06 dezembro 2023

esta manhã


Esta manhã já nevou (há uma semana que neva em Berlim), já tentei limpar a neve nos caminhos mas estava muito colada e ia fazer uma barulheira ao raspar, pelo que preferi esperar um bocado antes de acordar os vizinhos todos, já fui levar o Joachim ao trabalho para trazer o carro para casa que me dá muito jeito depois, já fui ver se havia bilhetes para o Beethoven7 da Sasha Waltz (não há), já comprei croissants e autênticas bolas de Berlim para o pequeno-almoço e já dei um bocadinho de água sem caneco nas redes sociais e já morreram crianças num gueto cercado e sem possibilidade de fuga. Já mataram crianças hoje, e têm todas um nome e uma mãe e uma rede de amor, e ainda agora tinham a vida toda pela frente.

Agora estou em casa, na minha cadeira ergonómica xpto, e mais o chão aquecido, e tudo, e essas crianças aqui tão perto. Pertíssimo de uma Alemanha cujos políticos ainda não perceberam que dar carta branca ao regime antidemocrático e racista de Netanyahu é fazer o contrário do que seria imperioso para quem anuncia como raison d'Etat a segurança dos judeus no seu país e no mundo inteiro. Cada criança que por estes dias é morta naquele gueto-prisão reforça as trincheiras e o ódio que inviabilizam a paz e a segurança tão urgentemente necessárias para todos os que habitam aquela terra.

O que impede os governantes alemães de entender uma evidência tão gritante?

05 dezembro 2023

Gito!

E então eu digo assim: - Gito! Help! Preciso de um gif para a página do Indiekino Magazine aqui da terrinha. Para ontem, se for possível. E então o Gito responde: - Ui! Viste bem como essa página está sobrecarregada com informação? É dificílimo chamar a atenção. E eu, logo: - Pensa nalguma solução. Eu sei que consegues. E ele, a rir: - Espertinha!

E alguns minutos depois envia-me isto:


Falta pouco para fazermos 10 anos de unidos na luta. Eu sempre com "ó Gito, por favor, desenrasca-me isto para ontem" e ele a protestar. (Vez por outra.) (Com razão, sempre.)

Foi o Gito quem se lembrou de fazer um cartaz para uma festa de Natal dos "Portugueses em Berlim" com o galo de Barcelos em cima da Porta de Brandeburgo. Foi o Gito quem teve a ideia de chamar 2314 à nossa associação cultural portuguesa em Berlim: a distância entre Berlim e Lisboa a vol d'oiseau. Os logotipos são dele, a andorinha, claro, também. 2314 km a vol d'hirondelle.

Perguntarão se este post é publicidade. Se calhar é. Mas eu prefiro vê-lo como serviço público. Se precisarem, está aqui (e pode ser que não esteja ocupadíssimo a aturar-me algum pedido): Gito Lima, gito.lima [] gmail.com


01 dezembro 2023

atrasos


Todos os dias publico na Enciclopédia Ilustrada a "palavra mágica" para o dia. Devia ser às 9 da manhã (minhas 10), mas poucas vezes consigo fazê-lo à hora certa. E quase sempre escrevo um comentário a explicar o motivo do atraso. Ontem, foi este: Bom dia. Estou aqui a pensar que desculpa dar para este atrasinho. Acho que vou escrever aqui uma série delas, e vocês sirvam-se à vontadinha (escolha múltipla):

- Tive de passar a ferro logo de manhãzinha (não perguntem) e para isso liguei a mediateca para ver o noticiário de ontem, que não pude ver por causa de termos passado o filme "Índia" no festival, e enquanto houve noticiário fui passando a ferro e dobrando roupa, e quando aquele acabou começou o do dia anterior, que também estava muito interessante, e eu sempre a passar, sempre a dobrar...

- Levei o Fox ao lago, e como nevou imenso fui andando mais devagar, com medo de escorregar nas placas de gelo que às vezes estão por baixo da neve fresquinha.

- Além disso, fui a conversar com uma vizinha que deve ficar muito irritada com as minhas perspectivas esquerdistas sobre quase tudo. O tema da discórdia de hoje era sobre o direito dos herdeiros das casas antigas do nosso belo bairro residencial a ganhar uns bons milhões para trocar as casas antigas por prédios horrorosos de apartamentos de luxo que acabam por transformar as poucas casas originais restantes em objectos anacrónicos e deslocados na paisagem. E como eu insistia na minha, e ela insistia na dela, a discussão demorou mais do que devia (caramba, não sei porque é que não me deixam logo ganhar estas discussões! É uma questão de eficiência: quanto mais depressa me derem razão, mais cedo podemos ir todos à nossa vida!)

- Cheguei a casa depois do passeio do Fox e lembrei-me daquela roupa que deixei a lavar de noite, e fui estendê-la.

- Liguei o computador, fui ver se havia alguma coisa interessante e urgente para ler. Havia. 🙂



29 novembro 2023

gatos e flores


Tenho andado muito calada por aqui porque por estes dias tenho andado a dar água sem caneco no Portuguese Cinema Days in Berlin e, lamentavelmente, não consigo dar água sem caneco em todos os lugares ao mesmo tempo. O festival está a correr muitíssimo bem e já nos deu muitas alegrias (à equipa que o prepara e ao público), mas também me faz correr ainda mais do que o habitual.

Quando tiver tempo, virei cá com mais vagar. Hoje conto apenas que, por burrice do algoritmo do facebook, o fantástico grupo Enciclopédia Ilustrada está em risco de ser eliminado. E lá se vai um arquivo com oito anos de publicações sobre a "palavra mágica" de cada dia, feitas por gente com formação, sensibilidade e experiências de vida extraordinárias.

Para assinalar o perigo, ontem propus que o tema fosse "gatos e flores". Tentando evitar assuntos fracturantes...

E depois, por brincadeira, publiquei isto:


Com esta é que aposto que ninguém contava: aqui está um prato que junta #gatos_e_flores.

Do tempo em que era conserto atrás de conserto em tudo o que tínhamos. A vida dos nossos objectos parecia uma autêntica filarmónica.




07 novembro 2023

lenha para a fogueira



Como ficaria o mundo se não houvesse redes sociais? Pessoalmente, eu perderia imenso. Mas: e o mundo?

