02 dezembro 2024

quem?

 


Esta imagem, onde vemos os trabalhadores que trabalharam na recuperaração da catedral de Notre Dame, lembrou-me o poema de Brecht:


Perguntas para um operário que lê

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China,
para onde foram os seus pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes?
Até a legendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou, Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas
(Acrescento estas duas linhas:
Brecht escreveu este poema
mas quem o traduziu?)


26 novembro 2024

"yes we can"


Encontrei no fundo do baú este post da Enciclopédia Ilustrada, do dia em que o tema foi "yes we can". Naquela altura, ainda nem sonhávamos que o Hamas e o Netanyahu iam fazer um pas-de-deux com consequências terríveis para os civis palestinianos, e muito menos pensávamos que seria possível o Trump voltar a ganhar eleições. Portanto: estava no fundo do baú, está mais actual que nunca. ---

O Obama bem nos enganou com o seu #yes_we_can. Se calhar até a ele se enganou, e ainda mais do que a nós.

Mas lembram-se da alegria geral, do entusiasmo, como se estivéssemos a viver um momento único, como se fosse possível haver uma espécie de redenção no sistema político dos Estados Unidos?
Depois, foi o que se viu: uma andorinha, por muito bem que fale, não faz a primavera.

Mal comparado, parecia o Shining, quando a gente acredita que o cozinheiro os vai salvar, e afinal... (calateboa, não faças um spoiler).
(A verdade é que o cozinheiro se pôs a caminho ainda o filme era uma criança. É claro que ainda tinha de acontecer muita coisa até ao fim do filme, não se podiam salvar logo ali.)

Pensando bem, há muito do Shining nesta fase do mundo (os olhos desvairados do aquecimento climático a espreitar pela porta desfeita, os olhos desvairados da pandemia, os olhos desvairados da guerra e da ameaça nuclear, os olhos desvairados da fome...). Já vimos que não podemos contar com super heróis. O "yes we can" não resultou. Agora é a vez do "yes we must". Todos.
Juntos.


23 novembro 2024

ainda a banana

 

Voltando à história da banana colada à parede que rendeu 6 milhões de euros num leilão da Sotheby's: o seu comprador, o empresário chinês Justin Sun que criou uma criptomoeda, conseguiu com isso aparecer em todos os telejornais ocidentais (pelo menos) em hora nobre, e em tudo o que é jornal.

Não sei se a banana é arte, ou não.

Mas investir seis 6 milhões para se tornar mundialmente famoso, aí não há dúvida: é um grande golpe, e é uma pechincha.

22 novembro 2024

#vísceras

Isto de portugueses e brasileiros pensarem que falam a mesma língua às vezes provoca situações muito estranhas. Como por exemplo no tempo em que os meus filhos eram pequeninos, e eu contava num grupo online cheio de brasileiros que ia levar os miúdos aqui e ia buscar os miúdos ali, e que ia com os miúdos ao parque ou que fora com os miúdos ao teatro, e uma simpática do Rio de Janeiro se perguntava, muito intrigada:

- Porque será que a Helena leva vísceras para todo o lado?


criptoarte

 


Estava aqui a pensar: se puser na parede da minha sala uma banana colada com fita-cola parda, posso dizer que é uma reprodução?
E a quem devo pagar direitos? Ao Maurizio Cattelan, que teve a ideia, ou ao inovador que pagou seis milhões de euros para validar a ideia do Maurizio Cattelan?
E vocês: se tivessem seis milhões de euros a mais, eram capazes de os dar para se inscreverem na história da Arte?

Em todo o caso, o episódio tem uma certa graça: um tipo que enriqueceu com criptomoeda compra uma peça de criptoarte.


21 novembro 2024

mais coisas da minha vida

 

Coisas da minha vida: fui pôr a minha máquina de café Senseo no apartamento que nos emprestaram para alojar os realizadores convidados para o Portuguese Cinema Days in Berlin. Por causa disso, passei a beber apenas um café por dia, que é o matinal, feito pelo Joachim na french press.

