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18 julho 2025

"Geórgia"

 

Ontem foi dia de "Geórgia" na Enciclopédia Ilustrada.
Nunca lá fui, mas estava capaz de passar o dia a escrever sobre esse país. Primeiro post:
A #Geórgia e a Arménia são terras muito próximas do recomeço do mundo - o monte Ararat onde a arca de Noé ficou encalhada quando as águas desceram. De modo que é natural que haja competição para decidir quem foi o primeiro que fez isto e fez aquilo. A Geórgia insiste que foi quem fez o primeiro vinho do mundo, com uvas de videiras esparramadas pelo chão dos campos, envelhecido em ânforas enormes metidas na terra (as "qvevri", ou "kvevri").
Na Arménia conta-se que, quando Deus fez o mundo, chegou ao fim e descobriu que ainda tinha um monte de pedras no fundo do saco. Já estava cansado e muito farto de dar retoques no mundo inteiro, pelo que largou as pedras mesmo ali onde estava: em cima desse país. Não sei se é verdade, mas admito que seja mais suportável viver num sítio inóspito se o facto for visto como sinal da fragilidade de Deus e da sua presença concreta no lugar. “Coitado, já estava exausto quando se deitou aqui a descansar, ao sétimo dia, temos de ter paciência...”
Também me contaram que, quando vão à Geórgia, a estrada vai subindo as encostas daqueles montes imensos e, mal passam a fronteira, estende-se uma paisagem verde a perder de vista. Como se Deus se estivesse a rir dos arménios. Mas talvez não seja Deus, talvez seja a História, que, como se sabe, não é uma senhora recomendável: as fronteiras da Arménia são provavelmente aquelas que um povo ferido pelo genocídio conseguiu desenhar no braço de ferro com os poderosos vizinhos à sua volta. "Pffff, podes ficar com as pedras", terão dito esses vizinhos, imagino eu. E depois deitaram as culpas para Deus, que o divino sempre teve as costas largas.
Em todo o caso: não satisfeita com o troféu do primeiro vinho do mundo, parece que a Geórgia também arranjou de ficar com quase todo o verde da região, e desde que me contaram esta história, fiquei com enorme curiosidade de ir conhecer a Geórgia chegando pelo sul, pela estrada da Arménia. De facto, foi por causa desse contraste que a Geórgia se instalou no meu horizonte de desejos de viagem. E o palerma do algoritmo deve ter lido os meus pensamentos, porque ultimamente passa a vida a mostrar-me um vídeo para ir passar uma semana na Geórgia a aprender a cantar como eles. Só que entretanto fui ver o preço. Se calhar arranjo um professor de canto georgiano ali para os lados da Serra da Estrela, que fica muito mais barato e com dois ou três copitos daquele vinho do qvevri nem noto a diferença. Todos somos Geórgia!
(Eis, assim, como comecei a escrever um post sem saber aonde me levava, e acabei a desembocar numa mensagem de profundo humanismo: todos somos Geórgia...) (estou aqui, estou a habilitar-me ao prémio Nobel da paz)
E ainda falta dizer que a comida da Geórgia é uma delícia, pelo menos a avaliar pelo que comíamos no restaurante da cadeia de restaurantes Genatsvale, aonde fomos várias vezes quando andámos a filmar o ARtMENIANS em Yerevan, e onde fomos muito felizes.
(Eis, assim, como acabei de escrever um post que bem se podia chamar “Geórgia por um canudo, vista a partir da Arménia”)


Segundo post:

Dizer #Geórgia é dizer também Trio Mandili, e dizer Trio Mandili é, para mim, dizer aquela miúda saltitante, que vai puxando o burro por entre a que segura o telemóvel e a que toca o instrumento de cordas.
Pus a play list a correr, e de canção para canção fico cada vez mais encantada com a frescura e a alegria dela.
OK: delas.
(Dela)
Experimentem. Se ficarem como eu, aviso já: vi primeiro!


Terceiro post:



“In Bloom” é o primeiro filme da #Geórgia que me lembro de ter visto, e deixou-me uma impressão forte. Conta a história de duas amigas adolescentes em Tiblissi. Uma delas é raptada pelo homem que quer casar com ela – a política de facto consumado é uma tradição que, infelizmente, ainda persiste. E a outra, mais consciente de si própria, revolta-se com toda a situação e tenta convencer a amiga a voltar para casa, a não casar.
A cena da dança final, no dia do casamento, tem uma força inesquecível.
Depois da exibição fiquei a saber que é uma dança masculina. Melhor ainda. Grande miúda!