Por estes dias, fujo do twitter. De cada vez que lá vou, encontro-o cheio de ódio, e de manipulações que excitam o ódio.

Ontem, por exemplo: na Alemanha, o escândalo do dia era um infantário que queria mudar o seu nome. De "Anne Frank" para "Descobridores do Mundo" (em alemão soa de forma muito positiva: abertura, curiosidade pelo mundo, iniciativa, dinamismo, etc.)

Esta decisão vem já do início deste ano, como parte de uma reformulação geral do funcionamento do infantário. Queriam ter um nome mais adequado a crianças daquela idade, e que estivesse ligado ao novo projecto pedagógico. Além disso, segundo a directora, os pais estrangeiros não se identificavam com este nome. ("Por que no te callas?", como dizia o outro.)

Lembraram-se de trazer o assunto para a ribalta justamente agora, num momento em que os judeus em todo o mundo se sentem ameaçados, em que o anti-semitismo na Alemanha é um tema central e o debate está a ser conduzido no sentido do reforço desenfreado de um primo daquele: o anti-islamismo.

Por estes dias, o caso apareceu posto nestes termos: "De repente, querem tirar 'Anne Frank' do nome de um infantário alemão!" (este "de repente" foi, como é óbvio, uma invenção do venenoso Bild), "Para não incomodar os imigrantes, querem outro nome" e, porque para o ataque ser completo ainda faltava reforçar a imagem negativa das regiões da antiga RDA, "na região onde em tempos um bando de neonazis queimou o Diário de Anne Frank".

Claro que o twitter foi ao rubro. E até os jornais sérios perderam o pé num finca-pé desnorteado.

Dá vontade de perguntar se está tudo maluco. Mas é pior: está tudo com vontade de acreditar nas piores maluquices, e de as ir atirar para as redes sociais com o prazer de quem mantém viva uma fogueira.

Ontem à tarde veio a notícia de que se recuou na decisão: de momento, o nome não muda. O que me parece mal.

Fosse eu o presidente da Junta daquela terra, e mudava. Miúdos de 3 anos - alemães ou não - não têm de ser confrontados com a tragédia de Anne Frank. Em troca, dava o nome "Anne Frank" a uma rua, a um hospital, a um liceu. Tirava de um lado, multiplicava do outro.

Aliás: para bem ser, como sinal de solidariedade para com os judeus alemães que neste momento se sentem isolados e à mercê do ódio, esta era a semana em que, em cada cidade alemã, se mudava o nome de uma rua, de um centro de dia, de um hospital. Infelizmente, nomes é algo que não falta: Anne Frank, Etty Hillesum, Janusz Korczak, e tantos outros. E em cada cidade haveria uma escola que esta semana ganhava o nome de alguém que se elevou acima do horror do seu tempo pelo exemplo de coragem ética: Sophie Scholl, Irena Sendler, Aristides Sousa Mendes, entre - felizmente! - muitos outros.

Esta parte, seria fácil. Apesar do que se diz nas redes sociais, sobre este assunto há um consenso vasto. E o país está a precisar de se unir em torno de iniciativas com este simbolismo.

Mais complicado seria tentar um olhar mais abrangente: uma Rua da Naqba, uma Praça de Gaza, um Hospital dos Mártires da UNRWA, uma escola Iqrit e um liceu Bir Am.

A ausência de consenso sobre isto é, também, lenha altamente indendiária para a fogueira que está a devorar a paz social.