A seguir, encomendei uma máquina de café daquelas do Clooney para deixar no apartamento que me emprestaram. Nunca a escolheria, por causa das cápsulas que me parecem lixo em demasia (desculpa, Clooney), mas os donos do apartamento gostam de ser criativos no sabor do café e eu queria agradecer-lhes o empréstimo do apartamento. Portantos, lá teve de ser.

Enquanto esperava pela máquina do Clooney, comprei uma caixa de cápsulas no Lidl, para poder fazer um ou outro cafézito nesta fase em que a minha Senseo está no tal apartamento.

A máquina chegou hoje. Instalei-a, preparei-me para o segundo cafézinho do dia, e...
...as cápsulas que comprei têm o tamanho errado.

Já vos disse que a minha filha me deu um chá muito saboroso de presente de anos? E uma embalagem de Mon Chéri, o meu favorito de todos!
Um chá impecável, lá vou eu fazer mais um litrinho de chá impecável. E comer meia embalagem de Mon Chéri, para esquecer.


a ansiada resposta

 

Para quem quase nem dormiu a pensar qual terá sido a resposta do realizador francês: Parece que não se arranjam milagres à quarta-feira. Não vem. Triste vida.
Por outro lado: comecei o dia a rir com ele, e isso já ninguém me tira!
Adiante. Há sempre outro dia - a ver vamos que milagres nos acontecem.

Entretanto, encontrei rapidamente outra solução para o meu caso bicudo. E é igualmente boa.

20 novembro 2024

coisas da minha vida

 

Coisas da minha vida:
Ontem à noite combinei com o meu cinema mais favorito do mundo que lhes tentava arranjar um filme com o respectivo realizador para uma sessão especial na primeira semana de Dezembro.
O director do cinema estava um bocadinho céptico, mas eu acho que a esperança é a última a morrer.
Esta manhã, telefonei para uma das produtoras, na França. Disse ao que ia, e que antes de mais era preciso saber se o realizador estava disponível.
- Bem, não precisamos de falar mais - foi a resposta. - O realizador já tem uma certa idade, e está muito ocupado com outro projecto. Não tem hipótese nenhuma!
- Bem, sendo assim... - disse eu, e desliguei.
Trinta segundos depois voltei a ligar.
- Estive a pensar no caso, e estou a ligar de novo porque se calhar ainda me conseguem fazer um milagre.
Risos do outro lado.
- O importante é não perder nunca a fé! - afirmaram com convicção divertida.
Ri-me com eles.
Daí a nada estavam a dar-me o contacto do realizador.
Liguei ao realizador. Não vou contar o que lhe disse, porque o segredo é a alma do negócio, mas também lhe pedi um milagre, além de lhe pedir para falar mais devagar "porque entendo melhor o meu francês que o seu", e coisas assim. Em todo o caso: desligou o telefone muito bem disposto, e a dizer que vai perguntar à companheira, e que me liga antes da hora do almoço.
Agora estou com um problema grave: hoje chegam duas encomendas do correio e ainda não me fui arranjar, e também não vou porque tenho de ficar sentadinha ao lado do meu telemóvel, à espera de um milagre que me deve chegar de França ainda antes do almoço.

17 novembro 2024

copo bem mais que meio cheio

 


