12 julho 2024

você comprava um carro a este homem?

 

Ouvi ontem na rádio que o George Clooney tomou uma posição clara sobre Biden continuar na corrida para a Casa Branca. Falou muito bem a dizer o evidente, e foi então que...

...foi então que me ocorreu: e que tal se fosse o George Clooney a concorrer pelos democratas? Não era certamente o primeiro actor a entrar lá, e tem muito mais probabilidades de ganhar que o Biden e todos os outros possíveis candidatos.

Além disso, a mulher dele não seria um enfeite para a Casa Branca. Tem vida própria e perfil. Dava uma boa primeira dama.

(Além disso, ando há que tempos curiosa para ver a cara dos gémeos deles, e ia ser agora.
🙂 )

Ai, quase me ia esquecendo do mais importante: Clooney seria um bom presidente? Não sei. Mas tinha de ser muito, mas mesmo muito péssimo, para ser pior que Trump.

(E depois tem aquele critério fatal de confiança num político: "você comprava um carro a este homem?" Eu cá comprava o carro, comprava a máquina do café, comprava tudo o que ele quisesse vender!)

** Biden continua a dar sinais de que não está bem. Os mais recentes: apresentou Selensky como "o presidente Putin" e chamou "presidente Trump" a Kamala Harris.

**

Lembram-se daquelas manhãs, na última semana de Fevereiro de 2022, quando nos levantávamos a pensar se o exército de Putin já tinha entrado em Kyiv?
Lembrei-me disso esta semana: tenho-me levantado todos os dias a pensar se Biden já abdicou.

11 julho 2024

mais uma viagem (3)




Para que não digam que faço caixinha, aqui vai: larguem tudo e vão a Saint Cirq Lapopie.


Hesitei entre essa e Albi, também medieval mas mais próxima de Toulouse, mas foi-me recomendada com tanto entusiasmo que lá me fiz a mais de uma hora de estrada. Valeu a pena, e de que maneira!

No caminho voltei a hesitar, porque passei por tantas aldeias antigas que me pareceu que o meu destino seria apenas mais uma. Spoiler: não era.

Na praça central de uma dessas aldeias que ficam no caminho para Saint Cirq Lapopie, parei num mercado regional e comprei queijos. A vendedora, amorosa, escreveu vache, chèvre e brebis nos pacotes. Ao lado havia uma portuguesa a vender rissóis e bolinhos de bacalhau a 50 cêntimos cada. Também lhe comprei um belo naco de torta de cenoura. Disse que custava dois euros, enquanto o metia numa caixinha.
- Dois euros? Isso quase nem paga a caixa.
Olhou para mim:
- Se todos fossem como você, o mundo era um lugar feliz.

Devia ter dito o mesmo à vendedora de queijo que me escreveu o nome dos bichos no papel da embalagem. É tão fácil tornar o mundo um lugar feliz!

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Mais imagens de Saint Cirque Lapopie:






No dia seguinte continuámos a viagem em direcção a Portugal. Dorminos nos Pirinéus, num cantinho de uma floresta junto a uma cidade de nome basco.






mais uma viagem (2)

 




Segundo post no Facebook sobre a viagem a Toulouse em 2021:

Espero que me perdoem a franqueza (e a fraqueza) mas ontem, ao fim da tarde, quando a luz do entardecer tornava Toulouse ainda mais doce, dei comigo a pensar que vocês todos são uma cambada de inúteis, pardon my french. Então somos há anos amicíssimos no Facebook e ainda ninguém teve a delicadeza de me avisar « Helena, larga tudo e vai a Toulouse ! » ?
Pergunto-me sobre que outras cidades estarão a fazer caixinha - Paris, Nápoles, Tóquio ?
Humpf !



O melhor deste post foram os comentários dos amigos. Aqui deixo alguns:

- Nápoles, Viarregio…
Vai a Dijon que também é uma grande surpresa.....fora a mostarda que detesto lol
Rio de Janeiro e Évora, sem dúvida....
Buenos Aires, obviamente
Hong Kong, Quioto, Atenas, Rio de Janeiro
Paraty e Siena
Ficas já a saber que o Luxemburgo, e a capital em especial, são de largar tudo e ir a correr por uns dias (se nunca o fizeste).
Paraty, Salvador-Baía Castro-ilha de Chiloé, Punta Arenas, Puerto Varas, Erice, Cefalu e Taormina na Sicília.
Praga
Com mapa ou sem mapa? Em que continente? Cuba, Buenos Aires Rio de Janeiro Sydney Melbourne Dili? São Petersburg? Açores. Cabo Verde Maputo. É para quantos anos?
SANTARÉM!!
ADELAIDE, SOUTH AUSTRALIA! É a "Cidade Festival" de Oz! Um coala em cada árvore!
Siena!
Das cidades que mais me surpreenderam, o que não significa gostar mais, foi La Rochelle. Amei. Que saudades de tudo a começar pela luminosidade.
Costa Amalfitana. Toda. Estive várias vezes nessa costa e considero-a um dos mais bonitos locais do mundo que conheço. Sorrento, Positano, Vico Equense, Capri, Ischia, o limoncello ao por do sol, o mar…
Bussana Vecchia
Guatemala. Larga, larga tudo! A cidade da Guatemala entranha-se na memória dos sentidos com uma tal força...Povo, cultura, cores, costumes, clima, arquitectura... 
Antígua, Antígua!
 e a Costa Rica e Chiapas, tudo perto.
o povo é especial em todos esses locais.
O da Costa Rica, sendo mais ocidentalizado, tem uma consciência ambiental como nenhum outro que tenha conhecido (em 1950 só 33% da superfície era arborizada, hoje é quase o dobro, alberga 5% de todas as espécies vivas conhecidas e 25% do território é reserva natural) e do Povo de Chiapas nem sei que te diga: conseguiram, na prática, ser independentes do resto do México e preservam a sua cultura e o seu meio ambiente dum modo incrível.
E a presença Maia é tão forte em Chiapas como na Guatemala
- A Costa Rica também me impressionou muito pelas razões que apontas, pela multiplicidade étnica e acima de tudo por dispensar a existência de um exército investindo tudo na cidadania. Chiapas não conheço, infelizmente, do México só conheço a capital, também ela inesquecível. À excepção da Venezuela de que não gostei nada, toda a América Latina que conheci me ficou gravada na alma para sempre. Ainda hoje é uma paixão.
- Toulouse é uma magnífica cidade, para turistas e para os seus habitantes. As margens do Garonne, as praças e largos onde se dança ao ar livre, os restaurantes onde se comem ótimas ostras, a ópera e a sua praça, os mercados...cheios de queijos e "canard". Adoro Toulouse!
- Se tu fosses, como eu sou,/ compincha do Nougaro, / tinha-te há muito avisado, / como a mim me avisou: https://youtu.be/wehrXJTA3vI
- Conheço Toulouse mas Nápoles é mais bonita. E se for a Nápoles na perca a visita da Costa
- Que não seja por isso. Nova Iorque, Roma, Tóquio, Castelo de Vide, Barcelona. - Sarajevo, Tbilisi, Salónica. - sim, vai a Tóquio e Quioto, mas não no Verão. - Aveiro - Helena, larga tudo e vai a Zanzibar, larga tudo e faz a união das ilhas dos Açores em veleiro com tudo incluído, larga tudo e vai fazer o lés a lés em scooter na nova Zelândia larga tudo e passa uma semana no centro velho de Amsterdam, larga tudo e visita três casas senhoriais no sul da Índia, larga tudo e faz uma visita às Galápagos, e se tiveres tempo visita as grutas de incas no peru... Desculpa lá o atraso. Kkkkkk - Largue tudo e vá à ilha do Príncipe no golfo da Guiné Não podendo, certamente Nápoles, Istambul ou qualquer parte do litoral da Dalmácia na Croácia. - Turquia e Croácia - Como é que me esqueci de São Tome????? Imperdoável esquecer-me de um dos últimos paraísos na terra. Leve leve... - Posso dar uma dica de um lugar que eu visitei e considero um lugar raro e imprescindível de conhecer e visitar Parque Nacional Plitvice, na Croácia. Aliás, toda a Croácia é inesquecível. - Marseille!! - Largue tudo e vá.
- Paris, Buenos Aires, Toda Itália (começando por Roma, Nápoles, a Sicilia e as suas ilhas, Bolonha, Ferrara, Florença...), Creta, Thessaloniki, Istambul... - -

mais uma viagem (1)

Lembra-me o facebook que há 3 anos estava a passar uns dias lindos na viagem entre a Alemanha e Portugal. Copio para aqui esses posts, e até - caso seja útil - alguns comentários. Começou com a Bretanha, na nossa carrocinha. Levá-la a ver o sítio onde o Joachim a sonhou pela primeira vez: "ah, ter um camper e dormir neste promontório junto ao mar, descer a falésia para dar um mergulho em praias quase desertas..." Depois, Toulouse. E é aqui que o facebook tem andado a lembrar-me lugares onde já fui feliz. Esta publicação, por exemplo:

A primeira coisa que disse em Toulouse foi uma interjeição pouco polida. É que estava fresquito e reparei que tinha trazido por engano um casaco azul marinho para um vestido preto. Já vi essa combinação de cores ao Viotti na Gulbenkian, mas eu não sou o Viotti. A segunda coisa que disse foi uma interjeição mais inócua, seguida de um „vou-me desgraçar“. Estava numa loja de BD grande como tudo. Só não me desgracei logo ali porque era no princípio do dia e eu não sou tola a ponto de comprar vários kg de livros antes de ir passar um dia inteiro a passear numa cidade. Mas não perdi pela demora...