01 novembro 2023

contributos para um debate


Trago da página de facebook do Lutz Brückelmann este excerto de um debate com o seu irmão: "Querido irmão, Dizes que um Estado tem o direito à autodefesa, mesmo à custa de vítimas civis do inimigo. Não sou especialista, mas sei que o direito internacional permite a legítima defesa e parto do princípio de que uma certa quantidade de "danos colaterais" é aceite como inevitável. No entanto, o direito internacional proíbe ataques dirigidos a alvos civis e exige proporcionalidade.
Até lá, estamos de acordo, embora eu veja o direito internacional – que na língua alemã tem um nome que revela a sua problemática: „Völkerrecht“ „direito dos povos“ - apenas justificado como instrumento e a falta de melhor, ao contrário dos direitos humanos, que não protegem povos mas seres humanos, indivíduos, e para mim são de outra qualidade, essenciais. Não sei se os juristas vêem as coisas da mesma maneira, mas, do meu ponto de vista moral, o direito humano deve sempre prevalecer sobre o direito internacional.
Proporcionalidade:
Será um sinal de proporcionalidade quando, neste conflito de longa data, o rácio entre vítimas mortais palestinianas e israelitas é de 20:1? Isto aplica-se ao período entre 2008 e o agosto deste ano. Não tenho dúvidas de que, apesar do massacre de 7 de outubro, a guerra atual produzirá um rácio semelhante entre as populações civis.
Israel é economicamente, tecnologicamente, militarmente, e também em termos de liberdade de movimento, muito superior aos palestinianos. Porque então, na sua autodefesa, não consegue evitar um número tão alto de vítimas civis do outro lado? Incapacidade, falta de brio ou intenção?
Isto leva-me à questão da retaliação, que também levantaste e defendes por ser também uma medida defensiva de dissuasão. Penso que esta ideia já foi desmentida muito antes do atual conflito Palestina/Israel. A experiência ensina que a retaliação é contraproducente porque só faz aumentar o ódio. Lembra-te que o nosso pai contou-nos que, mesmo entre os anti-nazis, como os seus pais e ele próprio, os bombardeamentos das casas não os capacitaram nem motivaram para derrubar Hitler e por fim ao sofrimento. Confirmaram, pelo contrário, que o inimigo, os ingleses no caso, era o mal absoluto e não podia haver outra coisa do que o combate até à última gota de sangue. Vejo as hipóteses da população de Gaza de derrubar o Hamas como semelhantes às hipóteses de os alemães derrubarem Hitler em 1944. E a vontade do Hamas de se abster, por causa da retaliação, de futuros crimes igual à vontade de Hitler de fazer semelhante.
Mas sim, há dois casos em que a retaliação funciona:
1. a ameaça de retaliação quando afeta de forma credível os próprios decisores: a dissuasão nuclear da Guerra Fria. Mas isso é a ameaça da retaliação. Esta não aplica, porque já estamos em guerra. E
2. uma retaliação tão maciça que exclui a possibilidade de um contra-ataque: a aniquilação. Segundo Maquiavel: se fizeres o mal, fá-lo completamente! Esse certamente não queremos.
Estou convencido de que a retaliação no conflito Israel/Palestina e noutros locais é sempre, antes de mais, uma coisa: vingança. Considero vingança contraproducente e imoral, mesmo quando visa exclusivamente o agressor. Uma vingança coletiva então que intencionalmente ou „apenas“ como "dano colateral" aceita a morte de pessoas inocentes é um crime contra a humanidade e nunca se justifica. Tão pouco é apenas um excesso que possa de alguma forma ser compreendido e minimizado. Veria isso assim também se o direito internacional não estivesse de acordo comigo neste ponto.
Se concedêssemos um direito a retaliação com vítimas inocentes, a título de dissuasão, teríamos também de admiti-lo como justificação para o massacre de 7 de outubro. Há razões de sobra dos palestinianos para querer mostrar aos israelitas que não podem violar impunemente a Palestina. Provavelmente engasgaste-te neste momento: "O massacre de 7 de outubro justificou-se?“ - Pois: exatamente não! Nunca. Mas este crime podia ser racionalizado como dissuasor com os mesmos argumentos implausíveis. Talvez consideras relevante a diferença de que os terroristas do Hamas terem feito sofrer com um prazer tão exibicionista. Mas eu acho que o obsceno prazer exibido pelo assassino é negligenciável do ponto de vista da vítima. Se a garganta de uma criança israelita é cortada à frente da sua mãe ou se uma criança palestiniana é queimada viva à frente da sua mãe como "dano colateral" num bombardeamento, ou se simplesmente sufoca porque a ventilação no hospital falha porque Israel desligou a eletricidade, entre estes horrores não há, a meu ver, qualquer diferença relevante.
Vivendo fora da Alemanha durante já muitos anos, estou agora mais desperto do que antes para como o discurso público lá é caracterizado por um preconceito pro-Israel, que tem, naturalmente, causas bem conhecidas.
Lembro-me de dezenas, se não centenas, de programas noticiosos ou notícias de jornais que falam dos "ataques de retaliação" de Israel como se isso fosse perfeitamente normal e não fosse, pelo menos, moralmente questionável. Ninguém na Alemanha oficial e "decente" duvida do facto de que Israel é sempre quem se defende e os atacantes são sempre os árabes.
Os 2 milhões de palestinianos que estão presos em Gaza há 56 anos são os agressores. Quando saltam as vedações para fugirem e pisarem a terra de onde os seus pais foram expulsos e atiram pedras aos soldados israelitas que os empurram de volta com bastões e balas de borracha, são eles os atacantes. Os soldados israelitas são os defensores. E aqueles que são mortos vinte vezes mais são os atacantes. O facto de a defesa israelita produzir sempre muitas vezes mais vítimas é algo que o público alemão sabe mas que julga não merecer atenção.
Não me interpretes mal: é claro que não sou a favor de que Israel abra as fronteiras amanhã e devolva toda a terra (não todo o país, nunca a muita terra que em Palestina/Israel em 1948 foi propriedade legítima de judeus) a 5,5 milhões de pessoas e depois, todos juntos, se dotem de uma nova constituição. Mas não sou contra isso porque seria errado. Apenas porque é obviamente impraticável e acabaria num banho de sangue. Sou a favor da solução de dois Estados, por razões pragmáticas e humanitárias.
Nós, alemães - todos nós alemães decentes aprendemos a ver-nos carregados com o legado histórico do Holocausto, do crime tão grave contra o povo judeu que isso nos deixa eternamente em dívida para com eles. Foi assim que eu também o vi e senti.
Até que, pouco a pouco, me apercebi de que esta responsabilidade, este dever eterno, que continuo a sentir com a mesma intensidade, não é para com um povo mas para com todos os seres humanos ameaçados e maltratados.
Para poder cumprir este dever, o primeiro passo é tentar ser verdadeiro. Interrogar-me constantemente. Se sou a favor dos direitos humanos, como é que posso considerar aceitáveis ataques de retaliação que (também) afetam pessoas inocentes? Será que, neste aspeto, sou mais tolerante com Israel do que com os outros porque nós, alemães, devemos solidariedade a Israel? Tenho o direito de sê-lo, se outros sofrem? - Devo solidariedade antes de mais aos que sofrem, aos oprimidos, sobretudo aos que não têm poder. Estes são os habitantes de Gaza. Israel é tudo menos impotente. Israel tem dinheiro, uma sociedade altamente educada, tecnologia de ponta, um exército poderoso, e tem ainda a bomba nuclear e os EUA como garantes.
Um massacre como o de 7 de outubro é terrível, como foi terrível o 11 de setembro, mas não é mais uma ameaça existencial para o Estado Israel, para a sociedade e para toda a população do que foi o 11 de setembro para os EUA. Psicologicamente, posso compreender que os israelitas não sintam assim neste momento, tal como os americanos não sentiram isso depois do 11 de setembro. Nós, os Estados Unidos e os seus aliados, fizemos com que os países do Iraque e do Afeganistão, e indiretamente a Líbia e a Síria, pagaram, se não pela vingança de 3.000 mortes, a restauração do nosso sentimento de segurança com 1.500.000 vidas. (Vê na Google a entrada "Guerra ao Terror".) Israel está agora a fazer o mesmo com Gaza. No entanto, Israel não tem a desculpa que nós, ocidentais, tínhamos há 20 anos. Muitos de nós acreditavam e tencionavam não só livrar o mundo do terror, mas também levar a liberdade e a democracia a esses países. Israel não tem esse objetivo em relação à Palestina.
Então, o que é que isso significa, perguntas? Israel deveria deixar o ataque do Hamas sem resposta? Não. Os EUA também não teriam deixado o 11 de setembro sem resposta se não tivessem travado a guerra contra o Iraque e o Afeganistão. Demorou muito tempo, mas Bin Laden e os seus homens foram apanhados. E se não tivessem invadido o Iraque, não teria havido Estado Islâmico.
Podia ser consistentemente contra uma guerra de agressão e um bloqueio total de Gaza sem ter resposta à pergunta "Mas então o quê poderiam fazer?". Mas as minhas respostas são:
"Em todo o caso, não criem uma catástrofe humanitária através de um bloqueio total".
"Em todo o caso, não criem, em poucas semanas, um número enorme de vítimas inocentes, um múltiplo dos que morreram no massacre de 7 de outubro!"
"Melhorem as vossas medidas defensivas! Foram tão bons nisso, certamente poderão voltar a sê-lo."
"Sim, suportem este sofrimento sem fazer que outros inocentes sofram por ele!"
"Concentrem-se nos verdadeiros autores e nos seus mentores. Persigam-nos como fizeram após o atentado de Munique.“
"Acima de tudo, façam uma política de aproximação, retomem onde Yitzhak Rabin parou porque foi assassinado por um terrorista judeu."
A nós, alemães, eu digo:
"Libertem-se da obediência cega a Israel! Assumam a responsabilidade! Pensem por vós próprios, como Kant nos exigia. Não repitam mantras criados por uma geração - com razão - atormentada por uma grande culpa, que era de boa vontade mas ainda influenciada por uma visão nacionalista do mundo, que acreditava que povos devem a povos. Povos não devem a povos, pessoas devem a pessoas."