Em 2023, festejei o meu aniversário na clandestinidade porque estava a lidar mal com aquele 60.
Enfim, clandestinidade relativa: avisei os amigos de Berlim que havia festa na margem do lago Wannsee: a minha família punha as mesas, os bancos e as bebidas, eles traziam a comida. Foi uma bela festa.
Entretanto, já passou, já não dói, até ao 70 está-se bem. Depois logo se vê.
Portanto, este ano saio da clandestinidade: é hoje! 😊
No ano passado, rodeada de amigos que não se importaram de vir passar frio para a margem de um lago no Novembro berlinense (é assim que testo as amizades...), em frente à água calma e à tradicional fogueira, deitei contas à vida: falei desta certeza de ter nascido na melhor época da Europa, de sempre ter sentido confiança no futuro, mas de temer que estejamos a chegar ao fim de um ciclo feliz.
Em 2023, pedi aos meus amigos que, no meio de tantas ameaças, saibamos estreitar a rede da amizade: é o que nos vale em tempos sombrios.
Um ano depois, acrescento esta convicção: o mundo em que vivemos é aquele que fazemos. Se espalharmos à nossa volta pequenos gestos quotidianos de delicadeza e humanidade, o mundo torna-se automaticamente melhor.
Mais ainda: o mundo em que vivemos é aquele que se torna visível pela palavra. Se tivermos o cuidado de reparar no que há de positivo no nosso mundo (e – olhem com mais atenção - há tanto para ver!), se o soubermos verbalizar, o mundo das pessoas com quem comunicamos ganha cores mais bonitas.

É isso que vos peço hoje, um pequeno acto de resistência contra os sentimentos de perplexidade, temor e impotência que por estes dias nos paralisam: vamos encher o mundo de pequenos gestos quotidianos de bondade, e vamos contar a quem nos quiser ouvir o bom e o belo que acontece nos nossos dias.













13 novembro 2024

o nosso mundo é assim, nós é que nos esquecemos demasiadas vezes

 

Aconteceu no posto de correio em Vila Nova de Milfontes:
Primeiro, a senhora à minha frente deu à funcionária algumas moedas para beber um café no dia seguinte em sua honra, porque fazia anos, oitenta e muitos. "Mas não me dê os parabéns hoje, que isso dá azar". Toda a gente que ali estava desatou a sorrir, e a desejar-lhe felicidades e saúde.
Depois, o homem atrás de mim, que vinha de um país onde não se usa o alfabeto latino, não atinava com a escrita das moradas no pacote que queria enviar. O jovem atrás dele disse-lhe, em inglês: "deixe cá ver, eu escrevo-lhe isso".
Era só para dizer que gosto muito deste mundo.

09 novembro 2024

35 anos depois da queda do muro de Berlim

 


Hoje celebramos os 35 anos da queda do Muro de Berlim.
E não me venham com piadinhas sobre reconstruí-lo com o dobro da altura, OK, ó amigos? Vocês sabem quem são. 😉

O nosso mundo tem demasiados muros, demasiadas trincheiras, demasiado ódio.

Depois do muro de Berlim: caiam os muros da Cisjordânia, caia o muro que separa as Coreias, caia o muro entre os EUA e o México, caiam as barreiras que impedem que tantos desesperados encontrem refúgio na Europa que se diz de tradição cristã.


08 novembro 2024

a ética ao poder?

 

Numa carta aberta a Joe Biden - aqui -, António Marujo dá voz à decência, que tantas vezes anda alheada deste mundo.
Concordo com tudo (como não?), mas pergunto: o que impediu Biden (e, antes dele, Obama) de fazer uma política mais fiel aos valores que defende?
Pergunto (um sonho utópico): como seria o mundo se Biden soubesse que ia perder as eleições seguintes, e justamente por o saber se sentisse livre para governar segundo os seus valores e não segundo uma estratégia de assegurar a sua continuidade no poder?
---
Mas depois penso no gesto radicalmente ético de Angela Merkel, quando abriu as fronteiras aos sírios que procuravam desesperadamente refúgio na Europa, e no preço altíssimo que pagou, e pagámos todos: o populismo da direita radical conseguiu finalmente o argumento de que precisava para se instalar como um cancro no coração da Democracia. Foi isso que levou ao acordo com Erdogan para reter os refugiados na Turquia. Hoje mesmo pensei nesse episódio ao ler as reacções aos distúrbios em Amesterdão, quando muçulmanos perseguiram judeus pelas ruas, depois de estes terem incendiado bandeiras palestinianas e gritado frases de puro ódio e provocação: logo vieram comentários sobre a culpa de Angela Merkel, que deixou que "esta gente perigosa" entrasse na Europa.