(Por sorte a carrocinha é grande)




08 julho 2024

14 juillet

 

Este ano o 14 juillet veio uma semana mais cedo.

(E bem sei que isto me vai valer uma voltinha extra lá no grelhador do inferno, mas: a cara de melão da Le Pen... hihihi)


06 julho 2024

mas isto sou eu

 


Lembrando que futebol também é poesia, para além dos golos, aqui deixo este clássico da poesia portuguesa.
(Mas isto sou eu, que nem percebo de futebol nem de poesia)




05 julho 2024

relatório à margem do campeonato europeu

Só cheguei ao primeiro jogo de Portugal quando já ia a meio. Estava morno, mas mal cheguei os portugueses começaram a jogar a sério.

Não assisti ao da Geórgia, se calhar devia ter assistido. 2-0, os antipáticos! Apesar de tudo, não me pareceu bem que a UE logo no dia seguinte tenha congelado o processo de adesão da Geórgia. (Escusam de responder a sério, que eu bem sei que estou a brincar, OK?) (E foi lindo o Kvaratskhelia ter interrompido a celebração da vitória para dar um abraço ao Ronaldo) (Claro que escrevi o nome do Kvaratskhelia com copy & paste, não pensem)

A seguir, fartei-me de rir com isto:


Entretanto, os escoceses foram para casa e deixaram muitas saudades na Alemanha. Os holandeses também têm muita graça. E, de um modo geral, comenta-se que o ambiente é muito melhor na Alemanha do que foi no Qatar. Pudera! Aqui não é proibido beber cerveja nem parece mal andar com um grãozinho na asa ao fim do dia.



Passei rapidamente pela
fan mile, a avenida em frente à Porta de Brandeburgo, que está toda coberta de relva artificial. É um luxo de relva, até a mim apetecia estender-me ali e ficar a gozar a vida, mas ia com pressa, ia de A para B e aquele relvado estava no meio do caminho. Passei a correr.

(Se calhar já revia as minhas prioridades na vida...)


Até que chegou o fatídico jogo Portugal x Eslovénia. Dei comigo a torcer para que o Ronaldo acertasse com o penalti. Nem era para ganharmos, era mesmo só por causa do Ronaldo.

O Ronaldo marcou, yes!

E depois: o Diogo Costa, yes! yes! yes! Pus-me logo na fila para lhe dar um abracinho, depois de ser aviado pela equipa.
Uma amiga minha publicou no facebook, com fundo vermelho, "Diogo Costa, faz-me um filho". Aposto que não é a única a pensar no mesmo, pelo que: é agora que Portugal vai conseguir resolver o problema da taxa de natalidade. Vem aí uma nova geração boomers. (Querido Diogo Costa: está nas tuas mãos. Sê patriota!)
Tudo está bem quando acaba bem. Até ver.

À hora a que escrevo, a Alemanha já foi excluída. Não é por nada, mas parece-me que os espanhóis são gente que não sabe estar. Não é assim que se trata um anfitrião! (Devolvam Olivença, ao menos!)


Brincadeiras à parte, isto, que é muito sério e muito belo: Ronaldo a chorar como um menino, e a equipa a animá-lo, a abraçá-lo, a dar-lhe força. Afinal, parece que um homem pode chorar, e parece que os outros homens não ficam à rasca com isso. Que belo exemplo para mostrar em casa, a todos os rapazes.


04 julho 2024

"queima das fitas"


