11 maio 2025

falhar melhor

 

Como se não bastasse o prémio ignóbel da Bimby, quase me ia habilitando a um prémio ignóbel da jardinagem. Em termos de inconseguimentos, tem sido uma semana em cheio!

O seguinte: fui dar umas voltas nos vasos da varanda, e descobri que em vários deles havia umas larvas repulsivas, gordas, nojentas, com cerca de 2 cm. Em cada vaso, dezenas e dezenas dessas bichas repugnantes.

Enojadíssima, ia deitar tudo fora - larvas, terra, vaso e se pudesse até a varanda.

Mas depois reparei na terra lindíssima em que se moviam. Nunca em nenhum saco de terra dos que tenho comprado, por mais caro que seja, encontrei terra tão perfeita, Fui consultar a internet ("larvas nojentas de cerca de 2 cm e muito gordas") e descobri que estes bichos, chamados Engerlinge, podem ser um azar enorme, ou a sorte grande e mais a terminação.

Sim, sendo muito parecidas, umas são nocivas e outras são fantásticas. Umas comem as raízes das plantas vivas (Melolonthinae, por exemplo); outras (Cetoniidae) alimentam-se apenas do material orgânico morto, e transformam-no em húmus. Para as distinguir, basta pô-las numa superfície lisa: as larvas más avançam com a ajuda das patas, ou então arqueando o corpo deitadas de lado. As boas avançam sobre as costas.

Facílimo, certo? Excepto as minhas, que pareciam estar a atravessar uma grave crise de identidade: primeiro avançavam com as patas, depois faziam mais uns milímetros de lado, e finalmente davam de frosques de costas. Em caso de dúvida, recorri à prova dos nove: a terra dos vasos. E concluí que me calhou a sorte grande e a terminação.

Mas, no início da aventura, esta vossa artista - alerta medalha de ouro do ignóbel da jardinagem! - estava prestes a deitar fora as simpáticas colaboradoras, para mais de uma espécie protegida - alerta medalha de ouro do ignóbel da Quercus! -, e dezenas de quilos de húmus do bom e do melhor.

Dá Deus as larvas...









falhar sempre

 

Comprei uma Bimby para não queimar a comida, e ao fim de apenas duas semanas consegui o prodígio de esturrar comida numa Bimby!
E era apenas cozer massa.
Agora não confesso mais nada, que ainda inventam um prémio ignóbel da Bimby e pespegam-me com a medalha de ouro.
(Moral da história: é melhor não comprar um air-fryer, porque com este meu jeitinho para prodígios ainda o transformo num helicóptero. Ou num pequeno drone, vá.)


08 maio 2025

aijajus!

 

Aijajus ó conclave! Um papa americano?
Agora é que ninguém atura o Trump...

Mas pronto, está bem: Leão XIV.
Pelo menos não é Archie I.

(Estou em crer que se despacharam tão depressa porque já não aguentavam nem mais meio dia sem telemóvel nem internet...)

06 maio 2025

mais actual que nunca

 


Pronto, está bem. Mas aquele "ama o teu próximo", hã? Ele diz "próximo", não diz "ama o que mora no bairro de pobres do outro lado da cidade".
Estou a provocar, claro. Tanto mais que a parábola do bom samaritano não deixa dúvidas a ninguém.

a ver se nos entendemos...

 

Uma amiga minha, brasileira, lembrava há tempos:

"O 5 de maio é o Dia Mundial da Língua Portuguesa.
Mas, no Brasil, o Dia Nacional da Língua Portuguesa é só em 5 de novembro (data de nascimento de Rui Barbosa).
Só para registro.
Sem comentários."

Se nem quanto ao dia da língua nos conseguimos pôr de acordo, porquê - oh, porquê? - forçar todos a um acordo ortográfico que se pretende unificador?


tradutor e tresleitor

 

Ele há coisas na vida de uma tradutora!

Estive horas a tentar entender uma citação em alemão de um texto de um filósofo francês. Fui espreitar à tradução inglesa do mesmo livro, e também não entendi nada.

Em desespero de causa, agarrei no trecho em alemão e pespeguei-o no deepl, para mo traduzir para francês.

E de repente - milagre! milagre! - tudo se tornou simples, de uma simplicidade cristalina.
De uma simplicidade que até assusta.
Portanto: alguém traduziu automaticamente um texto francês para alemão e publicou-o em livro sem tentar entender.