03 maio 2025

agora e na hora da nossa morte

Esta manhã, encontrei por acaso estes dois textos na Enciclopédia Ilustrada. Os escritores José Cardoso Pires e Maria Cecília Correia falam sobre a morte. Partilho-os apenas porque tenho a certeza de que vão acrescentar algo aos leitores deste blogue. (Mas não se preocupem comigo, está tudo bem! :) )


1.


Esta imagem, que partilho apesar da péssima qualidade da fotografia, é um apontamento que José Cardoso Pires escreveu a 2 de #Outubro de 1997. Viria a morrer em finais de Outubro do ano seguinte.
Encontrei-o na estante da sua filha Ana, e fui tocada pela naturalidade com que aceita o seu próprio Outono, e a força da alegria que se revela na última frase.
Enquanto há pargo, há esperança...

"2 Outubro 97
Fui até à varanda e nesta manhã de sol e de verão vejo a grande nespereira do quintal podada corajosamente para ganhar juventude para o ano que vem.
Para o ano que vem já cá não estarei - espero. E sonho com um acabar tranquilo e natural da folha que se desprende da nespereira e se faz estrume.
Entretanto, este outono está a ser admirável e eu continuo a viver por mim mesmo do nada que escrevo, sem ajudas dos ministérios nem dos lobbies dos mundanos da intelligentzia.
Feitas as contas, tudo bem. E amanhã, 6ª feira, espera-me uma boa posta de pargo cozido na Marítima de Xabregas."



2.

“Morrer deveria ser, pelo menos para mim, com este sentimento de ter feito as pazes com a Vida. Com a doçura de minutos serenos e contínuos, com um toque dessa doçura na minha pele interior como espécie de chuva-poeira que só pode ser ternura. Morrer deveria ser sem angústia, sem desespero, numa sequência de este usufruir de uma graça especial e gratuita que nos reveste às vezes sem que saibamos porquê. Não é a exultação, não é a posse plena dos bens que nos toca em certos dias. É isto que atrás disse: estar em paz com a Vida. Ela não magoa, não fere, não interroga (ou não interrogamos). Somos docemente amigas, ombro a ombro, mão a mão, caminhando em completo entendimento, em perfeita união, sem cantar ou antes: cantando baixo a mesma canção. E assim nos deveríamos despedir dela, sem saudade, sem remorsos de não termos sido isto ou aquilo.
E depois… Depois, o que mais desejava era entrar em Deus como entro na água verde de Galapos: liberta, calma, feliz, entregando-me totalmente sem que nada em mim se retraia, num abraço pleno a quem me abraça também.
A fusão consentida, procurada até! “
Maria Cecília Correia – “Presença Viva”, Edição do Secretariado Diocesano da Pastoral das Vocações.
Nota: este texto foi lido no seu velório e, posteriormente, em todos os de quem foi falecendo na família.

__
Enquanto escrevo, o youtube vai saltitando de peça em peça. Não sei se é inteligência artificial, ou o algoritmo, ou Deus, ou o universo, mas as suas escolhas aleatórias começaram com o Lamento de Dido e agora vão nos Impromptus de Schubert - a música a que me agarrei para não soçobrar no filme "Amor" de Haneke. Estará tudo ligado?







10 fevereiro 2025

"quinta do Carmo"

 

Ontem, a palavra mágica da Enciclopédia ilustrada era #Quinta_do_Carmo. Arquivo aqui o que escrevi lá:
(fonte: http://www.bacalhoaasia.com/index.php/pt/quinta-do-carmo)
Consta que na capela da #Quinta_do_Carmo há uma porta secreta que permitia ao rei fazer de conta que ia à missa para se pisgar para a alcova da sua amada, que vivia na casa ao lado.

Esta história da porta secreta sempre me intrigou. Ele deixava lá o padre a falar sozinho e ia dar uma rapidinha entre o acto penitencial ("confesso a Deus, e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes") e a comunhão? E o padre ia nisso? E ninguém reparava? E se reparavam todos, porque se davam ao trabalho da encenação?

E porque precisava aquele rei de uma passagem secreta, quando todos os outros faziam o que queriam às claras?

E o rei ia todos os dias à missa?