Encontrei nos arquivos da Enciclopédia Ilustrada este texto que escrevi no dia em que o tema foi "queima das fitas", ao seguir ao dia em que fora "Leonardo da Vinci", e partilho: Em finais dos anos sessenta, talvez princípios dos anos setenta, lembro-me de ter ido com os meus pais ao Porto ver o cortejo da #Queima_das_Fitas. Morávamos em Braga, e a viagem de carro fazia-se a uma média de 30 ou 40 km/h - uma estopada interminável atravessando aldeias e vilas. Mas todo esse tempo na estrada foi recompensado pelo que testemunhámos no Porto: a ousadia dos carros dos estudantes, que arriscavam criticar a academia e o sistema político.
Eu era pequena - não teria nem sete anos - mas lembro-me do interesse com que o público seguia aquele cortejo, da sensação de perigo iminente que pairava no ar, das gargalhadas, da curiosidade e do frémito.
Esse cortejo marcou-me, e fez nascer em mim uma enorme admiração pelos estudantes universitários.
Quando eu própria cheguei à universidade, no princípio dos anos oitenta, a Direita estava a reconquistar terreno na Academia, e ia-se instalando uma praxe como nunca ali fora tradição. No final do curso, naquela que seria a minha última semana académica, resolvi ir à missa na catedral onde o bispo fazia a benção das fitas. Vi a catedral repleta de pessoas fardadas a preceito, a agitar as fitas e a conversar com os amigos em grande animação, como se estivessem num estádio de futebol e não numa igreja. Perguntei-me o que levava o bispo a aceitar fazer aquela figura de palhaço na sua própria casa.
De longe, vou acompanhando o desconchavo crescente: a substituição do Zeca e do Vitorino pelo Quim Barreiros nos carros de som, a cerveja e os comas alcoólicos, os abusos sexuais, a ordinarice indescritível dos temas dos carros.
Estes estudantes universitários bêbedos e alarves, estas pessoas em quem o país tanto investiu e investe, em quem deposita tantas esperanças, estão nos antípodas do Leonardo da Vinci que ontem aqui homenageámos.
É embaraçoso ver as figuras que fazem.
E, para mim, é especialmente doloroso comparar estes cortejos àquele que vi no tempo da ditadura. Os que eu vi em finais dos anos 60 eram cidadãos adultos, responsáveis e empenhados na sociedade e no mundo.
Estes? A julgar pela imagem que dão de si durante a Queima das Fitas, são pessoas embotadas pelo egocentrismo de grupo, sem ética nem sentido de dignidade, apostadas num carpe diem ditado por uma "tradição" artificial e autoritária.

29 junho 2024

a propósito de Stonewall, por Frederico Lourenço (2)

 

Partilho mais um texto de Frederico Lourenço, que trouxe também do facebook:


Sôbolos rios que vão

Masculinidade tóxica. Este conceito tem adquirido o seu espaço na discussão mediática (e não só) quando se fala sobre o modo como certos comportamentos machistas influem negativamente na vida de pessoas humanas que não são homens adultos com comportamento de «macho alfa»: refiro-me a mulheres, a crianças e também a homens com défice desse tipo de masculinidade, aos quais se chamaram muitos nomes ao longo da História humana, mas a quem hoje chamamos gays ou queers ou outra coisa assim.
Ao longo da História, as principais vítimas da masculinidade tóxica foram as mulheres e as crianças. As mulheres pela forma como foram objectificadas, vistas como propriedade do pai, do marido ou do dono (no caso de serem escravas). Todos sabem como eu amo profundamente a poesia de Homero, mas sinto sempre um mal estar enorme quando leio aqueles versos em que Aquiles, ao celebrar jogos fúnebres em honra do seu amigo Pátroclo, institui um campeonato de boxe, em que ao vencedor cabe o prémio de um artefacto em metal, que valia doze bois. O segundo prémio (para o pugilista vencido, portanto) era uma mulher, excelente tecelã, cujo valor no mercado era de quatro bois (Ilíada 23.702-705). Como se não bastasse esta objectificação da mulher - que, sendo escrava no acampamento grego em Tróia, era uma cativa que tinha sido levada para a escravatura depois do saque de uma cidade ali à volta - ainda por cima ela é vista como valendo menos do que uma trípode e, humilhação suprema, é o SEGUNDO PRÉMIO, dado ao atleta vencido.
Que vida seria a dessa mulher? A que sofrimentos seriam sujeitas essas escravas? Violência de todo o tipo, claro: eram abusadas sexualmente (isso está logo escancarado no verso 31 do Canto 1 da Ilíada); certamente seriam espancadas se não obedecessem aos donos e não trabalhassem como eles queriam. Tinham condições de vida, nalguns casos, que lembram o campo de concentração nazi em que os prisioneiros tinham de produzir um número certo de artefactos por dia; se o não fizessem, eram chicoteados de forma bárbara. Esse regime de trabalho forçado das escravas está patente na Odisseia 20.109-110.
Mas o pior sofrimento das cativas era perder os filhos no momento de serem capturadas. Esse é o pior crime de guerra da Antiguidade, do qual temos vários ecos no Antigo Testamento e na literatura grega. Toda a gente conhece o caso do filho de Heitor e de Andrómaca, lançado das muralhas de Tróia para cima das pedras lá em baixo. Por vezes pensamos que isso foi uma crueldade excepcional. Não foi excepcional. Era normal.
Quando uma cidade era saqueada na Antiguidade, a população adulta que tinha sobrevivido ao cerco e ao saque da cidade era levada para a escravatura. As mulheres deixavam de ter qualquer identidade própria: já não eram filhas dos seus pais, já não eram esposas dos seus maridos: eram agora escravas de um dono. A maior crueldade era que deixavam de ser mães das crianças pequenas que tinham, porque essas crianças eram simplesmente mortas, muitas vezes com a barbaridade de serem apanhadas pelos pés e atiradas com a cabeça contra paredes ou pedras.
Porquê? Porque os novos donos dessas mulheres agora escravas, segundo o código da sua masculinidade tóxica, não iam ficar com filhos de outros homens a seu cargo. As novas escravas iriam a partir de agora engravidar dos donos e criar esses filhos como escravos dele. Os filhos de gravidezes anteriores tinham de morrer.
No Salmo 137 (na Vulgata, Salmo 136), ouvimos os lamentos dilacerantes dos judeus deportados para a Babilónia. «Sôbolos rios que vão...» (como escreveu Camões; «Super flumina Babylonis», na lindíssima versão da Vulgata). O último versículo deste salmo é chocante: pois os judeus bendizem e consideram bem-aventurado o soldado que pegar nos filhos pequeninos dos babilónios e os esmagar contra as pedras.
A desculpa dos judeus é que foram eles próprios vítimas dessas atrocidades por parte de assírios e de babilónios. A culpa? Essa cabe inteiramente à masculinidade tóxica. Não há volta a dar.
Ontem celebrámos os 50 anos de Stonewall. Não se trata apenas de mudar as mentalidades em relação aos direitos LGBT. Trata-se também de pensar que podemos querer uma sociedade em que os valores do machismo patriarcal não têm de ser dominantes. No «Daily Telegraph» de hoje, um alto funcionário do Banco de Inglaterra culpa o excesso de testosterona nos mercados de capitais pelos crimes financeiros em que os grandes bancos do mundo ficam com buracos e com fraudes de biliões. Na opinião dele, devia haver mais mulheres a trabalhar nos mercados de capitais e nas bolsas de valor. Felizmente, hoje uma mulher - até para o Banco de Inglaterra - vale mais do que quatro bois. (Texto de Frederico Lourenço, publicado, juntamente com a imagem, na sua página de Facebook em 29.6.2019)

