Em memória dos mortos de Melilla, deviam passar este documentário em horário nobre em todas as televisões europeias. Para a Europa inteira perceber que as pessoas que tentam passar a cerca de Melilla são - vou citar o anúncio que publiquei aqui há dias - "garantidamente seres humanos".
2 Dedos de Conversa
... sobre o que nos desaquieta
01 julho 2022
o carteiro passa sempre duas vezes
O senhor que distribui encomendas na nossa rua anda sempre com um saco de guloseimas para cães no bolso dos calções. O Fox adora-o (vá-se lá saber porquê...). Quando o vê por perto, fica histérico. É um cão muito apegado às pessoas, coitadinho.
Há tempos pedi ao senhor que não desse guloseimas ao Fox, por causa daqueles rins desgraçados que lhe aconteceram. Ele respeitou, mas a contragosto. O Fox é que devia estar distraído quando esta conversa aconteceu, porque continuou a acreditar naquela amizade bela e desinteressada. Até que eu tive pena, e disse ao senhor que se quisesse lhe podia dar uma bolachinha (mas só uma!), ele respondeu com uma breve interjeição alemã que quer dizer algo como 'raix parta as pessoas e as suas manias, se não tivessem tantas manias a vida era bem mais simples', e o mundo do Fox voltou a fazer sentido.
Ontem saímos à rua na altura em que a carrinha chegou. Depois de o Fox ir ao céu por dois segundos, continuámos a nossa caminhada. Fomos ultrapassados pela carrinha, que parou um pouco à frente para mais uma entrega. Mais dois segundos no céu. E assim sucessivamente.
Se deixassem o Fox mandar, ontem a nossa rua chamava-se Rua do Paraíso.
25 junho 2022
era para ser hoje
Anda uma pessoa há uma eternidade (sim, comprei os bilhetes na semana em que Putin invadiu a Ucrânia) a esperar o reencontro com o seu querido Trifonov, e vai ele e adoece, pelo que será substituído pelo Kirill Gerstein, que não conheço.
Lembra-me aquela vez que um miúdo perguntou ao Lang Lang como é que se faz para ficar famoso e ele respondeu: "trabalha-se muito, e fica-se à espera que o pianista de um concerto apanhe uma gripe."
(Quantas novas estrelas serão efeitos colaterais da covid?)
Entretanto, informação para o dia em que alguém afirmar ai-aqui-d'el-rei que andam a cancelar os russos: maestro russo, compositores russos, pianista russo.
24 junho 2022
um anúncio feito para chocar
A trabalhar numa tradução, deparei-me com isto:
O sionista Ben Hecht teve a ideia de publicar um enorme anúncio no New York Times, com o objectivo de chocar, despertar consciências, e pôr os judeus dos EUA a pressionar para salvar aquelas pessoas:
(Dúvida da tradutora: "a peça", ou "cada um"? Escrever "peça" lembra-nos do léxico da escravatura, onde se contabilizava os capturados como "peças".)
Os EUA hesitaram, Por fim, a Alemanha acabou por convencer a ainda aliada Roménia a desistir desse projecto.
Agora trocamos "judeus" por "africanos em barcos, no Mediterrâneo", e são os mesmos argumentos: não estamos preparados para enfrentar o problema da pobreza, da guerra e do aquecimento climático em África em toda a sua dimensão. Eles que vão morrer longe, já temos problemas que chegue...
Agora reparamos na parte do texto relativa aos palestinianos. "Atenção, Humanidade! Os árabes palestinianos não vão ser incomodados com a chegada de 70.000 judeus. Os únicos árabes que vão ficar incomodados são os líderes árabes que estão em Berlim, e os seus espiões na Palestina." (Leio "os seus espiões na Palestina" e lembro-me do cartaz russo recente a "informar" que na Suécia há muitos nazis.) Momento de silêncio pelos palestinianos, apanhados no turbilhão da uma tragédia na qual não tinham a menor culpa.
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Agora lembramos os nazis assassinos de secretária, os que tomavam decisões e assinavam papéis, os burocratas que se limitavam a cumprir ordens que tinham como consequência a morte de milhares de pessoas. E comparamo-los com os personagens desta história na América livre e rica, que encolheram os ombros à tragédia de setenta mil seres humanos. Agora tentamos descobrir as diferenças de fundo entre uns e outros. Mais silêncio.