31 outubro 2023

vocês querem resolver o problema?

Tenho andado muito calada por aqui. Por excesso absoluto de trabalho, e por excesso absoluto de horror. O que se passou em Israel e o que se está a passar em Gaza deixa-me sem saber o que dizer.

Pouco depois do massacre dos terroristas do Hamas, fiz um apontamento no facebook:

Não tenho palavras para falar do sofrimento dos habitantes da massacrada "Terra Santa". Todos eles. Tantas tragédias - a que se junta o desespero de não ver uma saída para tanto horror.
Não tenho palavrões para insultar os terroristas do Hamas - perante aquela orgia de crueldade calculada, qualquer insulto fica aquém.
Também me faltam palavras para dizer a estupefacção perante o comportamento do Egipto, que mantém a fronteira de Gaza fechada "por motivos de segurança interna". A falta que às vezes faz uma Merkel...

Onde faltam as palavras, ergam-se os gestos de solidariedade. Aqui deixo uma lista de organizações que estão a ajudar no terreno, e precisam do nosso apoio: lista de organizações publicada no Sete Margens.


Tenho debatido bastante com uma amiga, também de Berlim, que me manda textos, filmes (entre eles, um inenarrável do Varoufakis) e apelos para participar em manifestações contra a guerra em Gaza. Tenho-lhe respondido assim: 


Começando pelo Varoufakis: pouco depois do massacre do Hamas, comparou o Hamas ao ANC. Isso é profundamente indecoroso, a vários níveis, e acho que não preciso de explicar porquê. Portanto: o que o Varoufakis diz não me interessa, porque ou é muito ignorante ou é muito desonesto ou está de tal maneira cego pela ideologia que não consegue reparar no sofrimento dos humanos.

Quanto ao Hamas: usa os civis palestinianos como reféns da sua própria estratégia de poder. Quer exterminar Israel, e quer criar naquela terra o seu próprio Estado de terror islâmico. Cometeu esta chacina sabendo perfeitamente que a consequência seria uma chacina muito maior por parte de Israel. Juntaram-se ali os mais terríveis interesses de um e do outro lado, e quem paga são os palestinianos, encurralados entre um Hamas que se serve deles como carne para canhão e um governo israelita na mão de fanáticos e de foragidos à Justiça. Que nos sirva de aviso: aceitar os motivos dos que advogam a violência, por mais justa que a causa nos pareça, conduz mais cedo ou mais tarde à chacina de civis.   

Portanto: quem, na Europa, quiser realmente ajudar os palestinianos, tem de se demarcar de forma muito clara do Hamas e de tudo o que possa ser estratégia favorável ao Hamas. Tem de se demarcar de quem, por exemplo aqui na Alemanha, diz que ficou muito contente com o massacre no festival, e de quem anda a assinalar casas onde moram judeus. A mim é que não apanham numa manifestação onde essas pessoas possam estar. 

Uno-me com toda a convicção aos protestos contra a guerra em Gaza, esse massacre de civis. Mas quero-me bem longe de dinâmicas de "free Palestine", porque infelizmente o Hamas está a usar essa causa em proveito próprio, e não nada está claro se o "free Palestine" significa "paz para o povo palestiniano" ou "fim a Israel". Recuso-me a participar no jogo do Hamas. Este está nos antípodas do interesse do povo palestiniano, como estamos a ver: o Hamas desejou ardentemente a catástrofe que se está a abater sobre os civis palestinianos, segundo o lema "quanto pior, melhor". Se não tivesse havido o 7 de Outubro, hoje era uma segunda-feira normal em Gaza. Bem sei que o "normal" já era péssimo, mas isto aqui é uma tragédia sem fim.

Quanto a todas essas teorias sobre a origem do anti-semitismo, mais a culpa original, etc., só me lembra um advogado que nos ia defender em tribunal e atalhou os nossos argumentos com esta pergunta: "vocês querem resolver o problema, ou só querem provar que têm razão?"

07 outubro 2023

"Mãe! Tive um acidente!"

 

Esta semana fui vítima de um scam por telefone. E quando descobri, soltei gritos de alívio...

O telefone tocou, ouvi uma voz de mulher a chorar completamente à rasca: “Mãe, tive um acidente!” – e chorava, chorava, chorava.

Daí a nada, passou a uma polícia, que me disse que a Christina (elementar: Ao ouvi-la dizer "Mamã!" e desatar a chorar, disse automaticamente “Então, Christina, o que aconteceu? Há feridos?”) não tinha respeitado a prioridade de outra pessoa, e a outra pessoa – uma mulher de 30 anos, com 3 filhos, família monoparental – tinha morrido ali mesmo.

Agora não comecem a cantar de galo, “ai Helena, parece impossível, como é que foste cair nessa? Ai eu cá a mim isso não me acontecia...” – porque se calhar acontece. Só espero que nunca vos aconteça. Porque, sei-o agora, uma pessoa escapa a dúzias de tentativas de phishing no mail e no whatsapp, mas não está preparada para manter a racionalidade quando houve a "filha" a chorar completamente destroçada depois de um acidente horroroso por culpa dela.