a propósito de Stonewall, por Frederico Lourenço (1)

O Facebook, sempre ele, lembra-me que há cinco anos partilhei este texto de Frederico Lourenço. 
Deixo-o aqui, pela importância do testemunho do sofrimento que provocamos às crianças quando lhes queremos impor certas verdades que são apenas nossas. 



Orgulho Gay

Foi a 28 de Junho de 1969. Stonewall. Quem não souber, procure na net. Nesse dia começou algo que, para citar Thomas Mann, «ainda não parou de começar». Nesse dia, começou o início de uma nova consciência sobre pessoas que não só se sentem sexualmente atraídas, mas se apaixonam (até para toda a vida), por alguém que é do seu próprio sexo. Mulheres que amam mulheres. Homens que amam homens. Amor. Sexo, claro (consentido e entre adultos). «What's not to love?»

Nesse mesmo ano, o meu avô materno (a quem reconheço «post mortem» a feitura de fotos que exprimem toda uma época) achou por bem fotografar-me a mim, seu neto, e à minha irmã Catarina, sua neta, da forma que vocês vêem na foto. Azul para o menino. Rosa para a menina. Todo um universo de experiência humana numa fotografia tão simples.

O problema é que ao azul estava a ser adscrita uma mensagem que nada tinha a ver comigo. Eu era rapaz. Devia ter comportamentos de rapaz. Mas não tinha. Já escrevi sobre isso noutro texto («Terrorismo de Género», que foi o único texto que escrevi no Facebook que chegou aos 20.000 likes).

Quando o meu avô tirou esta fotografia, eu não sabia que era homossexual. Não sabia que existia homossexualidade. Mas sentia-me diferente dos outros meninos, que já sabiam, muito antes de eu próprio ter descoberto, que eu era gay. Chamavam-me maricas e paneleiro. Uma vez perguntei «o que é paneleiro?». Os meninos disseram-me que «é quem leva no cu». Isso não me fez sentido. «Leva o quê no cu?» Eu passei toda a minha infância num estado de inocência total em relação à sexualidade, mas fui permanentemente vítima de bullying por meninos e meninas (sim...) que sabiam «a missa toda» e que já tinham adivinhado, antes de eu próprio saber, a minha sexualidade.

Ter sido maltratado e insultado durante todo o meu percurso escolar teve um efeito em mim que durou para toda a vida. Fez-me permanentemente desconfiado em relação às pessoas. Cortou-me os mecanismos necessários para fazer amigos. Inculcou na minha cabeça a ideia paranóica que toda a gente «lá fora» me odeia - ideia com que luto ainda hoje, aos 56 anos, embora saiba racionalmente que não é verdade. Ser insultado e rejeitado na infância pela sexualidade que eu ainda não sabia que era a minha ocasionou também um dano de longo alcance: a dificuldade colossal que eu tenho de viver no presente. Estou sempre a fantasiar uma realidade alternativa à que é a real; e tenho de me obrigar a olhar à minha volta para aquilo que a realidade realmente é. A minha infância e adolescência deram-me a noção de que o Presente não é um espaço seguro; tenho de fugir dele, tenho de me defender dele. É difícil explicar os efeitos nocivos que isso teve em mim. Mas foram muito maus.