26 outubro 2024

a dignidade humana é inviolável

 A Constituição da Alemanha abre com esta frase: "a dignidade humana é inviolável". Tout court. Não é "a dignidade dos alemães de bem", não é "a dignidade dos nossos refugiadinhos", não é a dignidade daqueles a quem a nossa tribo atribui o valor de humanos. 

A dignidade de todos os seres humanos. E não é por acaso: a constituição foi escrita no rescaldo do horror do fascismo nazi, quando se tornou grotescamente óbvio o que acontece quando pessoas que se têm por gente de bem começam a considerar que uns são humanos e outros são gado que se pode abater.

Nie wieder. Nunca mais. Nem para judeus, nem para ciganos, nem para homossexuais, nem para ladrões, nem para opositores políticos, nem para terroristas. Em suma: "nie wieder, nunca mais" vale para todos aqueles que em determinado momento são desumanizados por um determinado grupo, que os classifica como inimigo e alvo a abater. Cuidado com os pézinhos de lã!

Em 1993, numa operação especial da polícia para capturar terroristas da RAF, houve um tiroteio que matou um terrorista e um polícia. Lembro-me bem de na altura terem aberto um inquérito para averiguar a necessidade de cada uma das balas disparadas pelos polícias. Isso mesmo: até perante um terrorista armado, um polícia alemão tem de ser capaz de prestar contas do uso que fez da sua arma. Porque (elementar, meu caro Watson) num Estado de Direito quem aplica a pena é um juíz, e um polícia não pode tomar para si o papel dos tribunais. O caso de contornos muito obscuros da estação de Bad Kleinen evoluiu para um escândalo que levou à demissão ou mudança de posto de mais de dez altos responsáveis da política e da polícia. (Aqui, em alemão.)

Construir um Estado de Direito é tarefa permanente e nunca terminada. E é trabalho de nós todos: desde já combatendo a tendência para "libertar o filho da puta que há em nós" (para usar as palavras do Lutz Brückelmann quando tentava entender o sucesso do Trump). Combater o filho da puta que há em nós é, de facto, a atitude basilar que permite a uma sociedade existir como Estado de Direito - e passa por não pôr no espaço público piadas carregadas de ódio a propósito da morte de um terrorista, e passa por não conceder a um polícia o poder de matar sem ter de prestar contas (para mencionar dois exemplos ocorridos esta semana). 

Por tudo isto, e sobretudo porque temos de lutar para que, na nossa sociedade, a dignidade humana seja inviolável, convido todos a assinar a petição "Queixa-crime contra André Ventura e Pedro Pinto", aqui.

18 outubro 2024

Portuguese Cinema Days in Berlin 2024



Novembro a chegar, e eu a ter pena de todos os portugueses que não estão em Berlim ao longo desse mês. A sério: coitadinhos! Vão perder a edição especial dos Portuguese Cinema Days in Berlin, inteiramente dedicada ao cinquentenário do 25 de Abril.
Este ano, para mais, temos uns cartazes com fotografias do Alfredo Cunha que são um luxo (obrigada, Gito Lima!). E também este trailer, feito pela fantástica equipa da Terra Líquida Filmes e do Ricardo Espírito Santo.
Portanto, estou assim: não sei se morra de gratidão por tanto apoio que recebemos, ou se morra de pena dos portugueses que não vão estar em Berlim no mês de Novembro.