E como ia de Vila Viçosa para Estremoz? Para ganhar tempo, ia a cavalo? Chegava à sua dama todo suado, a cheirar a estrebaria?

E antes de partir, que anunciava a si próprio: "hoje vou à missa", ou "hoje vou à moça"?

26 novembro 2024

"yes we can"


Encontrei no fundo do baú este post da Enciclopédia Ilustrada, do dia em que o tema foi "yes we can". Naquela altura, ainda nem sonhávamos que o Hamas e o Netanyahu iam fazer um pas-de-deux com consequências terríveis para os civis palestinianos, e muito menos pensávamos que seria possível o Trump voltar a ganhar eleições. Portanto: estava no fundo do baú, está mais actual que nunca. ---

O Obama bem nos enganou com o seu #yes_we_can. Se calhar até a ele se enganou, e ainda mais do que a nós.

Mas lembram-se da alegria geral, do entusiasmo, como se estivéssemos a viver um momento único, como se fosse possível haver uma espécie de redenção no sistema político dos Estados Unidos?
Depois, foi o que se viu: uma andorinha, por muito bem que fale, não faz a primavera.

Mal comparado, parecia o Shining, quando a gente acredita que o cozinheiro os vai salvar, e afinal... (calateboa, não faças um spoiler).
(A verdade é que o cozinheiro se pôs a caminho ainda o filme era uma criança. É claro que ainda tinha de acontecer muita coisa até ao fim do filme, não se podiam salvar logo ali.)

Pensando bem, há muito do Shining nesta fase do mundo (os olhos desvairados do aquecimento climático a espreitar pela porta desfeita, os olhos desvairados da pandemia, os olhos desvairados da guerra e da ameaça nuclear, os olhos desvairados da fome...). Já vimos que não podemos contar com super heróis. O "yes we can" não resultou. Agora é a vez do "yes we must". Todos.
Juntos.


22 novembro 2024

#vísceras

Isto de portugueses e brasileiros pensarem que falam a mesma língua às vezes provoca situações muito estranhas. Como por exemplo no tempo em que os meus filhos eram pequeninos, e eu contava num grupo online cheio de brasileiros que ia levar os miúdos aqui e ia buscar os miúdos ali, e que ia com os miúdos ao parque ou que fora com os miúdos ao teatro, e uma simpática do Rio de Janeiro se perguntava, muito intrigada:

- Porque será que a Helena leva vísceras para todo o lado?


04 julho 2024

"queima das fitas"


Encontrei nos arquivos da Enciclopédia Ilustrada este texto que escrevi no dia em que o tema foi "queima das fitas", ao seguir ao dia em que fora "Leonardo da Vinci", e partilho: Em finais dos anos sessenta, talvez princípios dos anos setenta, lembro-me de ter ido com os meus pais ao Porto ver o cortejo da #Queima_das_Fitas. Morávamos em Braga, e a viagem de carro fazia-se a uma média de 30 ou 40 km/h - uma estopada interminável atravessando aldeias e vilas. Mas todo esse tempo na estrada foi recompensado pelo que testemunhámos no Porto: a ousadia dos carros dos estudantes, que arriscavam criticar a academia e o sistema político.
Eu era pequena - não teria nem sete anos - mas lembro-me do interesse com que o público seguia aquele cortejo, da sensação de perigo iminente que pairava no ar, das gargalhadas, da curiosidade e do frémito.
Esse cortejo marcou-me, e fez nascer em mim uma enorme admiração pelos estudantes universitários.
Quando eu própria cheguei à universidade, no princípio dos anos oitenta, a Direita estava a reconquistar terreno na Academia, e ia-se instalando uma praxe como nunca ali fora tradição. No final do curso, naquela que seria a minha última semana académica, resolvi ir à missa na catedral onde o bispo fazia a benção das fitas. Vi a catedral repleta de pessoas fardadas a preceito, a agitar as fitas e a conversar com os amigos em grande animação, como se estivessem num estádio de futebol e não numa igreja. Perguntei-me o que levava o bispo a aceitar fazer aquela figura de palhaço na sua própria casa.
De longe, vou acompanhando o desconchavo crescente: a substituição do Zeca e do Vitorino pelo Quim Barreiros nos carros de som, a cerveja e os comas alcoólicos, os abusos sexuais, a ordinarice indescritível dos temas dos carros.
Estes estudantes universitários bêbedos e alarves, estas pessoas em quem o país tanto investiu e investe, em quem deposita tantas esperanças, estão nos antípodas do Leonardo da Vinci que ontem aqui homenageámos.
É embaraçoso ver as figuras que fazem.
E, para mim, é especialmente doloroso comparar estes cortejos àquele que vi no tempo da ditadura. Os que eu vi em finais dos anos 60 eram cidadãos adultos, responsáveis e empenhados na sociedade e no mundo.
Estes? A julgar pela imagem que dão de si durante a Queima das Fitas, são pessoas embotadas pelo egocentrismo de grupo, sem ética nem sentido de dignidade, apostadas num carpe diem ditado por uma "tradição" artificial e autoritária.