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E agora pensamos em nós.
Sempre que há notícias de algum barco de refugiados parado num porto, e Portugal oferece-se para acolher alguns deles, tenho um sobressalto feliz: afinal é possível fazer melhor.
pesadas heranças
21 junho 2022
como Pilatos no credo
Partilho este apontamento de Lutz Brückelmann, do dia em que na Enciclopédia Ilustrada a "palavra mágica" foi VERDADE:
20 junho 2022
a "cancel culture" exercida pela maioria
Antes de falar dessa "cancel culture" das minorias, deixem-me mostrar o outro lado da questão: a maioria também tem "cancel culture", e exerce-a com o à-vontade que lhe é permitido pela "ordem natural das coisas". E o mais grave é que nem se dá conta disso.
Trago três exemplos:
1.
"Em setembro de 2000, (...) Manuel Serrão publicou um artigo no jornal "O Jogo" com o título "Calado que nem um melão" em que, para atacar e achincalhar o clube seu adversário (e também meu...), o Benfica, insinua que o seu capitão é gay e tem uma relação com um melão.
Dias depois, em 14 de setembro, o defunto pasquim "O Crime" publica uma "notícia" com o título "Um grego calado com cabeça de melão", em que, com base no artigo do Serrão, diz abertamente que José Calado, capitão do Benfica, tem uma relação homossexual com o cantor Melão, membro da então famosa boysband "Excesso".
Lançado o boato, nada mais o faz parar e a vida destes dois homens passa a ser um inferno.
Melão, que era um ídolo das teenagers amorangadas e iniciava uma carreira a solo, passa a ser gozado e insultado em todo o lado e, inclusive, num espetáculo para estudantes de Coimbra (!!), abandona o palco à terceira canção porque já não consegue aguentar a constante berraria daqueles futuros "doutores". Viu vários espetáculos cancelados e praticamente deixou de ser contratado.
José Calado, passou a ser conhecido por "Capitão Gay" e a sua vida um pesadelo, atacado por adeptos adversários quando as coisas lhe corriam bem e por benfiquistas quando lhe corriam mal.
No dia 2 de outubro de 2000, durante um jogo no estádio da Luz, em que o Benfica perdia por 1-0, os insultos e piadas a José Calado foram de tal dimensão que ele abandonou o campo ao intervalo, o que lhe valeu um processo disciplinar, a perda da braçadeira de capitão, a saída do Benfica e o início de uma rampa descendente na carreira.
Ambos, como é natural, tinham família, pais, irmãos, companheiras, amigos e todos esses foram também vítimas desse pesadelo perpetuado, sem nenhum peso na consciência, por centenas de milhar de pessoas que se pensam de bem.
Na verdade, quem destruiu a carreira e quase arruinou a vida destas duas pessoas, não foram o Serrão nem o pasquim "O Crime", foram todos aqueles que, sem pensar nas consequências, foram gozando com o boato, que para muitos deles era apenas uma brincadeira mas para pessoas concretas era um pesadelo.
Mas é melhor estar calado, porque é mais do que evidente que somos um país de brandos costumes, nada homofóbicos nem racistas..."
[Autor: António Moreira]
2.
"Doutor Freud, que memórias lhe poderei descrever? Voltar aos três anos e à queda do muro da eira, empurrado pela vizinha, mulher adulta? Ou prefere que lhe conte o apego a um brinquedo quando tinha quatro anos?
Doutor Freud, ao contrário de muitas crianças, como deve saber tão bem, nunca tive muitos brinquedos e todos os que havia lá em casa, uns de metal e outros já em plástico, eram herança das primas e dos primos que viviam na cidade grande. Lembro-me que descobri, num caixote de papelão pardo, uma boneca sem um braço, com um vestido todo rasgado e os lábios pintados com esferográfica vermelha; confesso que senti pena daquele brinquedo e adoptei-o.
Doutor Freud, tomei conta e brinquei com aquela boneca até aos oito anos; ao contrário de muitos meninos que corriam atrás de uma bola, eu embalava e contava estórias a uma boneca sem um braço - lá fora os miúdos chamavam-me 'mariquinhas' e 'menina'.
Inquietantes aquelas palavras que, de vez em quando, ainda entram nos meus sonhos e se transformam em monstros, capazes de devorar a vida."
[Autor: Joaquim Carreira]
3.