12 outubro 2024

concertos que tal

 



Azares da vida: meses e meses sem acontecer nada em Berlim, e de repente estas mocinhas dão o concerto delas no mesmo dia em que eu tenho o meu!
Ainda pensei "perder-me" no caminho para o concerto do meu coro, mas ontem tivemos o ensaio geral e por duas vezes me comovi imenso. Quero lá saber destas mocinhas! Hoje e amanhã, o concerto mais especial que acontece em Berlim é o do coro Bancanta na igreja Christuskirche em Berlin-Oberschöneweide, a propósito dos 35 anos da queda do muro.


uma no cravo, outra na ferradura

 


Andava há décadas à espera deste momento, e foi esta semana: anunciaram o prémio Nobel da Literatura, e eu conhecia!
Na altura não comentei nada aqui porque estava muito ocupada a beber um champanhezito à minha saúde, que eu conhecer algum livro de um Nobel da Literatura não é coisa que me aconteça todos os dias. (Por acaso conheço vários livros de um Nobel que eu cá sei, mas, ano após ano, o comité engana-se no nome.)

Seguia-se o da Paz, e fiz apostas: Gisèle Pelicot, ou Guterres.

Caramba, sinceramente: será que os senhores do comité não conseguem dar duas consecutivas no cravo?

(Bem sei que a mensagem deste ano é particularmente urgente, quando países que têm armas nucleares se largaram no desvario da guerra. Mas a Gisèle Pelicot, e a sua coragem de obrigar a vergonha a mudar de lado, olhem: não me conformo.)

10 outubro 2024

a revolta do homem branco

 



Traduzir livros pode ser um prazer enorme (olá, Kaminer!) e pode ser um exercício penoso de perscruta de abismos. Foi o caso deste: à procura da palavra certa, frase a frase, tive de andar demasiado por dentro da cabeça de tipos que odeiam mulheres em particular, e o nosso mundo em geral.
Foi difícil fazer este trabalho, mas valeu a pena: por estes dias, quando o Trump diz uma das suas bacoradas, não fico chocada nem perplexa. Agora conheço a cartilha, sei o que quer atingir com frases que parecem tresloucadas mas, na realidade, são de enorme precisão estratégica: truques para ganhar eleições.
Curiosamente, depois de entregar a tradução, ouvi a investigadora Teresa Toldy falar do mesmo fenómeno. A princípio, pensei "hey! como é que ela leu o livro que ainda não foi para o prelo?!" Depois, percebi que tinha acabado de publicar um extenso trabalho sobre as ligações entre religião, questões de género e populismo no espaço mediterrânico. Falava com enorme preocupação, e repetia muito: "garanto que não se trata de teorias da conspiração - isto é mesmo o que está a acontecer no nosso mundo!"
(E nem vou dizer nada sobre o capítulo que descreve a responsabilidade da Igreja Católica na criação do monstro imaginário que dá pelo nome de "ideologia de género", que tão útil tem sido a Bolsonaros, Melonis, Le Pens e quejandos. Mas quase morri de vergonha enquanto traduzia essa parte do livro.)
Em suma: não é uma leitura leve, mas é um livro essencial para entender o mundo em que vivemos. Dá-nos ferramentas para observar com o recuo de quem sabe quais são os mecanismos por detrás do que acontece e parece incompreensível.
E: sosseguem, porque ler não é tão doloroso como traduzir. Vocês conseguem! 🙂
Já está em pré-venda na Zigurate. A sinopse do site da editora fala do ataque ao Capitólio, e eu acrescento o que se segue, só porque fazia ontem cinco anos que aconteceu: no dia de Yom Kippur, um incel alemão da extrema-direita meteu-se no carro, rumo à sinagoga de Halle, para massacrar todos os judeus ali reunidos. Tinha uma câmara a transmitir para a internet, queria que o pessoal da sua comunidade visse o massacre no próprio momento em que estava a acontecer. Pelo caminho, foi a ouvir o hino de louvor a Alek Minassian, o incel canadiano que usou uma carrinha para matar pessoas em cima de um passeio.
A letra é assim:
Runnin' through these hoes like I'm Alek Minassian
Hoppin' in the whip and I'm motherfuckin' crashin' it
Up over the curb like I'm Alek Minassian
Hoes suck my dick while I run over pedestrians
Este episódio alerta-nos para algo que temos vindo a ignorar: quando um tipo branco comete um acto de enorme violência contra alvos aleatórios, a tendência é dizer que é uma pessoa com problemas psiquiátricos. O que é só uma parte da questão. A outra, que o caso de Halle revela, é que essas "pessoas com problemas psiquiátricos" estão interconectadas na darknet mundial, trocam ideias e ressentimentos, e sonham tornar-se super-heróis daquela comunidade.
(E agora, só para verem o que sofre uma tradutora, peguem na letra daquela linda canção e tentem traduzir para português. Partilhem nos comentários, e depois veremos qual é a melhor versão. Mas entrem nisso por vossa conta e risco: não pago a sessão de psi de ninguém, aviso já!)