24 junho 2024

"seleuma"

 

No dia em que o tema na Enciclopédia Ilustrada era "erros ortográficos" (de facto, era: "seleuma") (somos tão engraçadinhos...), aproveitei para falar do erro ortográfico de que mais me orgulho na minha carreira de tradutora.
(Só digo isto assim para atiçar a curiosidade dos leitores, claro)
Ao traduzir o "Viagem a Tralalá", de Wladimir Kaminer (um russo que escreve em alemão), deparei-me com esta frase: "Fui com o meu cunhado Sergej à inauguração do “Pirr - Restaurante de Striptease da Antiguidade”, na Travessa dos Vencedores."

Acontece que Wladimir Kaminer não desperdiça frases. Geralmente os detalhes escondem (ou revelam) uma piada. Dei por falta da piada nesta frase, e comecei a investigar, a partir da suspeita de que ele deveria querer dizer "Pirro". Acabei a conseguir confirmar que se tinha limitado a escrever o nome em russo (Пирр) com letras do alfabeto romano, em vez de a escrever em alemão correcto: Pyrrhus. E o revisor alemão não reparou.

De modo que, hehehehe, o "Viagem a Tralalá" tem em português uma piada mais do que no original: o restaurante Pirro na Travessa dos Vencedores.

(Tradução literária? Algo me diz que no McDonald's ganhava mais à hora. Mas não era a mesma coisa, isso não.)


07 junho 2024

"Zé do Telhado"

 

No dia em que o tema da Enciclopédia Ilustrada foi "telhado", tive de bater o pé: Bem sei que já fizeram posts sobre o Zé do Telhado. Contudo, ainda ninguém disse o mais importante: o Zé do Telhado é meu!

Não havia uma única vez que passássemos aquela curva da estrada entre Viana e Braga (e foram tantas!), que não me mostrassem o sítio onde o Zé do Telhado se escondia à espera das "caravanas dos comerciantes".

Semana após semana, o Zé do Telhado vinha alimentar-me os temores, imaginava o seu grupo a descer do monte aos urros, os comerciantes alarmados, o saque. À noite, antes de adormecer, encarregava vagamente o meu anjo da guarda de manter o Zé do Telhado longe da minha vida.

Muitos anos depois, quando o meu avô já quase não via e a minha avô lhe servia de co-piloto, interrompiam o monólogo do Mini ("vai mais para a direita, Soares", "um bocadinho para a esquerda, agora") para apontar o monte na curva, "olha ali é onde o Zé do Telhado se escondia..."

Mas nessa altura eu já não tinha medo do Zé do Telhado, tinha medo de ir num carro com um condutor cego e uma co-pilota paciente.


25 maio 2024

"galinha"

 

Passo a vida a contar isto, e se calhar na minha idade já me é permitido repetir as histórias, portanto aqui vai: a minha avó prendia as flores e soltava as #galinhas. Mesmo. As flores só faziam falta para a jarra na mesa da sala de jantar e para o cemitério, bem podiam crescer por trás de uma rede, muito juntas umas às outras, para as galinhas se espalharem pelo resto do terreiro, a debicar aqui e ali.
Quando tinha azar, cabia-me o quarto por cima do galinheiro, que era o que cheirava pior. Também havia dois por cima da loja do vinho, e a cozinha era por cima das vacas. A sala do Senhor, assim chamada porque era onde se recebia o crucifixo na Páscoa e onde se despediam os mortos (de janela aberta durante a noite, para ao menos a alma ir a Santiago de Compostela antes de o corpo ser metido na terra), era por cima da loja das batatas. Também tinha o seu cheiro, especialmente no inverno, quando as batatas começavam a grelar. Mas nada batia o fedor do quarto por cima da divisão de terra batida onde as galinhas passavam a noite.