No Alentejo, há meia dúzia de anos, procurava um restaurante para almoçar com um grupo de amigos, entre os quais uma mulher com pele escura. Quando lhe propus entrarmos num restaurante para ver se tinham lugar, respondeu-me que era melhor ser o marido (de pele branca) a entrar comigo. Se fosse ela, o mais provável era dizerem que não tinham lugar.
"Já estou habituada" - rematou.
Podia acrescentar que esta minha amiga é mais inteligente, mais culta, mais educada e mais bonita que eu. E lembrar a história de quando o Nelson Évora, "a quem Portugal tanto deve", foi impedido de entrar num clube. Mas esse seria um discurso armadilhado, porque normaliza a ideia de que as pessoas dos grupos que a maioria cancela por sistema e sem se dar conta têm de ser mais do que nós para terem os mesmos direitos.
Se me parece bem o cancelamento de uns para alertar para o cancelamento de outros? Não.
Mas a mim é que não apanham a choramingar que "já não se pode dizer nada". Pelo menos, enquanto tiver noção do meu privilégio, e do ridículo em que incorro.
18 junho 2022
»Etiam si omnes – ego non!«
Joachim Fest nasceu em 1926 em Berlim. O pai era director de uma escola, mas perdeu o emprego - inclusivamente a autorização para ensinar em casa - por se ter recusado a ir com o seu tempo. Nomeadamente por ter recusado inscrever-se no partido nazi. Aos filhos explicou a sua atitude com uma frase fundamental, tirada do Evangelho de Mateus: »Etiam si omnes – ego non!« ("e mesmo que todos - eu não"). É essa frase que dá o nome à autobiografia de Joachim Fest: Ich nicht (eu não). Fest virá a ser um historiador muito importante na Alemanha, com vários trabalhos sobre o período nazi. Na sua autobiografia fala do ressentimento do pai em relação à maneira humilhante como a assinatura do tratado de Versalhes foi encenada: os representantes da Alemanha obrigados a entrar pela porta das traseiras, e a ver a imagem da sua derrota na sala dos espelhos. A humilhação de que o movimento nazi se viria a servir com gosto. A posição da família e dos seus amigos era muito crítica em relação à ascensão de Hitler ao poder (“Hitler mente tanto, que quase somos levados a pensar que até o contrário do que ele diz é mentira!”, comentavam eles – e eu, ao ler, a lembrar-me de um famoso político do nosso tempo ao qual esta frase se aplica). O filho Joachim é tão inteligente quanto rebelde e determinado. Num belo dia de 1941 grava com o seu canivete uma caricatura de Hitler no banco da escola. A primeira pessoa a ver a obra de arte é um amigo seu, que fica alarmado e tenta febrilmente apagar os traços, impondo o silêncio a todos os colegas que vão entrando na sala. Mas haverá um que entende ser seu dever denunciar - e Joachim Fest é expulso da escola, juntamente com os seus irmãos. Naquele tempo era muito habitual que toda a família arcasse com as mais pesadas consequências da escolha pessoal de um dos seus membros.
Tanto nesta autobiografia como noutras que li, de vidas atravessadas pelo período nazi naquele período do século XX, encontro o mesmo elemento perturbador: não se entende como é que o horror consegue instalar-se com tanta facilidade na sociedade. As pessoas assistem atónitas, sem conseguirem acreditar naquilo que acontece à sua frente. Os judeus, por exemplo: apesar das regras antisemitas que os vão encurralando cada vez mais, não acreditam que as coisas possam piorar, e argumentam: "afinal de contas, vivemos numa sociedade civilizada". O próprio pai de Joachim Fest ouve uns rumores sobre os campos de extermínio no Leste, mas tem dúvidas. "Afinal de contas, vivemos numa sociedade civilizada"...Já os povos ciganos, esses, não teriam qualquer motivo para se deixarem iludir por aparências.
Agora dou um salto de oitenta anos e pergunto: temos a certeza que as sociedade europeias são civilizadas? O que dizer do modo como os países europeus estão a tratar os povos ciganos, os refugiados da Síria ou os africanos que tentam chegar à Europa?
Naquela época como hoje, há uma diferença grande entre o "ser" e o "pensar ser".