Agora não sei que faça: especializo-me em inteligenciartificialês, já que parece que vai ser o inglês simplificado do futuro, ou invisto em aprender mais línguas para entender o mundo verdadeiro?

Ou será que caminhamos para um mundo em que, de facto, entender algo a fundo deixa de ser importante, e basta ficar com uma vaga ideia do que o autor queria dizer?


04 maio 2025

aos tropeções pelas escadas abaixo

 


Tentei cantar esta ária, aque adoro.

Mas não consigo aquela descida pungente e suave de "am laid on earth" (a partir de 1:05).

Bem me dizia "tens de tentar deslizar como uma lágrima" mas o que me saía era uma descida à terra aos tropeções pelas escadas abaixo.



como proteger a Democracia?


Por causa de um artigo de opinião que apareceu recentemente no New York Times, onde alguém que dizia que Trump é horroroso mas havia que lhe fazer justiça no que diz respeito ao dinamismo e à energia com que está a impor o seu projecto político, lembrei-me de um texto que traduzi em tempos, sobre a velocidade vertiginosa de Hitler: bastaram dois meses para passar da Democracia que o elegeu à ditadura que perverteu o país, destruiu uma parte substancial da Europa, e cometeu um dos crimes mais horrendos da História da Humanidade.

O post onde traduzi esse resumo contém um conjunto de ideias sobre como lutar contra a instalação da extrema-direita (e pode ser lido aqui: "como lutar contra a extrema-direta").

Algumas dessas ideias foram entretanto postas em prática com enorme sucesso pelo partido Die Linke, que nas eleições federais mais recentes passou de um cenário de nem sequer conseguir representação no Parlamento para uns orgulhosos 8,8%, e 64 deputados (mais 25 que nas eleições anteriores). Na campanha eleitoral, o partido Die Linke foi o único que se concentrou teimosamente nas propostas que tem para o país, em vez de se deixar manipular pela agenda mediática da extrema-direita.

O que não está nesse texto, e devia ser uma prioridade, porque se trata de um perigo enorme para a Democracia: os eleitores (ou, na melhor das hipóteses, abstencionistas) que têm opiniões muito fortes sobre a falta de sentido da Democracia que temos. "Tudo uma merda", "mais do mesmo", "isto não tem conserto", "são todos iguais, Biden como Trump, esquerda ou direita, tudo farinha do mesmo saco".

Não sei como chegar ao coração e à razão de pessoas cuja auto-estima assenta justamente na certeza de que, elas sim!, já passaram o sistema pelo raio-X, já viram a podridão que o corrói, e já desistiram dele. Pessoas que acreditam firmemente na necessidade de destruir o que temos para recomeçar tudo a partir do zero.


03 maio 2025

agora e na hora da nossa morte

Esta manhã, encontrei por acaso estes dois textos na Enciclopédia Ilustrada. Os escritores José Cardoso Pires e Maria Cecília Correia falam sobre a morte. Partilho-os apenas porque tenho a certeza de que vão acrescentar algo aos leitores deste blogue. (Mas não se preocupem comigo, está tudo bem! :) )


1.


Esta imagem, que partilho apesar da péssima qualidade da fotografia, é um apontamento que José Cardoso Pires escreveu a 2 de #Outubro de 1997. Viria a morrer em finais de Outubro do ano seguinte.
Encontrei-o na estante da sua filha Ana, e fui tocada pela naturalidade com que aceita o seu próprio Outono, e a força da alegria que se revela na última frase.
Enquanto há pargo, há esperança...

"2 Outubro 97
Fui até à varanda e nesta manhã de sol e de verão vejo a grande nespereira do quintal podada corajosamente para ganhar juventude para o ano que vem.
Para o ano que vem já cá não estarei - espero. E sonho com um acabar tranquilo e natural da folha que se desprende da nespereira e se faz estrume.
Entretanto, este outono está a ser admirável e eu continuo a viver por mim mesmo do nada que escrevo, sem ajudas dos ministérios nem dos lobbies dos mundanos da intelligentzia.
Feitas as contas, tudo bem. E amanhã, 6ª feira, espera-me uma boa posta de pargo cozido na Marítima de Xabregas."



2.