De manhã, a avó embrulhava um pouco de milho no avental e abria o portelho das galinhas, que dava directamente para o caminho pelo meio das flores em clausura. Lá vinham as matronas, vagarosamente, atravessando aquela profusão de cores. A avó vinha à frente, chamava "polhinha! polhinha!", atirava o milho para o outro lado da sebe, esperava que passasse a última e fechava o portão.

Naquele terreiro, todos os dias eram de Páscoa: procurávamos os ovos que elas iam pondo aqui e ali. Não eram de chocolate, mas davam belas gemadas.

Às vezes havia um sobressalto no paraíso, e a seguir arroz de cabidela.

13 maio 2024

"quiromancia" (2)

 

Quantos riscos haveria nas palmas das mãos da senhora Aurora, a vizinha da minha avó, que teve 10 filhos, morreram 3? Quantos sulcos profundos tinha ela?

Nas mãos da mãe: como seria o risco do Querubim, que andei tantos anos a pensar que se chamava Curbinhe? E o do Paulo, que morreu num acidente de carro quando voltava da tropa? E o da Fernanda, que aos cinco anos já era responsável pelo bebé, o Bito? O risco do Bito estava gravado na mão da Fernanda, ou na da mãe?

E quem desenha os riscos nas nossas mãos, quem decide "tu, Fernanda"? Quem decide "tu, Helena"?

"quiromancia"


Não me falem de #quiromancia, maldita quiromancia!
Dá-se o caso de uma grande amiga da minha sogra dizer que lê as linhas da mão, e num dos aniversários da senhora se ter posto a ler o destino de toda a gente que estava à mesa. A mim, encontrou-me dois filhos na palma da mão. Essa é fácil de adivinhar, porque ela bem sabe da Christina e do Matthias. Espertinha...
Depois chegou a vez do meu marido, mas ela olhou e olhou e olhou e só lhe viu um filho.
Tudo isto à frente da minha sogra.

07 maio 2024

"polvo"

 


Ontem foi dia de se falar do polvo na Enciclopédia Ilustrada. Um tema fracturante, porque sendo um bicho tão inteligente e patati patata, e mais aquele documentário que ganhou o óscar, e assim, fica um bocadinho difícil continuar a comê-lo em boa consciência. De modo que é isto: continuo a comer, mas sinto remorsos.
Bem...
Diz Bill François, neste livrinho de histórias de encantar, que o #polvo é o ser mais inteligente do nosso mundo, e que só não é a espécie que o domina porque cada geração tem de aprender tudo do princípio, uma vez que a mãe morre mal os polvinhos saem do ovo, e portanto os órfãos não têm ninguém que faça a transmissão. De certo modo são sempre os primeiros no mundo, como Adão e Eva, mas sem acesso à árvore da sabedoria, digamos assim, porque essa já está morta e enterrada. Já está morta e enmarada. Já está morta e demolhada.
Ora bem: se fossem assim tão tão tão inteligentes, inventavam a figura da polva que fica para tia e ensina tudo aos sobrinhos. Ou que vai para freira e passa aos sobrinhos a receita para os doces conventuais e tudo o resto.
Portanto: os polvos podem ser muito inteligentes e tudo o mais que já foi dito, mas inteligente, o que se chama verdadeiramente inteligente, é a espécie que inventou as tias.
(Embrulha, polvo!)


01 dezembro 2023

atrasos


Todos os dias publico na Enciclopédia Ilustrada a "palavra mágica" para o dia. Devia ser às 9 da manhã (minhas 10), mas poucas vezes consigo fazê-lo à hora certa. E quase sempre escrevo um comentário a explicar o motivo do atraso. Ontem, foi este: Bom dia. Estou aqui a pensar que desculpa dar para este atrasinho. Acho que vou escrever aqui uma série delas, e vocês sirvam-se à vontadinha (escolha múltipla):

- Tive de passar a ferro logo de manhãzinha (não perguntem) e para isso liguei a mediateca para ver o noticiário de ontem, que não pude ver por causa de termos passado o filme "Índia" no festival, e enquanto houve noticiário fui passando a ferro e dobrando roupa, e quando aquele acabou começou o do dia anterior, que também estava muito interessante, e eu sempre a passar, sempre a dobrar...