As pessoas dizem (de forma irresponsável) que ninguém tem de celebrar Orgulho Gay nenhum; e que ninguém tem de sair do armário; e que gays, lésbicas, bissexuais, etc. já cansam com a permanente chamada de atenção para a realidade que vivem.

Mas é óbvio para mim que o dia 28 de Junho tem de ser festejado e celebrado. Há países no mundo em que a homossexualidade ainda é punida com pena de morte (Irão, Arábia Saudita e por aí fora). Há países no mundo em que as pessoas pensam que a melhor coisa que os pais podem fazer com o seu filho homossexual é matá-lo (trata-se de países islâmicos, não vale a pena esconder esse facto; mas os países de religião cristã Ortodoxa russa e grega não andam lá tão longe). Os ataques a casais gays que demonstram afecto em público continuam em todos os países ditos «civilizados». O Brasil, com o seu presidente e com a sua ideologia boi/bala/Bíblia, é o que é.

Não venham dizer que não é fundamental celebrar o Orgulho Gay. É fundamental, sim.

Em 1969, no ano de Stonewall, puseram-me um balão azul nas mãos. A cor do balão implicava expectativas em relação a mim que eu não pude cumprir. Sofri por isso. Mas tudo bem. Muita coisa mudou para melhor desde aí. Pude ser quem sou. Pude casar com o André. Obrigado às mulheres e aos homens de Stonewall. Tenho o maior orgulho em ser gay.


(Texto de Frederico Lourenço, publicado, juntamente com a foto, na sua página de Facebook em 28.6.2019.)

27 junho 2024

ser feliz todos os dias

Esta manhã, o facebook lembrou-me algo que escrevi há uns anos (é o que faz todas as manhãs, na realidade). A vantagem de usar o facebook para fazer apontamentos do que nos corre bem é que depois, todas as manhãs, o facebook nos lembra que faz hoje um ano estava a ser feliz, faz hoje dois anos estava a ser feliz, faz hoje três anos estava a ser feliz...
Há sete anos, estava a ser feliz da maneira que se segue.

Post mete-nojo:

Está uma pessoa ao computador descansadinha da vida, a arrancar os cabelos enquanto luta contra o atraso (esta semana vai ser assim) e recebe uma mensagem a dizer isto:
Hi guys, I hear from my brother that you are planning a visit. Don't forget to include a few days at our coastal apartment. We are looking forward to seeing you both.
O "coastal apartment" é em Santa Cruz, em frente ao Pacífico. Já estou outra vez com stress de tempo livre: eclipse solar em Oregon, Avenue of the Giants, San Francisco, acampar junto à Highway nr. 1, e agora Santa Cruz.

Há que ser forte, e manter o sangue-frio.

26 junho 2024

start up

 

Lembra-me o facebook que faz hoje um ano que estava a regrassar da Bretanha no nosso VW camper, e que a coisa não estava a correr bem: Da série “o meu calor é pior que o teu”: o ar condicionado da nossa carrocinha avariou-se na Bretanha. Sim, estou a ir da Bretanha para Berlim com as janelas abertas. Na autoestrada. E sim: em plena confusão da travessia de Paris o sistema de navegação falhou porque o telemóvel estava demasiado quente.

E sim: bem sei que nada disto torna o calor que vos incomoda mais suportável.
Mas achei que o mundo precisava de saber.

(Alguém sabe se é possível criar uma start up por internet em 5 minutos? Se calhar chegou o momento de criar uma bla bla saunacar: ponho as pessoas a suar no carro, largo-as no lago mais próximo, chego rica a Berlim e a sentir-me o Bill Gates da mobilidade de lazer)


25 junho 2024

luz

 


Ao ver esta "The Swiftness of Time" de Kaoru Yamada no mural de facebook de uma amiga, ao ver a magia desta luz, lembrei por uns momentos a sensação de espanto e prodígio daquela noite em que fui à cozinha - que era no jardim de inverno do apartamento, tinha imenso vidro - e a encontrei inundada numa luz assim forte, mas branca. A luz do luar intenso no céu sem nuvens, multiplicado pela neve que cobria o mundo, entrava pela minha casa e por mim adentro. Espero que me revisite naquele momento final, quando - segundo dizem - passa o filme da nossa vida. Queria muito voltar a esse luar, e também ao dia em que fiz malabarismos com ovos crus, perante os olhos boquiabertos dos meus filhos, na cozinha transformada por uma luz assim e Chico Buarque a cantar "como se fora a primavera". (Vou repetindo por aqui momentos felizes na esperança de a sua recordação ser depois mais forte que o Alzheimer, ou a senilidade, ou a simples perda de memória.)