“Morrer deveria ser, pelo menos para mim, com este sentimento de ter feito as pazes com a Vida. Com a doçura de minutos serenos e contínuos, com um toque dessa doçura na minha pele interior como espécie de chuva-poeira que só pode ser ternura. Morrer deveria ser sem angústia, sem desespero, numa sequência de este usufruir de uma graça especial e gratuita que nos reveste às vezes sem que saibamos porquê. Não é a exultação, não é a posse plena dos bens que nos toca em certos dias. É isto que atrás disse: estar em paz com a Vida. Ela não magoa, não fere, não interroga (ou não interrogamos). Somos docemente amigas, ombro a ombro, mão a mão, caminhando em completo entendimento, em perfeita união, sem cantar ou antes: cantando baixo a mesma canção. E assim nos deveríamos despedir dela, sem saudade, sem remorsos de não termos sido isto ou aquilo.
E depois… Depois, o que mais desejava era entrar em Deus como entro na água verde de Galapos: liberta, calma, feliz, entregando-me totalmente sem que nada em mim se retraia, num abraço pleno a quem me abraça também.
A fusão consentida, procurada até! “
Maria Cecília Correia – “Presença Viva”, Edição do Secretariado Diocesano da Pastoral das Vocações.
Nota: este texto foi lido no seu velório e, posteriormente, em todos os de quem foi falecendo na família.

__
Enquanto escrevo, o youtube vai saltitando de peça em peça. Não sei se é inteligência artificial, ou o algoritmo, ou Deus, ou o universo, mas as suas escolhas aleatórias começaram com o Lamento de Dido e agora vão nos Impromptus de Schubert - a música a que me agarrei para não soçobrar no filme "Amor" de Haneke. Estará tudo ligado?







hoje é dia de quê?

 

Um pouco de beleza para começar bem o fim-de-semana.

Lindo, este entendimento profundo entre pai e filha, e esta maneira como o pai apoia o voo da filha para muito mais longe do que ele próprio consegue voar. Quase podia ser a canção de um "Dia do Pai e da Filha", caso se lembrassem de o criar.

E por falar em dias disto e daquilo: hoje é o World Naked Gardening Day.
Mas vai ter de acontecer sem mim. Está um bocadinho fescote. E se estivesse quente, também acontecia sem mim, por causa dos cancros da pele e das rugas e assim.

Ou seja: cá em casa, World Naked Gardening Day traduz-se para Dia de São Nunca à Tarde. E ainda há quem ache que a tradução é uma coisa fácil, que qualquer um sabe fazer... (Mas se inventassem o "Dia de Jardinar em Pijama", era já hoje. Ou será que mais ninguém vai à varanda dar um jeitinho aqui e ali, naquela meia-hora entre o pequeno-almoço e o duche?)



01 maio 2025

*trabalhadora*



(fotografia de Eduardo Gageiro, 1º de Maio de 1974)

Não vai há muito tempo que, para conseguir determinado cargo laboral, uma mulher tinha de provar valer o dobro do seu concorrente masculino. Ao mesmo tempo, contava-se com ela para assegurar um turno suplementar fora do emprego: pôr a comida na mesa, cuidar dos filhos e dos familiares mais velhos, tratar da casa e das roupas.

Em termos de exigências de trabalho, era esta a equação: 

trabalhadora = 3 x trabalhador

Entretanto, já fizemos muito caminho. Hoje em dia, um a no final da palavra trabalhador pesa bem menos do que há meio século.

Contudo, não se avançou tanto quanto é necessário - a julgar pelas estatísticas de desigualdade de salários e de carga horária total, ou, num registo mais humorístico, considerando alguns apontamentos de stand-up comedy feminista e o modo como o nosso riso se encrava na garganta:

"Vocês nem imaginam a profissional espectacular que eu podia ser se tivesse uma esposa!", ou:

"A prova de que ainda não há igualdade é que muitos homens têm famílias paralelas, mas as mulheres não. Afinal de contas, a mulher nenhuma ocorreria, depois de pôr os filhos na cama e arrumar a cozinha, meter-se no carro e ir ter com a sua outra família para lhes limpar a casa de banho..." 