Aqui a artista só pensava “que horror, que vai ser daquelas crianças?” e “que horror, que vai ser da minha filha?” e "tenho de a levar imediatamente a um psi" - e foi colaborando com a “polícia”, em estado de choque. Disseram-me que o procurador exigia sigilo absoluto para proteger o anonimato da vítima e da minha filha, e para confirmar que era eu pediram-me o nome, a data de nascimento e a morada. E o nº do telemóvel, caso tivessem de me contactar quando eu estivesse a caminho do tribunal. Sim, eu própria reviro agora os olhos, sim, só vos estou a contar para vos avisar. E depois disseram que era preciso ir entregar uma caução de 50.000 euros no tribunal administrativo. Eu disse que não tinha dinheiro nenhum em casa. “E que coisas de valor tem?”

Pimbas. Já foste.

Não conto mais que isto, porque estou aqui para vos avisar mas escuso de me envergonhar ainda mais.

Disseram que iam falar com o procurador, e ver se ele aceitava uma caução daquele valor, e que ligavam em breve. Como nunca mais ligavam, decidi telefonar à Christina para a esquadra, ou a prisão, ou o hospital psiquiátrico que devia ser o lugar dela no estado em que se encontrava. Atendeu com uma voz muito jovial, que eu – de tal modo embrenhada nesta terrível história – interpretei como sinal de que estava encharcadíssima em calmantes. Só ao fim de duas ou três frases é que perguntei: "não tiveste um acidente hoje?"

Agora estou aqui a temer que me venham assaltar a casa, depois da descrição que fiz, ou que façam roubo de identidade. Mas nem queiram saber o alívio que senti por a minha filha não estar envolvida num acidente horroroso.

O que aprendi com isto: - Vou escrever cem vezes, à mão: "quando te pedirem informações ou dinheiro, desligas o telefone e ligas directamente ao teu familiar/amigo que está envolvido na história". A ver se crio realmente um mecanismo automático suficientemente forte para se sobrepor ao grito lancinante "Mãe! Tive um acidente!" - Vamos criar uma senha na família, para termos a certeza de que quem está a pedir dinheiro é a pessoa que pensamos que é. (Sabendo que isto não funcionaria quando acreditamos que a "filha" do outro lado está muito à beira do ataque de nervos.) - Ajuda imediata é dizer que já pusemos o telefone em alta voz para as pessoas que estão ao nosso lado ouvirem também.

--- Ainda não assaltaram a casa. Se calhar acharam que, sem dinheiro em casa e com tão poucos objectos de valor, não vale a pena. Ou então vieram, espreitaram para dentro, e viram a casa tão desarrumada que devem ter pensado "nããã, isto vai dar muito trabalho, vamos mas é trabalhar noutro sítio de leitura mais fácil."

03 outubro 2023

conta-se em Weimar que...

 


Na praça do teatro, o local onde foi escrita a constituição da república de Weimar, à volta da estátua de Goethe e Schiller: uma instalação a lembrar a tragédia dos refugiados.

Algum dia teria de acontecer: na Enciclopédia Ilustrada, o tema do dia foi "Weimar". Tentei sintetizar o que sei numa espécie de “as obras completas de Shakespeare em 90 minutos”. Agarrem-se bem, cá vamos nós. A minha Weimar começa com uma mulher. Já existia antes, é claro, mas era uma terra mais ou menos igual às outras
- ai caramba! Ainda agora comecei e já estou a dizer asneiras. Antes desta mulher, já lá havia alguma história: Lucas Cranach pai morreu ali no auge da fama que os seus calendários Pirelli do Renascimento lhe davam, e no auge da riqueza ganha também graças à máquina de impressão que comprara a Gutenberg, com a qual imprimia os escritos do seu amigo Martinho Lutero; e também Bach ali passou, e até passou umas semanitas na Bastilha do palácio antigo, onde ficou preso por ter decidido mudar de empregador sem pedir autorização como deve ser, e onde aproveitou o sossego de não ter a choradeira de futuros compositores como o Carl Philipp Emanuel Bach, criancinha de colo à época, aproveitou o sossego, dizia, para compor o cravo bem temperado, segundo dizem –
onde é que eu ia? Ah, já sei: Weimar seria uma terra mais ou menos igual às outras até ao dia em que uma muito culta Anna Amália, de 16 anos, foi apressadamente casada com o também muito jovem duque, para garantir descendência àquele nome antes que a frágil saúde do rapaz o levasse desta para melhor. E cumpriu: quando enviuvou, aos dezoito anos, já era mãe de um principezinho e estava grávida de outro. Tudo isto aconteceu por meados do século XVIII, quando andavam a introduzir o cultivo da batata na região. Muito ciosa da educação do filho, Anna Amalia foi à universidade de Erfurt buscar um dos mais importantes autores do Iluminismo, Christoph Martin Wieland, que veio arejar a cabeça do príncipe adolescente e de caminho traduziu peças de Shakespeare para o dar a conhecer no teatro da terra. E assim ia a vida, com Anna Amália a juntar à sua volta uma bela grupeta de intelectuais, a fazer muito pela vida cultural da região, a tratar de criar uma excelente biblioteca feminista avant la lettre (entre os livros centenários e os volumes habituais à época, havia uma surpreendente quantidade de livros de mulheres, sobre mulheres ou para mulheres), a criar uma escola de artes para elevar o nível cultural da população. Foi então que Wieland convidou Goethe a vir passar uns dias a Weimar, “parece-me que vais gostar”, terá ele dito. Goethe, que andava pelos 25 anos e já tinha escrito “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, veio, encontrou uma corte a viver literalmente em cima de caixotes porque o palácio ducal tinha ardido quase completamente (sobrou a Bastilha do Bach, ao menos isso) – e ficou. Uma dama da corte, Charlotte von Stein, deve ter sentido a atracção do abismo, porque andou décadas a tentar dar modos - lá está: corteses - àquele génio intempestivo. Acabou por desistir quando Goethe meteu em casa uma “barregã”, a Christiane Vulpius, e quando partiu apressadamente para Itália, mais que farto dos tantos espartilhos que lhe impunham. Pois Goethe lá foi a Itália, lá voltou feliz e contente, lá recebeu das mãos do grão-duque (o Carl-August, sabem? Aquele dos cães Weimaraner) uma casinha muito jeitosa mais perto do centro da cidade, que na realidade eram duas: a casa virada para a rua, uma autêntica casa de fachada onde ele recebia as visitas importantes, e por trás dessa a casa onde vivia com a “barregã” e o seu filho August. Nas traseiras desta, o jardim onde ele fazia as suas experiências botânicas, e os pavilhões onde guardava as suas colecções de pedras, esqueletos de animais, e tudo o mais que lhe interessava. Goethe regressou tão cheio de boas impressões que contagiou todos com a febre da Itália, e lá foi a corte conhecer também esse universo tão diferente das terras de Weimar.