24 junho 2024

"seleuma"

 

No dia em que o tema na Enciclopédia Ilustrada era "erros ortográficos" (de facto, era: "seleuma") (somos tão engraçadinhos...), aproveitei para falar do erro ortográfico de que mais me orgulho na minha carreira de tradutora.
(Só digo isto assim para atiçar a curiosidade dos leitores, claro)
Ao traduzir o "Viagem a Tralalá", de Wladimir Kaminer (um russo que escreve em alemão), deparei-me com esta frase: "Fui com o meu cunhado Sergej à inauguração do “Pirr - Restaurante de Striptease da Antiguidade”, na Travessa dos Vencedores."

Acontece que Wladimir Kaminer não desperdiça frases. Geralmente os detalhes escondem (ou revelam) uma piada. Dei por falta da piada nesta frase, e comecei a investigar, a partir da suspeita de que ele deveria querer dizer "Pirro". Acabei a conseguir confirmar que se tinha limitado a escrever o nome em russo (Пирр) com letras do alfabeto romano, em vez de a escrever em alemão correcto: Pyrrhus. E o revisor alemão não reparou.

De modo que, hehehehe, o "Viagem a Tralalá" tem em português uma piada mais do que no original: o restaurante Pirro na Travessa dos Vencedores.

(Tradução literária? Algo me diz que no McDonald's ganhava mais à hora. Mas não era a mesma coisa, isso não.)


22 junho 2024

adeus, relva

 





O clima de Berlim está a mudar. Dantes, podia ir descansadamente de férias de verão para Portugal, porque o verão berlinense regava-me o jardim. Hoje em dia, Berlim parece aquela aldeia do mapa dos livros do Astérix: chove em toda a Europa! Em toda? Não! Berlim resiste heroicamente.

Portanto: fartei-me da conta da água para regar a relva, tirei a relva, fiz uma breve investigação sobre plantas que se dão bem em terreno arenoso e sem água, fui comprá-las a eito e atirei-as para a terra ao deus dará. Je suis Esparta.

Isto que aqui se vê são as plantas que sobreviveram a mim e ao clima berlinense. Também tem algumas daninhas pelo meio, mas quero lá saber! Desde que atraiam insectos, está tudo bem.



(Escusado será dizer que só fotografei o único meio metro quadrado do meu jardim que se pode mais ou menos mostrar sem morrer de vergonha.)
(Dizem-me que tenho um jardim de polinização, e eu faço de conta que foi de propósito mas de facto nem sequer sei o que isso é. Andava a especializar-me em permakultur.)
(Quando digo "andava a especializar-me" quer dizer: compro dois ou três livros, folheio distraidamente, e avanço. Meia bola e força.)
(Aquela de ter um jardim de polinização sem saber o que isso é até me lembra a outra que foi para uma entrevista de emprego,
- Então, o que é capaz de fazer?
- Olhe, falo português, inglês, francês e espanhol.
- Pode dizer alguma coisa em espanhol?
- Buon giorno!
- Isso é italiano...
- Ah, querem lá ver que também sei falar italiano?!)

20 junho 2024

House, de Amos Gitai



O meu terceiro post sobre os "Reflexos e Reflexões", que decorreram na semana passada no âmbito dos Berliner Festspiele, é sobre a peça de teatro "House", que vi no domingo. Ao longo de um quarto de século, o realizador israelita Amos Gitai filmou as pessoas de uma casa centenária em Jerusalém Ocidental, na rua Dor Dor ve Dorshav, que significa algo como "cada geração interpreta à sua maneira". Assim nasceu a sua trilogia Bait (Casa): um filme em 1980, outro em 1998, e o terceiro em 2005.

A companhia de teatro La Colline adaptou agora os três documentários, recriando em palco essa metáfora de uma terra ocupada. No centro, em relativa imobilidade, os operários palestinianos que servem os donos da casa. Por eles passam os moradores de cada época e os seus vizinhos, ao som de música palestiniana e judaica. Cada um fala da sua história e das razões que tem, e todos têm razão, muita razão. Até que no final, numa cena de enorme pungência e dignidade, um dos operários palestinianos se senta à boca do palco, e começa a fazer perguntas ao público. No tom calmo de quem sabe que já lhe roubaram tudo, mas que a verdade não se deixa roubar. É uma peça fortíssima, muito bem feita, com uma beleza própria, feita de inúmeras sobreposições. Os actores vêm da França, do Médio Oriente e do Irão, as personagens falam em árabe, inglês, francês, hebraico, iídiche, arménio e turco. Em Berlim, passou com legendas em inglês e alemão.