14 junho 2022
dúvida metódica
Aconteceu num comboio regional alemão. Diz o revisor:
- Não precisava de comprar um bilhete de 16 euros para fazer esta viagem. Não ouviu falar no passe mensal de 9 euros para toda a Alemanha?
Responde o passageiro:
- Ouvi, mas fiquei desconfiado. Primeiro a pandemia, agora este passe mensal de 9 euros... não sei, mas de certeza que aqui há gato!
no fundo, é simples
13 junho 2022
uma dedicatória que é um micro-conto



12 junho 2022
"amartagens"
Porque me fez rir, e também pensar, partilho este texto do Fernando Gomes na Enciclopédia Ilustrada:
10 junho 2022
somos todos Simão de Cirene
A lei da eutanásia voltou ao Parlamento português, e com ela um escândalo, um autêntico sobressalto social: a provocação ao princípio da inviolabilidade da vida humana, que nos interpela como sociedade e nos obrigará a tomar medidas concretas para evitar tragédias.
Sem esta lei, a defesa daquele princípio tem sido feita de maneira prática e barata: as pessoas estão "condenadas a viver", queiram ou não queiram. Estão em situação de sofrimento insuportável? Paciência. Cada um tem de carregar a sua cruz, é assim desde o princípio dos séculos, é a vida.
Mas, uma vez aprovada a lei da eutanásia, a defesa da vida humana implicará o trabalho quotidiano e exigente de fazer com que as pessoas em situação de grande sofrimento queiram continuar vivas, apesar de terem a possibilidade de receber ajuda para antecipar a sua própria morte. Esta alternativa, sendo muito mais digna e humana, é muito menos prática e barata que a simples proibição da eutanásia. Implica muito empenhamento e muito esforço. Implica o envolvimento da rede familiar e social, exige o investimento do Estado nos apoios necessários a cada doente e nos cuidados paliativos, impõe um estado de alerta colectivo para sensibilizar as pessoas (sim, o famoso politicamente correcto também passa por aqui: pelo repúdio de expressões como "peste grisalha", pela atenção aos termos em que se fazem as propostas de reduzir os "custos incomportáveis do SNS").
Se pensarmos no risco do "plano inclinado", a responsabilidade é ainda maior. Teremos de ser capazes de construir uma sociedade onde todas as pessoas se sintam bem-vindas e estimadas: desde logo, os velhos e as pessoas com graves problemas de saúde (que correm riscos sérios de se sentirem compelidos a pedir a eutanásia para não serem um "peso morto" na família e na sociedade), e também, entre outros, as pessoas com depressão profunda, ou as vítimas de bullying generalizado e quase inconsciente devido à sua orientação sexual ou identidade de género.
Traduzido em termos evangélicos: uma lei da eutanásia obriga-nos a tomar consciência da nossa responsabilidade como Simão de Cirene, da nossa obrigação de ajudar a carregar a cruz daqueles que o destino ou a insensibilidade social condenaram ao sofrimento. Numa sociedade que permita alijar a cruz, os defensores do princípio da inviolabilidade da vida humana terão de estar muito atentos aos que sofrem, dando-lhes a certeza de que nunca carregarão a sua cruz sozinhos, fazendo o que está ao seu alcance para reduzir o peso desta.
É fácil ir para a rua ou para os jornais protestar contra a aprovação desta lei. Muito mais difícil é ser Simão de Cirene todos os dias - a nível pessoal e a nível institucional. Mas é essa a prova dos nove que permite às pessoas e à sociedade no seu conjunto mostrarem que acreditam realmente no princípio da defesa da vida humana.
08 junho 2022
sexto sentido
Andei a passear pelo blogue do Wladiminir Kaminer, e este post provocou-me várias gargalhadas. Traduzo, e depois me dirão se também riram.
(Infelizmente, os posts mais recentes estão bem longe de serem assim divertidos.)
29.11.2021
Sexto Sentido
Jakub Józef Orliński
07 junho 2022
"manequim" (2)
"manequim" (1)
06 junho 2022
nacionalismos exacerbados...
05 junho 2022
03 junho 2022
colorido
01 junho 2022
instantâneo alemão
31 maio 2022
a paz perpétua
O projecto de 2022 do meu coro é - podem crer! - espectacular: vamos "dançar" o Requiem de Fauré, e ligá-lo à tradição mexicana do Dia de los Muertos. A doçura da abordagem de Fauré, que nos propõe a morte como passagem para o paraíso, e o reencontro festivo com aqueles que amamos e passaram para o lado de lá. E também a reapropriação dos sentidos do nosso corpo, bastante maltratados durante a crise da covid: um evento para ver, ouvir, cheirar, saborear e viver em proximidade.