Entretanto: entra Schiller em cena. A princípio ficou-se por Jena, a 20 km de Weimar. Goethe devia achar que Weimar era demasiado pequena para ambos. Só ao fim de vários anos é que Goethe se dignou falar com “o outro”, e acabaram por ficar amigos. Embora nunca se saiba o que significa “amigos” quando se trata de Goethe. Na terra, conta-se que terá tido o crânio do seu amigo Schiller em cima da sua secretária. Eu cá não sei de nada, ouço coisas destas e lembro-me logo do museu que exibia o crânio de Napoleão aos sete anos de idade. Além disso, Schiller era tão remediadinho que o deitaram numa vala comum, e ainda hoje não se sabe bem a quem pertencem os ossos desencontrados que muitos anos mais tarde foram buscar a esse cemitério para depositar numa urna mais digna, ao lado da de Goethe, no monumental túmulo da família ducal. Schiller sai de cena, demasiado cedo como todos os que vêm ao mundo por bem. É a vez de Napoleão chegar a Weimar e ser recebido – que remédio! – com todas as honras no novo palácio ducal. Foram tempos difíceis em Weimar, com os soldados franceses a saquear e destruir tudo o que podiam. Conta-se na terra que Christiane Vulpius, a mulher com quem Goethe vivia há mais de vinte anos, defendeu a sua casa – as duas, aliás, a de trás, e a da fachada para a rua – com unhas e dentes, e por isso Goethe decidiu casar com ela numa de Sturm und Drang. Também se diz que eles não defenderam nada, limitaram-se a albergar naquela famosa casa alguns dos chefes franceses. E também se diz que Goethe terá decidido casar com a sua companheira porque, perante o devastador cenário de tantas mortes e destruição, terá pensado em fazer alguma coisa acertada na vida. Em todo o caso: em meia dúzia de dias tomou a decisão e consumou: casou com "a sua barregã". O que provocou grande escândalo em Weimar. Mas a mãe do Schopenhauer abriu uma pequena brecha no muro de resistência da corte, dizendo: “Se o Herr Goethe lhe deu o seu nome, nós seremos capazes de lhe oferecer um chá.” E convidou a nova Frau Goethe para o seu salão. Pouco antes das invasões francesas e daquela vitória perto de Jena que abriu a Napoleão o caminho para leste, chegara a Weimar uma russa, filha e irmã de czares, neta de Catarina, a grande, recentemente casada com o filho de Carl August. Este escrevera uma carta muito humilde ao czar, dizendo que sempre tivera esse sonho, sem que ousasse dizê-lo em voz alta, mas ao saber que um primo dele casara o seu filho com uma das princesas russas, vinha agora temerariamente patati-patata. E foi assim que a pobre da Maria Pavlovna, coitadita, veio de São Petersburgo para Weimar. Ao chegar, pensou que o palácio ducal seria a residência familiar para as férias no campo. Mas não, era mesmo ali que faria o resto da sua vida, e lá tentou fazer o melhor que podia. Por sorte, pouco depois de casar teve de fugir às tropas francesas e regressou a casa durante algum tempo. Matar saudades da vida urbana, coisas assim. Mas não há guerra que sempre dure (“infelizmente...”, terá ela suspirado) (isto sou eu a imaginar), e lá voltou para Weimar, onde assumiu as suas funções com dignidade e sentido de dever. Quando a vida te dá limões em forma de um Herr Goethe já entradote, convidas Liszt para vir morar na tua província e tentas dar nova força à vida cultural da terra, agora com música. Foi isso mesmo que a princesa russa fez, e correu bem: tal como anteriormente muitos escritores tinham procurado aqui a proximidade de Goethe, em meados do século XIX vários compositores estiveram muito presentes na cidade. O mais famoso será com certeza Wagner, e talvez viesse mais por causa da filha de Liszt que pelo colega propriamente dito, e aqui estreou Tannhäuser. Para além de dar novo fôlego à vida cultural da cidade, Maria Pavlovna fez muito mais por Weimar: desde elevar o nível político do ducado e garantir uma protecção especial devido à aliança com a Rússia, até uma obra social muito abrangente, em grande parte paga do seu próprio bolso, que fez dela uma grã-duquesa muito amada. Na segunda metade do século XIX não acontece nada de realmente empolgante na cidadezinha, excepto em termos de marketing: reforça-se a ideia da importância histórica da cidade no panorama cultural alemão, põe-se em frente ao teatro uma estátua de Goethe e Schiller, ambos do mesmo tamanho e volume (na vida real, eram o Bucha e o Estica), com as mãos unidas por uma coroa de louros que Goethe entrega a Schiller, mas tendo cada um deles o olhar no seu próprio horizonte. A estátua foi feita com o bronze de canhões fundidos oferecidos pelo rei da Baviera. Canhões dos turcos, diga-se de passagem - e pergunto-me que diria Goethe, o do divã ocidental-oriental, sobre isso. Damos agora um salto de várias décadas até ao fim da primeira guerra mundial. Em 1919, a pacata cidade é sacudida por duas enchentes: os estudantes que procuram a nova escola, a Bauhaus, onde se sentem parte de um movimento inebriante de modernidade; e os deputados que fogem aos violentos tumultos de Berlim para aqui escreverem com mais sossego a constituição da república recém-criada. A população de Weimar olha para toda esta gente com perplexidade. Particularmente o pessoal da Bauhaus, essas raparigas de cabelos curtos que andam misturadas com rapazes, esse estranho Itten que faz no parque de Goethe cerimónias esotéricas com os seus (e as suas!) estudantes em trajes menores. Os deputados regressam a Berlim com a sua constituição escrita paredes meias com Goethe e Schiller, Wagner e o Shakespeare de Wieland. A Bauhaus fica. As mães da cidade ameaçam os filhos: “se não comes a sopa toda, vêm por aí os da Bauhaus!”




Pintura mural de Oskar Schlemmer no edifício de oficinas da Bauhaus.