- Levei o Fox ao lago, e como nevou imenso fui andando mais devagar, com medo de escorregar nas placas de gelo que às vezes estão por baixo da neve fresquinha.

- Além disso, fui a conversar com uma vizinha que deve ficar muito irritada com as minhas perspectivas esquerdistas sobre quase tudo. O tema da discórdia de hoje era sobre o direito dos herdeiros das casas antigas do nosso belo bairro residencial a ganhar uns bons milhões para trocar as casas antigas por prédios horrorosos de apartamentos de luxo que acabam por transformar as poucas casas originais restantes em objectos anacrónicos e deslocados na paisagem. E como eu insistia na minha, e ela insistia na dela, a discussão demorou mais do que devia (caramba, não sei porque é que não me deixam logo ganhar estas discussões! É uma questão de eficiência: quanto mais depressa me derem razão, mais cedo podemos ir todos à nossa vida!)

- Cheguei a casa depois do passeio do Fox e lembrei-me daquela roupa que deixei a lavar de noite, e fui estendê-la.

- Liguei o computador, fui ver se havia alguma coisa interessante e urgente para ler. Havia. 🙂



29 novembro 2023

gatos e flores


Tenho andado muito calada por aqui porque por estes dias tenho andado a dar água sem caneco no Portuguese Cinema Days in Berlin e, lamentavelmente, não consigo dar água sem caneco em todos os lugares ao mesmo tempo. O festival está a correr muitíssimo bem e já nos deu muitas alegrias (à equipa que o prepara e ao público), mas também me faz correr ainda mais do que o habitual.

Quando tiver tempo, virei cá com mais vagar. Hoje conto apenas que, por burrice do algoritmo do facebook, o fantástico grupo Enciclopédia Ilustrada está em risco de ser eliminado. E lá se vai um arquivo com oito anos de publicações sobre a "palavra mágica" de cada dia, feitas por gente com formação, sensibilidade e experiências de vida extraordinárias.

Para assinalar o perigo, ontem propus que o tema fosse "gatos e flores". Tentando evitar assuntos fracturantes...

E depois, por brincadeira, publiquei isto:


Com esta é que aposto que ninguém contava: aqui está um prato que junta #gatos_e_flores.

Do tempo em que era conserto atrás de conserto em tudo o que tínhamos. A vida dos nossos objectos parecia uma autêntica filarmónica.




03 outubro 2023

conta-se em Weimar que...

 


Na praça do teatro, o local onde foi escrita a constituição da república de Weimar, à volta da estátua de Goethe e Schiller: uma instalação a lembrar a tragédia dos refugiados.