Mais ainda: estamos a caminho, e nada nos garante que a direcção continue a ser rumo ao futuro. Uma pequena margem percentual no resultado das eleições é quanto basta para remeter as mulheres à antiquíssima desigualdade e à condição primordial de parideiras. As polacas que o digam, as norte-americanas que o digam.

Pelo que pergunto: será que vivemos numa ilusão de progresso, e este é apenas aparente e sempre reversível? Será que uma certa ideia do masculino e do feminino ainda está bem viva em muitas mentes, apenas à espera de uma oportunidade para voltar ao espaço público? E será que o velho machismo, tantas vezes invisível para o seu portador, explica uma parte da determinação com que certos discursos da Esquerda acusam a luta feminista de dividir a classe trabalhadora?

Neste 1 de Maio, mais do que nunca, é preciso lembrar que a luta pelos direitos dos trabalhadores tem de ser também a luta pela mudança da equação. Um dia, quando esta for

trabalhadora = trabalhador

saberemos que vale a pena lutar lado a lado, e que estamos unidos pela mesma luta.

---

As outras trabalhadoras deste Largo da escrita:

A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra

30 abril 2025

perguntas para especialistas e diletantes

 

Agora que a edição revista e aumentada de Trump já passou os primeiros cem dias, tenho umas perguntinhas (e duas meias respostas) para os especialistas, e uma pergunta para os diletantes:

Para os especialistas:

1. No caso de Trump, estamos perante um quadro sociopata ou psicopata? (nunca sei a diferença)
2. As medidas e as afirmações de Trump devem ser interpretadas por analistas políticos, por psiquiatras, ou por pedopsiquiatras?
(a primeira meia resposta: parece-me que os analistas políticos estão a perder o tempo deles e o nosso, porque as decisões e as afirmações de Trump não são da ordem do político)
3. As equipas dos governantes já incluem um consultor especializado em manipulação psicológica?
(a segunda meia resposta: a de Keir Starmer já deve ter. "Sou portador de uma carta de sua Majestade, King Charles, que o convida para uma segunda visita de Estado. Isto é especial, isto nunca aconteceu antes, isto [pondo a mão no braço de Trump e olhando-o nos olhos] é inédito")

E agora nós, os diletantes: digam lá, acham que o poster XXL que está no quarto de dormir de Trump, na Casa Branca, a primeira coisa que ele vê ao acordar e a última antes de apagar a luz, é o Putin pescador, o Putin a cavalo num cavalo, o Putin a cavalo num urso, ou o Putin a avançar destemidamente sobre o leito seco de um rio?

(eu voto no pescador, por causa do "ai que linda troca de olhos, ai que linda troca de olhos fizeram-me agora ali")






25 abril 2025

*liberdade*

Hoje sou do Porto, anuncio com alegria: Liberdade, liverdade!

A liberdade conquistada pelos portugueses há 51 anos entrou de tal modo na minha vida que até me esqueço da sua existência. Como o ar que respiro: de tão natural, omnipresente e invisível, não penso nele, nem no que lhe devo. Não penso nela, nem no que lhe devo. 

E é justamente por ser tão normal que a liberdade é tão frágil. Quem nasceu livre não sabe o que é ser não-livre. Nem lhe ocorre essa possibilidade. Por ignorância do que é viver nos antípodas do que têm sem se darem conta, muitos votam contra o sistema sem se darem conta do que deitam a perder. 

Ultimamente, por causa de um convite para o casamento de uma amiga na Califórnia, dei comigo a perceber de forma palpável, mesmo física, o que é viver sem liberdade. De cada vez que punha um like numa publicação que criticava Trump, sentia o aguilhão do risco: que preço viria a pagar por isso? Hesitava, pensava duas vezes antes de escrever ou partilhar alguma publicação sobre o que se está a passar nos EUA.  

Entretanto, as notícias de maus-tratos a turistas nos aeroportos daquele país foram ficando cada vez mais alarmantes. Comecei a temer ver-me presa por tempo indefinido, a dormir no chão, com um cobertor de alumínio, incomunicável e sem acesso a advogados. E que garantia havia de que não me mandavam para El Salvador por causa de um texto, um desenho, três likes?

Foi assim que eu, cidadã livre de um continente livre, aprendi o que é o aperto no peito, o medo, e a revolta de ser obrigada a calar a voz da minha consciência em nome da minha segurança física.