Talvez os meninos não tenham comido a sopa toda - e quem veio foram os nazis. A Turíngia, onde fica Weimar, é uma das primeiras regiões onde se implantam. Weimar adora Hitler, Hitler adora Weimar – e apropria-se da sua herança histórica, e manipula-a a seu bel-prazer. Uma das primeiras promessas do partido NSDAP, se ganhar as eleições, é expulsar a Bauhaus de Weimar. A escola muda-se para Dessau em 1926, e junto à primeira casa Bauhaus, a Haus am Horn, constroem-se casas como os nazis acham que deve ser – lado a lado, apesar de terem sido construídas anos depois, parecem cem anos mais antigas.





Memorial dos povos Sinti e Roma vítimas dos nazis.


Memorial dos judeus vítimas dos nazis.

O campo de concentração de Buchenwald é construído numa colina junto à cidade, na floresta onde Goethe tanto gostava de passear, e durante oito anos ali serão cometidos diariamente crimes hediondos. No centro da cidade constroem um hotel “para mil anos”, como o Reich, com uma única varanda virada para a praça onde fica também a casa de Lucas Cranach. A varanda do Führer. A população da cidade enche a praça e chama o seu querido Führer em brados festivos. E é aqui, precisamente aqui, que Weimar me provoca enorme tristeza, profundo desalento: depois dos escritos de Lutero que Cranach distribuía, depois da música de Bach nas igrejas, de inúmeras encenações das peças de Shakespeare e de Schiller no teatro, de todo o trabalho de Goethe, depois de tantos salões culturais, depois da biblioteca e da escola de artes da Anna Amalia, depois das obras de apoio social da Maria Pavlovna, depois de todo o esforço para implantar valores humanistas na sociedade e elevar o nível cultural da população: Weimar foi um dos primeiros lugares onde os nazis se conseguiram estabelecer.

29 setembro 2023

Nagorno-Karabakh

 


Nagorno-Karabakh. Nem tenho palavras para dizer a tristeza.

Uma sociedade em fuga precipitada, deixando para trás tudo isto, que parece tão pouco e é imenso: o quotidiano.

E a pergunta para a qual não tenho resposta: porque é que a vontade de um político poderoso pode valer mais do que a voz e a História de um povo?

Tinha esperança que as potências deixassem de mover povos para aqui e para ali como peões num jogo de xadrez. Mas não.

E suspeito que este seja mais uma das frias jogadas de Putin:
- Ah, com que então, ó Arménia minha, estavas a fazer olhinhos à Europa? Pois então, embrulha. - Pega no telefone, liga ao presidente do Azerbaijão:
- Está? Está lá? Era só para dizer que têm luz verde. Amanhã podem avançar.

Não tenho palavras para dizer a sensação de impotência.











liberdade interior

 

Hoje o google homenageia Mihaly Csikszentmihalyi. Fui ler um bocadinho sobre ele, fiquei muito interessada, mas com um nome assim fica difícil falar sobre ele. Uma pessoa diz "sabem, aquele psicólogo que tem um nome difícil de pronunciar?" e os interlocutores respodem "sim, nunca sei se é para dizer fróide ou frêude".

Coisas da vida, na Europa: nasceu em Rijeka, na Itália...

Gostei desta citação: "A repressão não leva à virtude. Quando as pessoas se reprimem por medo, suas vidas são necessariamente diminuídas. Só por meio de disciplina livremente escolhida a vida pode ser aproveitada e e ainda assim dentro dos limites da razão." Tenho pensado muito nisso a propósito do nosso/meu consumismo e de pararmos de destruir o planeta. Não é por medo que reduzi substancialmente o consumo de carne e as viagens de avião. É por convicção. E isso dá liberdade interior, em vez de me aprisionar numa disciplina auto imposta.



não têm pão, vão ao MacDonald's

 

Ainda dentro do tema do post de ontem, "o riso que desarma", trago do mural de facebook de uma amiga um apontamento sobre o escândalo do momento na Áustria: "O chanceler austríaco. do partido conservador, cristão e agarrado ao poder desde 1955 (se não me falha a memória, arranjou sempre como, não vou agora googlear).
Num discurso para os funcionários do partido, foi gravado a dizer o que pensa realmente da pobreza que, naquele país, vai bater à porta de muitas famílias, muitas delas monoparentais, nas quais as mulheres trabalham a tempo parcial e (já no meu tempo assim era) se encontram no limiar da pobreza, que é uma forma de dizer que são pobrezinhas, mas não tanto como em África e/ou na América do sul ou nas índias. Então saem-lhe preciosidades como: [as pessoas no limiar da pobreza] têm pouco dinheiro? Então têm de trabalhar mais. As crianças não têm uma refeição quente por dia? Um hambúrguer do Macdonald's cumpre essa missão, que aquilo com um pacote de batatas fritas fica em 3 euros e qualquer coisa e não me venham dizer que neste país as pessoas não têm 3 paus para gastar numa refeição!
Primeiro mundo, Europa, grande país do "verdadeiro socialismo" nos idos anos 70 do século passado."

Será que estes políticos perderam o sentido de decência? Ou nunca o tiveram, mas têm conseguido disfarçar melhor?


28 setembro 2023

o riso que desarma



Friedrich Merz, o actual líder da CDU (aquele partido que tem "cristão" no nome), disse na televisão isto que se segue:

"A população nem quer acreditar quando vê que 300.000 requerentes de asilo são rejeitados mas não saem do país, e recebem todos os benefícios, todos os cuidados médicos. Ali os temos sentados nos consultórios dos dentistas para pôr os dentes como novos, ao passo que os cidadãos alemães não conseguem vagas para consultas."

Como tinha de ser, chovem críticas de todos os lados. Porque a estratégia de dizer mentiras para pôr os desgraçados contra os ainda mais desgraçados não resolve problema nenhum e cria ainda mais tensões sociais. Porque este tipo de discurso é, de facto, o discurso da extrema-direita populista, que aposta no ódio para ganhar lugares no Parlamento, e ao ser repetido por alguém de um partido até agora considerado democraticamente decente acaba por se banalizar e tornar socialmente aceitável. Porque clonar e multiplicar o ódio e a discórdia tão prolificamente semeados pela extrema-direita não dá votos ao centro (quem iria escolher a cópia quando pode votar no original?). Mas, até agora, a melhor reacção que encontrei foi esta, do magazine satírico Der Postillon: "Homem abandona o seu país, paga milhares de euros a traficantes de refugiados, quase morre num barco insuflável e vive meses e meses num centro de alojamento de massas para obter obturações dentárias baratas."