09 outubro 2024

concerto "Estranhos e Amigos"

 


Atenção, Berlim! 🙂
Este concerto foi um parto difícil, um autêntico "cenas da vida na Alemanha".
Começou com esta vossa artista a sugerir animadamente "olhem, em 2024 é o 50º aniversário da revolução portuguesa, e o 35º da queda do muro. Podíamos fazer um concerto com canções de protesto!"
Primeiro, acharam muito bem.
Depois, deixaram cair a parte "25 de Abril", e sobrou a queda do muro.
A seguir, apercebi-me que na tradição alemã não há canções de protesto como na portuguesa: em Portugal, facilmente nos juntamos mais de uma hora a cantar de cor todas essas canções que são património comum indiscutível; na Alemanha, é preciso pensar muito para conseguir juntar três canções deste tipo, e ninguém as sabe cantar de cor.
E foi então que chegou a parte mais complicada da questão: demo-nos conta de que, no nosso coro, há perspectivas muito diferentes sobre a reunificação alemã.
Esta vossa artista, por exemplo, estava a pensar num concerto em que cantávamos misturados com o público, todos de velas na mão e em movimento, em homenagem à imensa coragem dos manifestantes das segundas-feiras em Leipzig - e penso que foi justamente esta proposta que originou a crise: apareceram pessoas a lembrar que era preciso ter cuidado com a narrativa.
Está visto: na Alemanha, sou "Wessi". Tenho uma perspectiva demasiado romantizada (ou ignorante) do que a reunificação significou para as pessoas que de repente se viram a viver no país dos outros, onde não eram respeitadas.
E lá continuámos a partir pedra, até conseguir uma homenagem aos 35 anos da queda do muro que espelhasse o sentir de uns e outros.
Vamos apresentar o resultado este fim-de-semana, numa igreja nos confins da antiga Berlim-Leste. E o resultado é um belo naco de petite histoire contemporânea.
Em suma: recomendo muito. Desde o Fiesta Requiem que não fazíamos um concerto tão misturado com o nosso tempo.

07 outubro 2024

não podemos adiar mais

 

Ao longo deste período de 12 meses muito difíceis para Israel e especialmente tenebrosos em Gaza, no meio da mentira e da propaganda que nos fazem desconfiar de tudo e de todos, houve um momento de grande clareza: quando soldados israelitas mataram três reféns que tinham conseguido fugir ao Hamas e corriam para os seus compatriotas, em tronco nu, com uma bandeira branca, e a pedir ajuda em hebraico. Apesar da crueza das imagens de cidades destruídas e do pânico das pessoas, há muito quem duvide dos números de mortos e feridos em Gaza - mas não há como negar isto: um exército que pressente uma ameaça justamente na pessoa daqueles que vem libertar é um exército que não está capaz de agir com um mínimo de discernimento. O assassinato destes três reféns deita por terra a narrativa da autodefesa dentro dos limites do aceitável - e não sei como definir “aceitável” quando o campo de batalha é uma região urbana densamente povoada.
 
Neste 7 de Outubro de 2024, quando Israel já está a repetir no Líbano os ataques absolutamente desproporcionais contra a população civil de Gaza, e ameaça retaliar contra o Irão, que retaliou contra um ataque de Israel no Líbano, insisto na necessidade imperiosa de pôr fim à espiral de violência entre Israel e os seus inimigos.
Ou, nas palavras mais certeiras do papa Francisco: pôr fim à espiral de vingança.

