teatro ou no cinema, darem um papel de trans a um homem ou a uma mulher cis. Tal como hoje causaria estranheza ter um homem a interpretar uma personagem feminina, e responder aos protestos dizendo que se trata de um excelente actor perfeitamente capaz de representar uma mulher, que representar não é apresentar-se a si próprio, e que ninguém tem o direito de questionar a liberdade do encenador ou realizador.
O tempo em que era normal os homens tomarem no palco o lugar das mulheres e os caucasianos pintarem a cara para interpretar personagens negras já passou à História. O tempo de ser normal cis interpretarem personagens trans também passará. O caminho para lá chegar é que é pedregoso, infelizmente. Dá vontade de dizer, como Konstantin Wecker: "façam lá a revolução de uma vez, a ver se isto acalma." Uma revolução fácil de fazer: basta aceitarmos imediatamente que o natural é uma pessoa trans representar uma personagem trans, tal como é natural que uma mulher represente uma personagem feminina (ao contrário do que era entendido como "natural" antes do século XVIII).
Luta a luta, vamos avançando para um futuro mais justo para aqueles que determinadas épocas tiveram por hábito menosprezar. Gostaria que esse futuro chegasse mais depressa para os actores trans. E se acreditam realmente no que dizem sobre um bom actor ser capaz de representar tudo: pois que chegue então em breve o dia em que seja necessário recorrer a uma pessoa cis para um papel de trans pelo simples motivo de todos os actores e acrizes trans estarem ocupados a representar personagens cis...
Quanto aos comentários que se opõem à causa deste protesto:
1. "Ai, e tal, um actor representa um papel, não precisa de ser como a personagem para a representar bem, por este andar daqui a pouco só uma grávida pode representar uma grávida, e só um polícia pode fazer o papel de polícia".
É como imagino os argumentos do plano inclinado no século XVIII: "Representar não é representar-se a si próprio! Ponham-se com essas modernices de deixar as mulheres subir ao palco para interpretarem os papéis femininos, e um dia destes vão ver que até os negros querem, até os trans, e, se tivermos azar, até os alentejanos ou os cegos..."
2. "Ai, e tal, então agora os alentejanos vão exigir que só eles podem representar personagens alentejanas", li algures.
Deixando de lado a questão da comparação de alhos com bugalhos, porque identidade de género não é propriamente equiparável a proveniência geográfica, diria que se houvesse queixas constantes dos actores alentejanos por serem permanentemente ignorados devido à sua origem, a ponto de nem sequer se lembrarem deles para representar alentejanos, teríamos de olhar bem para esse problema e teríamos de arranjar uma solução. Em primeiro lugar, por uma questão de justiça. Em segundo lugar, porque se os deixássemos a falar sozinhos, mais cedo ou mais tarde algum deles iria protestar de uma forma que nos incomodaria. Em terceiro lugar porque é muito bonito dizer que um bom actor consegue interpretar qualquer papel, mas o que mais há por aí é filmes que nos enervam por causa da tentativa mal conseguida de imitar sotaques e falares de uma região determinada.
3. "Ai, e tal, então agora os papéis de cegos só podem ser representados por cegos? Lá se ia o 'Perfume de Mulher', esse desempenho brilhante do Al Pacino!"
Sinceramente: não sei. Os actores com deficiência visual que digam como é a vida deles, e se há injustiças que temos de corrigir.
Mas há duas coisas que sei:
- Se o Al Pacino não fizesse o 'Perfume de Mulher', teria tido um desempenho brilhante noutro filme qualquer. Perdia-se aquele filme, ganhava-se outro igualmente excelente.
- Um caso prático: a realizadora Cristèle Alves Meira conheceu o Duarte Pina quando andava a fazer castings para encontrar um actor com deficiência visual para o seu 'Alma Viva'. Por ter gostado tanto da sua personalidade e maneira de estar na vida, fez logo uma curta para o celebrar. É o filme Invisível Herói, que recebeu vários prémios, nomeadamente o "melhor filme europeu" no festival internacional de curtas de Clermont-Ferrand. Certamente haveria algum actor sem deficiência visual capaz de representar bem o papel daquele irmão em 'Alma Viva', e a história acabava ali. No entanto, ao procurar para o papel uma pessoa com deficiência visual, Cristèle Alves Meira acabou por nos enriquecer o mundo, porque deu a conhecer o Duarte Pina.
Em suma: escutar, tentar entender, abrir-se a outras realidades numa atitude de profundo respeito pelos Direitos Humanos - de preferência proactivamente, para não ser preciso chegar ao ponto em que os que são vítimas do nosso menosprezo avancem para um protesto radical.