*** No final, Amos Gitai falou com o público. Começou por dizer que não podemos esperar da arte que mude a realidade. O máximo que faz é guardar a memória, de uma forma muito própria. Guernica, por exemplo: no final, quem venceu em Guernica?

Na sua metáfora da casa, mostra como as pessoas coexistem num ambiente tóxico. Cada um vê apenas a narrativa do seu lado. Mas já Isaac Rabin dissera, pouco antes de ser assassinado, que não é possível resolver o problema de forma unilateral. Como se viu, aliás, nas guerras mundiais: Hitler resultou da vitória de 1918. É fundamental aprender a entender o ponto de vista do outro, como lembra Mahmoud Darwish no seu belíssimo poema:


Insiste: sem ser capaz de sair das suas próprias razões e entender o lado do opositor, não haverá nunca um cessar das hostilidades. 

Alguns momentos do debate:

- Qual foi o maior desafio na passagem de "Bait" do cinema para o teatro?
- Foi um longo processo. Gosto de coisas híbridas. Passámos de uma narrativa cronológica para uma justaposição de fragmentos. 

- Em "House" já encontramos sementes do que estamos a viver hoje em dia?
- Quando fiz o filme, há 40 anos, o nível de negação dos meus compatriotas era muitíssimo mais alto que hoje em dia. Provavelmente pensava-se que, se ninguém falasse sobre os palestinianos, estes iriam acabar por se evaporar. Agora, depois de tantos episódios terríveis de violência, ambos os lados perceberam que nenhum deles vai desaparecer. Mas em 1980 incompatibilizei-me com a televisão israelita, porque me recusei a tirar do filme as partes dos palestinianos que trabalhavam na casa e a referência aos primeiros proprietários. E fui alvo de muita hostilidade por levar o filme à Berlinale.
Podemos dizer que avançámos um pouco, mas em termos políticos estamos a recuar imenso. 
Contudo, ao menos há finalmente a consciência de estarmos perante um conflito existencial ao qual não podemos fugir. 
Mesmo os políticos de esquerda: alguns deles pensaram que era possível fazer acordos com outros países, sem considerar os palestinianos. Agora já perceberam que é impossível. 
E os judeus deviam saber isso. Porque a sua própria experiência lhes mostra que não se consegue vencer um povo pela violência. 
Neste momento, estamos numa encruzilhada. E não sabemos por onde vamos seguir. 

- Nesta peça de teatro, senti a dor profunda da perda. Mas também alguma esperança. A esperança vai conseguir sobrepor-se à perda?
- A música que ouvimos ao longo da peça é palestiniana, feita por músicos palestinianos. Foi muito importante para mim fazermos isto juntos. A solução só pode passar por olhar nos olhos o ser humano que tenho à minha frente.
Sobre a esperança: em Nablus, fiz exactamente a mesma pergunta a um líder palestiniano, acusado de terrorismo. Respondeu-me: "Ser pessimista é um luxo que não nos podemos conceder."

A senhora do kibutz que já tomara a palavra no fim do debate sobre a Nakba e a Shoah (contei aqui) voltou a fazer o seu relato desesperado. Amos Gitai responde-lhe brevemente:
- O actual governo israelita não quer saber de vocês, não se interessa. Vocês são pessoas de esquerda. Mas penso que todos os israelitas, mais tarde ou mais cedo, terão de se confrontar com a questão que os palestinianos levantam: "porque não podemos ser donos da nossa casa?"

- O que diz sobre o boicote a Israel e aos artistas israelitas em curso?
- Pessoalmente, não me posso queixar. "House" tem convites para Londres, Roma, Madrid...
O que mostra que, em plena tsunami de ódio, há quem tenha uma atitude de abertura e vontade de dialogar. 

Uma pessoa que se apresentou como refugiada russa tomou o microfone para fazer várias acusações: 
- O sentimento de impotência é insuportável. O Estado alemão está completamente passivo, faz de conta, assobia para o lado. E o senhor: esteve aí a gabar-se de todos os lugares aonde vai levar a sua peça. Mas será que isso basta? Não vai fazer mais nada para resolver o problema?

O moderador tomou a palavra:
- Está a ficar cada vez mais normal dizer mal do Estado por tudo e por nada, haja ou não razão para isso. Esse hábito é perverso e perigoso. Certamente não ignora que estes quatro dias da iniciativa "Reflexos e Reflexões" foram largamente financiados pelo Estado alemão. 

E Amos Gitai, secamente:
- Quando falei das cidades que nos convidaram, estava a responder à pessoa que falou antes de si, e desejo muito boa noite a todos. 

Pousou o microfone, foi-se embora.