27 setembro 2023

última geração


No domingo de manhã saímos cedinho de casa para ir assistir à maratona de Berlim. A festa que se sabe: um milhão de pessoas nos passeios, aplaudindo com entusiasmo milhares de desconhecidos que lhes passam à frente. Aqui e ali bandas, baterias de samba, solistas diversos a animar o ambiente.

Para mim, é um dos dias mais especiais do ano nesta cidade. Um milhão de pessoas unidas a fazer a festa, a conversar umas com as outras, a partilhar comentários e exclamações, a passar a alegria de sorriso em sorriso.

Começou bem, como sempre: chegámos a tempo de apanhar um lugar à frente, mesmo na curva, para vermos bem os corredores. Do outro lado da rua uma banda tocava jazz.




Mas daí a pouco o ambiente tornou-se muito sombrio. Sirenes de polícia. Carrinhas cheias de polícias. Um aparato bélico de motas de polícia às voltas no nosso cruzamento. De um carro saíram comandos especiais em busca de activistas da Última Geração, por temerem que alguns se colassem à rua e impedissem a maratona. O público aplaudiu-os muito.

De facto, ali perto havia uns engraçadinhos que, enquanto esperávamos os primeiros corredores, se deitavam no meio da rua para brincar com os nossos medos. E assim conseguiram dar cabo da boa disposição despreocupada daquela manhã.



No público, houve reacções de impaciência. Houve quem ameaçasse ir comer um bom bife, como retaliação. Quem dissesse que não é assim que estes activistas conquistam adeptos para as suas causas. E eu a pensar: então a vida humana no planeta está com os dias contados, e vocês estão a discutir retaliações e pedagogias?

Os activistas da Última Geração começaram por atirar puré ou sopa de tomate a quadros famosos nos museus, melhor dizendo: aos vidros que protegem quadros famosos nos museus. Depois, desataram a colar-se às ruas em cruzamentos importantes, obrigando o trânsito a parar. No princípio das férias escolares do Verão 2023 conseguiram colar-se às pistas do aeroporto berlinense, obrigando o aeroporto a parar e assim estragando os planos de férias a muitas famílias. Na semana passada atiraram cores garridas à Porta de Brandeburgo. Os políticos andam há meses a falar em tornar bem mais severas as penas para este tipo de crimes. O que me parece uma resposta errada, ineficaz e ridícula. Porque o nome "Última Geração" não acontece por acaso. Pelo contrário: descreve aquilo que esses activistas pensam sobre o que será o seu futuro. E é ridículo pensar que uma pena de prisão pode meter medo a quem já decidiu não ter filhos porque o planeta está a tornar-se num lugar infernal.

Os activistas da Última Geração sentem-se desesperados. Sabem o que nos espera a muito breve prazo. Sabem que os desequilíbrios actuais são irreversíveis. Sabem que as catástrofes a que assistimos em 2023 é o novo normal, e que o novo normal em 2024 vai ser ainda pior. Sabem que é urgente travar a fundo para que a situação não fuja completamente ao controlo.

Mais complexo ainda: as pessoas da Última Geração sabem que nós também sabemos, e não entendem a nossa reacção. Como é possível que continuemos a nossa vidinha como sempre, apesar de sabermos tão bem como eles que, dentro de poucos anos, os nossos filhos viverão num contexto de séria escassez de água, num contexto de violência generalizada, de fragilidade dos Estados, de incapacidade de responder a necessidades básicas da população e de enfrentar os difíceis problemas que surgirão quando uma crescente multidão de famintos vier em busca das regiões ainda habitáveis para fugir ao deserto que tomou conta da terra deles?

Na manhã da maratona de Berlim, por uns momentos maldisse a Última Geração, que me estava a estragar a alegria daquele momento. Mas depois caí em mim: eu estrago-lhes a alegria de viver todos os dias, todos os minutos da sua vida. Estou a roubar-lhes o futuro quando compro produtos alimentares que atravessaram meio planeta de avião, quando não questiono os meus hábitos de mobilidade, quando compro roupa barata para usar duas vezes e deitar fora, quando ponho no lixo em vez de consertar, quando permaneço acomodada neste sistema que nos está a destruir.

Estranhamente, apesar de sabermos ainda melhor do que há 4 anos o que estamos a fazer ao planeta, e a ameaça que paira sobre nós e aqueles que amamos, a grande greve climática de Setembro de 2023 teve, na Alemanha, apenas 25% da participação que houve em 2019. E sim, eu também estive lá em 2019 e faltei na semana passada.

Que se passa connosco? Como podemos exigir da política que trave rapidamente este processo de destruição do planeta se não fazemos a nossa parte, seja em manifestações para que o governo sinta que tem o apoio da população para fazer mudanças drásticas, seja em revisão do nosso estilo de vida? Percebo agora melhor duas situações que sempre me provocaram alguma perplexidade. A primeira, é a famosa discussão sobre o sexo dos anjos no preciso momento em que Constantinopla estava a ser atacada. Seria uma discussão com certeza importante - mas naquele preciso momento o império romano do oriente estava em grande risco. Connosco, é assim: o planeta a ferver, um processo de extinção em massa em curso, microplástico no sangue dos humanos - e nós a discutir se havemos de meter na prisão pessoas que atiram tinta a objectos ou a ministros como sinal de protesto contra a inércia dos governos. E também a dizer "oh, que me adianta fazer alguma coisa, se a China não faz nada?" e também a dizer "Lá vão eles subir outra vez os preços". A segunda perplexidade está ligada aos judeus que foram ficando na Alemanha a seguir a 1933, apesar de o regime nazi os perseguir com uma violência cada vez mais inacreditável: também nós sabemos a ameaça que paira sobre nós, e vamos continuando a nossa vida quotidiana, e vamos acreditando que isto ainda se há-de resolver, que não pode ficar tão mau como parece.

Em todo o caso: não contem comigo para criticar os activistas da Última Geração. Eles estão a fazer o que sentem que têm de fazer para nos acordar da nossa letargia, e para evitar catástrofes ainda maiores no futuro deles - e no meu, e no dos meus filhos.