A comunidade internacional tem de se unir em função de um único objectivo: a paz. Tem de ser o adulto na sala, para negociar e/ou impor o fim da guerra a todos os envolvidos, a imediata libertação dos reféns do Hamas e dos palestinianos presos em Israel sem julgamento, a criação a muito breve prazo de um estado palestiniano com as fronteiras de 1967, e o envio de capacetes azuis para garantir a segurança e a paz na região. Uma região sem exércitos ao serviço de extremistas, nem de um lado nem do outro.

Virá o dia em que falaremos das razões de cada um - e será um momento fundamental para alicerçar a paz. Mas a actual berraria que pretende impor a razão de uns contra a razão dos outros não tem outro efeito que não o de contribuir para uma tragédia ainda maior.

Insisto: temos de nos unir para impor um sistema que garanta a paz para todos os habitantes daquela região. A comunidade internacional já o devia ter feito na época da primeira intifada, ou antes, ou – o mais tardar – há exactamente um ano. Tem de ser agora. 

30 setembro 2024

sostra

 

Tenho andado longe deste blogue, desculpem. Muitas férias muito cheias de alegria, e depois muito trabalho, também com bastantes alegrias - o resultado de tanta azáfama está à vista neste pobre blogue esquecido. A ver se me emendo. Começo já hoje, com duas histórias: História nº 1:
Uma vez, em finais dos anos setenta do século passado, estava a ver um programa de variedades da RAI na casa de uma das minhas avós.
- Olha aquelas saias compridas, tão compostinhas, assim é que devia ser! - elogiava ela, muito satisfeita (era a avó que queria que eu andasse de combinação no verão, porque revelar as formas do corpo sob um vestido de tecido leve tinha o seu quê de indecente).
Mas eis que, de repente, no show da RAI alguém começou a cantar, as mulheres começaram a dançar, e as saias maxi afinal tinham rachas maxi pelas quais saíam pernas femininas elegantemente atiradas para o ar.
- Ai que sostras! - exclamou a minha avó, horrorizada, e chamou logo o marido para vir desligar a televisão, porque estava cheia de poucas-vergonhas.

Em 2024, bastou a Ana Moura levar um vestido menos habitual, digamos assim, aos Globos de Ouro, para descobrir que a minha avó, que morreu há 4 décadas, afinal está viva e bem viva dentro de muitas cabecinhas.

História nº 2: Nos anos 60 do século passado, a minha mãe tinha a audácia de entrar no café da aldeia para beber cervejas com uma amiga. Que desplante! E ousou fazer a gravidez do meu irmão mais novo, em 1970, com um fato de calças! Calças! E ainda por cima: grávida! (era um fato bem bonito, por sinal)
Olhavam-na de lado, criticavam, e até havia quem lhe chamasse leviana.
É certamente também por isso que me irrito tanto com esta vaga de achincalhamento de uma mulher que decidiu vestir o que lhe apeteceu num show que, de qualquer modo, precisa deste tipo de encenação para ser mais interessante. Para mim, a zombaria que por aí vai é um assassinato simbólico que não está muito longe da mentalidade dos guardas da revolução iraniana.
(A quem interessar possa: deixo de presente a palavra "sostra", para aplicarem às mulheres cuja liberdade vos incomoda, já que o "puta" está a ficar muito gasto...)

12 setembro 2024

há monstros debaixo da cama

 

Em Portugal, logo após aquelas eleições épicas em que um milhão de portugueses escolheu o partido do "falso amigo", ouvi uma senhora a dizer que o nosso país está cada vez mais inseguro, e que "andam por aí bandos de estrangeiros a raptar adolescentes para exigir resgate". Ela disse a nacionalidade das pessoas desses bandos, mas não me lembro - e, de facto, não é importante, porque é mentira (mais uma dessas mentiras que viralizaram nas redes sociais para levar as pessoas a votar no partido anti-imigrantes e pró-securitarismos).