Desde o princípio que penso que este projecto é muito actual, e um grande presente que fazemos à população de Berlim. Na ânsia de sobreviver à crise e de regressar depois à normalidade, restou pouco espaço para nos confrontarmos com o que nos aconteceu nestes dois anos: o stress do quotidiano transtornado, o medo da morte e da doença, a ameaça da falência, a dor de despedidas que não foram possíveis.
Sim, é um grande projecto, mas: como sempre, falta o dinheiro para o realizar. Temos andado a pensar nas várias possibilidades de financiamento, e uma delas foi pedir patrocínios às agências funerárias.
Uma delas deu um pequeno apoio, combinado com várias condições - a costumeira publicidade, mas também um ensaio do nosso coro nas suas instalações. Comecei por revirar os olhos, pensando que estavam a exagerar nas contrapartidas para um apoio tão minúsculo. Mas estivemos lá recentemente, e viemos de lá muito mais ricos.
Mostraram-nos a sala dos velórios, o armazém de caixões com todo o tipo de modelos (escolhi logo para mim o mais simples: a caixa de pinho não tratado, que eles usam para recolher ossadas) e a sala onde preparam os cadáveres para os expor no velório. Têm uma máquina parecida com as de diálise, para trocar líquidos e mudar a cor da pele ("Se o corpo estiver mais bonito na morte do que era em vida, é sinal que exageramos nos nossos esforços", disse o guia, e eu a pensar "bem, se o nicho de mercado pegar, as pessoas ainda vão começar a encomendar aparências post mortem, ai eu queria ficar tipo Brad Pitt, ai eu queria ficar tipo Brigitte Bardot...").
Falámos muito da morte, esse tema tão evitado. O pudor no trabalho com os corpos indefesos (as zonas genitais, obviamente, mas também o detalhe de, no exame para técnico de preparação do corpo, se chumbar caso se pouse por um momento a cabeça do cadáver na mesa, em vez de a pousar no suporte que ali existe para esse fim. A relação com o corpo como última homenagem à pessoa que vivia dentro dele - por exemplo, a história de uma família que entregou um lenço para pôr no corpo, e o tanto que eles pensaram sobre como usar o lenço (na mão? na cabeça, com um nó à frente, como quem vai para a apanha das batatas? na cabeça, com um nós atrás, como quem anda a limpar o pó?); repararam que aquela mulher tinha uma cicatriz na cabeça, e usaram o lenço para a cobrir, prolongando-o com um nó elegante num dos lados, entre o pescoço e o ombro: a homenagem que é também observação e reinvenção da pessoa. As decisões sobre o funeral: o que a própria pessoa quer, mas também o que é conveniente para os vivos - um enterro na floresta não é grande ideia no caso de o cônjuge sobrevivo ter dificuldades graves de mobilidade; ou a história da família que ia enterrar a mãe ao lado do pai, e foi apanhada de surpresa ao saber que a mãe deixara indicações para deitarem as suas cinzas ao mar ("conversem sobre isso antes de morrer, ponham-se de acordo quanto à melhor solução" - dizia ele).
No fim, alguém perguntou ao responsável da agência funerária, que trabalha todos os dias com mortos, se acreditava num além da vida. A resposta dele:
- Espero que não haja nada depois desta vida. A verdadeira paz perpétua é o fim absoluto.
Gostei da formulação: "espero que". E ocorreu-me que esse ponto absolutamente final pode ter um lado positivo: nada de viver na inquietação eterna de tudo o que se fez mal nesta vida, nada de voltar à terra para tentar melhorar. A nossa vida é aqui e agora, e todos os dias contam, todos os gestos contam. A nossa vida é um rascunho gravado na pedra.
A nossa vida eterna seria essa herança que aqui deixamos: o bem e o mal que espalhámos. E, nesse caso, não entraríamos no paraíso depois da morte, como em Fauré, mas estaria nas nossas mãos recomeçar todos os dias gestos de oferecer ao mundo o paraíso à medida das nossas possibilidades.
26 maio 2022
a guerra que vá para o cesto da gávea! (ou lá como é que se diz)