Uma voz interior tentava-me: "Não escrevas, deixa andar. De qualquer maneira, o mundo não depende de ti..." Se ficasse calada, se apagasse posts e likes antigos, provavelmente não tinha problemas. Mas era mais forte que o meu medo, e por isso continuava a publicar. 

Acabei por desistir do projecto de ir à Califórnia este ano. Mas recomendo muito a quem está com vontade de votar contra o sistema (porque "em 50 anos não fizeram nada", ou porque isto "já bateu no fundo", ou porque "é preciso dar uma oportunidade aos outros, a ver se alguém finalmente faz alguma coisa") que ponha seriamente a hipótese de uma viagem aos EUA ou à Rússia, a ver se é mesmo esse o rumo que interessa dar ao nosso país e ao futuro dos nossos filhos.

---

A liberdade é só uma, mas escreve-se de muitas maneiras:

A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra


sempre!

 


O que faz falta é animar a malta,
o que faz falta,
o que faz falta é alegrar a malta,
o que faz falta.
O que faz falta é lembrar a alegria do 25 de Abril,
o que faz falta,
o que faz falta é espalhar a alegria do 25 de Abril,
o que faz falta.



24 abril 2025

o papa Francisco e o 25 de Abril


Se fosse para respeitar a memória do papa Francisco, cancelavam o evento xenófobo dos neonazis no Martim Moniz, em vez de retirar os membros do governo dos festejos do 25 de Abril.

Do Público (aqui):


 

23 abril 2025

*despertador*

O melhor despertador que conheço somos nós próprios, ou aqueles que amamos. E não me refiro ao "acorda, querido, são horas de levantar" ou ao atabalhoado "levanta-te! vais chegar atrasado à escola!", mas ao que nos faz acordar para os horrores do mundo: só despertamos realmente para a realidade quando ela começa a ameçar os nossos, ou a nós próprios. 

É nisto que tenho pensado por estes dias, a propósito do Centro de Confinamento del Terrorismo (CECOT), de El Salvador, que existe há mais de dois anos. Como foi criado para combater os gangs da droga, que não pertencem à minha bolha, continuei a dormir descansadamente. Nem sequer me dei conta de que estamos perante um campo de concentração onde se acumulam milhares de criminosos e de inocentes para ali atirados pelo poder discricionário de um Estado que usa a segurança como desculpa para não ter maçadas com tribunais, coitados, já tão sobrecarregados, ou para não correr o risco de um veredicto justo, passe o cinismo.  

Só quando os EUA começaram a enviar estrangeiros inocentes para o CECOT, e pensei nos tantos amigos e familiares que tenho nesse país, me dei conta de que a qualquer um deles pode acontecer a tragédia de a polícia o tomar por terrorista, ou anti-semita, e o enviar para uma prisão salvadorenha sem passar pelo tribunal. Só então acordei para esta realidade: os beliches de metal sem colchão, a luz acesa 24 horas por dia, a tortura, os apenas 30 minutos de exercício físico por dia, a impossibilidade de comunicar com familiares e advogados, os sinais de violência no corpo de quem morre.

"Primeiro, vieram pelos criminosos dos gangs da droga, e fiquei calado porque não era criminoso dos gangs da droga, depois vieram pelos estrangeiros sem papéis..."

O nosso melhor despertador tem de ser afinado: só nos permitirá andar a horas certas quando a perseguição a alguém for vivida como se fosse uma perseguição aos nossos. Por uma questão de humanidade (para os mais idealistas) e por uma questão de realismo (para os outros): porque já conhecemmos a embriaguez do poder desbragado, já sabemos que quem persegue uns grupos passa facilmente a perseguir os seguintes sem fazer distinções. Se permitimos que o sistema descarrile para os outros, mais tarde ou mais cedo será a nossa vez. 

---

Mais despertadores do nosso Largo:

 

22 abril 2025

nem na morte...


Parece que Trump quer ir ao funeral do papa Francisco. Coitado do papa Francisco, nem na morte...

Mas pronto, se não é possível impedir, há que dar a volta. Sentem o rei-vai-nu num lugar de destaque, e à sua esquerda sentem a bispa Mariann Edgar Budde, e à sua direita deixem uma cadeira vazia: reservada para Kilmar Ábrego García.