Lembrei-me disso ao ouvir o Trump dizer que há estrangeiros a comer os cães e os gatos dos vizinhos.

A lógica por detrás destes boatos - que pessoas sem qualquer sentido de decência põem a correr - é muito transparente: vamos identificar um inimigo do tipo "os outros", vamos inventar que nos ameaça, e vamos inventar ameaças que nos atinjam directamente e despertem o nosso instinto de protecção: os nossos filhos, os nossos animais domésticos.
Já fizeram isso no Brasil, com excelente resultado: lembram-se quando puseram a correr o boato que o PT queria dar biberons aos bebés com forma de pénis? ("acudam, que o lobby gay que quer perverter os meus filhinhos!") O pessoal acreditou, e votou Bolsonaro.

As pessoas acreditam.
Desde que a terra se tornou plana, o mundo nunca mais foi o mesmo.

12 julho 2024

você comprava um carro a este homem?

 

Ouvi ontem na rádio que o George Clooney tomou uma posição clara sobre Biden continuar na corrida para a Casa Branca. Falou muito bem a dizer o evidente, e foi então que...

...foi então que me ocorreu: e que tal se fosse o George Clooney a concorrer pelos democratas? Não era certamente o primeiro actor a entrar lá, e tem muito mais probabilidades de ganhar que o Biden e todos os outros possíveis candidatos.

Além disso, a mulher dele não seria um enfeite para a Casa Branca. Tem vida própria e perfil. Dava uma boa primeira dama.

(Além disso, ando há que tempos curiosa para ver a cara dos gémeos deles, e ia ser agora.
🙂 )

Ai, quase me ia esquecendo do mais importante: Clooney seria um bom presidente? Não sei. Mas tinha de ser muito, mas mesmo muito péssimo, para ser pior que Trump.

(E depois tem aquele critério fatal de confiança num político: "você comprava um carro a este homem?" Eu cá comprava o carro, comprava a máquina do café, comprava tudo o que ele quisesse vender!)

** Biden continua a dar sinais de que não está bem. Os mais recentes: apresentou Selensky como "o presidente Putin" e chamou "presidente Trump" a Kamala Harris.

**

Lembram-se daquelas manhãs, na última semana de Fevereiro de 2022, quando nos levantávamos a pensar se o exército de Putin já tinha entrado em Kyiv?
Lembrei-me disso esta semana: tenho-me levantado todos os dias a pensar se Biden já abdicou.

11 julho 2024

mais uma viagem (3)




Para que não digam que faço caixinha, aqui vai: larguem tudo e vão a Saint Cirq Lapopie.


Hesitei entre essa e Albi, também medieval mas mais próxima de Toulouse, mas foi-me recomendada com tanto entusiasmo que lá me fiz a mais de uma hora de estrada. Valeu a pena, e de que maneira!

No caminho voltei a hesitar, porque passei por tantas aldeias antigas que me pareceu que o meu destino seria apenas mais uma. Spoiler: não era.

Na praça central de uma dessas aldeias que ficam no caminho para Saint Cirq Lapopie, parei num mercado regional e comprei queijos. A vendedora, amorosa, escreveu vache, chèvre e brebis nos pacotes. Ao lado havia uma portuguesa a vender rissóis e bolinhos de bacalhau a 50 cêntimos cada. Também lhe comprei um belo naco de torta de cenoura. Disse que custava dois euros, enquanto o metia numa caixinha.
- Dois euros? Isso quase nem paga a caixa.
Olhou para mim:
- Se todos fossem como você, o mundo era um lugar feliz.

Devia ter dito o mesmo à vendedora de queijo que me escreveu o nome dos bichos no papel da embalagem. É tão fácil tornar o mundo um lugar feliz!

---

Mais imagens de Saint Cirque Lapopie:






No dia seguinte continuámos a viagem em direcção a Portugal. Dorminos nos Pirinéus, num cantinho de uma floresta junto a uma cidade de nome basco.