21 abril 2025

morreu Francisco, amigo de Jesus Cristo

 


Quando foi a primeira vez que vos ocorreu que o papa Francisco ia ser diferente dos outros? A minha primeira vez foi quando ele, recém-nomeado, apareceu perante a multidão na praça de São Pedro e pediu a todos que lhe dessem a benção. - Então...? Então...? Então....? - perguntava eu, perplexa e profundamente comovida.

E depois os sapatos cambados, em vez dos Prada do papa anterior. E a cruz do Bom Pastor, que já usava enquanto bispo.

E depois o sorriso bondoso, a gargalhada aberta e desarmante.

A gargalhada, justamente: também por isso, não consigo imaginar nenhum outro papa tão próximo de Jesus Cristo. Aqueles dois, sentados a uma mesa: que alegria, que festa fariam!

Os médicos mandavam que repousasse, mas ele ainda tinha algo importante a fazer: visitar pessoas nas prisões, receber o vice-presidente dos EUA para lhe ensinar a mensagem de amor de Jesus Cristo em especial para com aqueles que o regime de Trump persegue. E dizer-nos adeus na praça de São Pedro, onde há 12 anos pediu que o abençoássemos.

Francisco merece repousar em paz. Cumpriu a sua missão, e indicou-nos o caminho. Agora restamos nós. Mais sós, é certo - mas temos um mapa como herança.

17 abril 2025

o meu sofá ataca de novo

Estava aqui a pensar que talvez tenha sido bom as figuras mais importantes do Partido Democrata dos EUA terem ficado três meses a fazer de mortos. Deu tempo para até os apoiantes de Trump perceberem a dimensão da catástrofe.

Tendo em conta que uma guerra civil no país profundamente polarizado é um cenário bastante provável, dar tempo para as pessoas se começarem a interrogar se pertencem realmente ao lado Trump é capaz de ser uma boa ideia. ---

O meu sofá é tão produtivo e interessante que estava capaz de criar um partido, o PES - partido dos especialistas de sofá. De certeza que ganhava as eleições, e com maioria absoluta! O problema é que depois ainda me acontecia como ao outro: entre tantos especialistas de coisa nenhuma, ainda metia um par de ladrões no Parlamento.

E depois vinha o Vintruja e acusava-me de plágio.

16 abril 2025

*purgatório*

"Aqueces o azeite, pões o bife de fígado na frigideira e rezas uma avé-maria pelas almas do purgatório. Depois viras, e rezas outra vez."

Foi assim que a minha mãe me ensinou a encontrar o ponto certo da fritura.

No Minho católico da minha infância, a responsabilidade dos vivos pela memória e pelo bem-estar dos mortos era omnipresente. Da frigideira ao lume até às alminhas nas fachadas das casas e nas encruzilhadas, passando pelos cemitérios de flores sempre frescas, os nossos mortos eram mais do que uma recordação querida e uma ausência triste: continuavam a precisar de nós, da nossa atenção e do nosso cuidado.

O purgatório - esse lugar de sofrimento após a morte, onde as almas expiam os seus erros antes de poderem, enfim, descansar em paz - desempenha um papel peculiar neste entendimento do mundo. Ao dar aos crentes a possibilidade de, com as suas orações, abreviarem a dor dos que estão no purgatório, a Igreja Católica oferece uma ponte que liga os vivos aos mortos num abraço de empatia actuante: o poder de cuidar dos outros para além da própria morte. Mais ainda: o purgatório é um espaço de depuração de questões existenciais dos vivos. Por um lado, repõe a justiça no mundo, porque castiga as pessoas pelo mal que cometeram em vida; por outro lado, abre a cada um dos crentes um caminho de libertação interior, transformando os sentimentos negativos em gestos de aceitação da fragilidade dos humanos e de perdão.

[ E agora que o fígado está frito e as duas avé-marias rezadas, pergunto a quem me lê: por quem gostariam de rezar enquanto fazem a cebolada? ]

---

Mais "purgatórios":

a Carla n’A curva - Purgatório

a Rita no Boas Intenções - Purgatório

a Maria João n’A Gata Christie - Purgatório

a Calita no Panados e arroz de tomate - Purgatório

a Mariana no Gralha Dixit - Purgatório

a Joana n’O blog azul turquesa - Purgatório

a Marisa na Quinta da Cruz da Pedra - Purgatório