Algum dia teria de acontecer: na Enciclopédia Ilustrada, o tema do dia foi "Weimar". Tentei sintetizar o que sei numa espécie de “as obras completas de Shakespeare em 90 minutos”. Agarrem-se bem, cá vamos nós. A minha Weimar começa com uma mulher. Já existia antes, é claro, mas era uma terra mais ou menos igual às outras
- ai caramba! Ainda agora comecei e já estou a dizer asneiras. Antes desta mulher, já lá havia alguma história: Lucas Cranach pai morreu ali no auge da fama que os seus calendários Pirelli do Renascimento lhe davam, e no auge da riqueza ganha também graças à máquina de impressão que comprara a Gutenberg, com a qual imprimia os escritos do seu amigo Martinho Lutero; e também Bach ali passou, e até passou umas semanitas na Bastilha do palácio antigo, onde ficou preso por ter decidido mudar de empregador sem pedir autorização como deve ser, e onde aproveitou o sossego de não ter a choradeira de futuros compositores como o Carl Philipp Emanuel Bach, criancinha de colo à época, aproveitou o sossego, dizia, para compor o cravo bem temperado, segundo dizem –
onde é que eu ia? Ah, já sei: Weimar seria uma terra mais ou menos igual às outras até ao dia em que uma muito culta Anna Amália, de 16 anos, foi apressadamente casada com o também muito jovem duque, para garantir descendência àquele nome antes que a frágil saúde do rapaz o levasse desta para melhor. E cumpriu: quando enviuvou, aos dezoito anos, já era mãe de um principezinho e estava grávida de outro. Tudo isto aconteceu por meados do século XVIII, quando andavam a introduzir o cultivo da batata na região. Muito ciosa da educação do filho, Anna Amalia foi à universidade de Erfurt buscar um dos mais importantes autores do Iluminismo, Christoph Martin Wieland, que veio arejar a cabeça do príncipe adolescente e de caminho traduziu peças de Shakespeare para o dar a conhecer no teatro da terra. E assim ia a vida, com Anna Amália a juntar à sua volta uma bela grupeta de intelectuais, a fazer muito pela vida cultural da região, a tratar de criar uma excelente biblioteca feminista avant la lettre (entre os livros centenários e os volumes habituais à época, havia uma surpreendente quantidade de livros de mulheres, sobre mulheres ou para mulheres), a criar uma escola de artes para elevar o nível cultural da população. Foi então que Wieland convidou Goethe a vir passar uns dias a Weimar, “parece-me que vais gostar”, terá ele dito. Goethe, que andava pelos 25 anos e já tinha escrito “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, veio, encontrou uma corte a viver literalmente em cima de caixotes porque o palácio ducal tinha ardido quase completamente (sobrou a Bastilha do Bach, ao menos isso) – e ficou. Uma dama da corte, Charlotte von Stein, deve ter sentido a atracção do abismo, porque andou décadas a tentar dar modos - lá está: corteses - àquele génio intempestivo. Acabou por desistir quando Goethe meteu em casa uma “barregã”, a Christiane Vulpius, e quando partiu apressadamente para Itália, mais que farto dos tantos espartilhos que lhe impunham. Pois Goethe lá foi a Itália, lá voltou feliz e contente, lá recebeu das mãos do grão-duque (o Carl-August, sabem? Aquele dos cães Weimaraner) uma casinha muito jeitosa mais perto do centro da cidade, que na realidade eram duas: a casa virada para a rua, uma autêntica casa de fachada onde ele recebia as visitas importantes, e por trás dessa a casa onde vivia com a “barregã” e o seu filho August. Nas traseiras desta, o jardim onde ele fazia as suas experiências botânicas, e os pavilhões onde guardava as suas colecções de pedras, esqueletos de animais, e tudo o mais que lhe interessava. Goethe regressou tão cheio de boas impressões que contagiou todos com a febre da Itália, e lá foi a corte conhecer também esse universo tão diferente das terras de Weimar.













Entretanto: entra Schiller em cena. A princípio ficou-se por Jena, a 20 km de Weimar. Goethe devia achar que Weimar era demasiado pequena para ambos. Só ao fim de vários anos é que Goethe se dignou falar com “o outro”, e acabaram por ficar amigos. Embora nunca se saiba o que significa “amigos” quando se trata de Goethe. Na terra, conta-se que terá tido o crânio do seu amigo Schiller em cima da sua secretária. Eu cá não sei de nada, ouço coisas destas e lembro-me logo do museu que exibia o crânio de Napoleão aos sete anos de idade. Além disso, Schiller era tão remediadinho que o deitaram numa vala comum, e ainda hoje não se sabe bem a quem pertencem os ossos desencontrados que muitos anos mais tarde foram buscar a esse cemitério para depositar numa urna mais digna, ao lado da de Goethe, no monumental túmulo da família ducal. Schiller sai de cena, demasiado cedo como todos os que vêm ao mundo por bem. É a vez de Napoleão chegar a Weimar e ser recebido – que remédio! – com todas as honras no novo palácio ducal. Foram tempos difíceis em Weimar, com os soldados franceses a saquear e destruir tudo o que podiam. Conta-se na terra que Christiane Vulpius, a mulher com quem Goethe vivia há mais de vinte anos, defendeu a sua casa – as duas, aliás, a de trás, e a da fachada para a rua – com unhas e dentes, e por isso Goethe decidiu casar com ela numa de Sturm und Drang. Também se diz que eles não defenderam nada, limitaram-se a albergar naquela famosa casa alguns dos chefes franceses. E também se diz que Goethe terá decidido casar com a sua companheira porque, perante o devastador cenário de tantas mortes e destruição, terá pensado em fazer alguma coisa acertada na vida. Em todo o caso: em meia dúzia de dias tomou a decisão e consumou: casou com "a sua barregã". O que provocou grande escândalo em Weimar. Mas a mãe do Schopenhauer abriu uma pequena brecha no muro de resistência da corte, dizendo: “Se o Herr Goethe lhe deu o seu nome, nós seremos capazes de lhe oferecer um chá.” E convidou a nova Frau Goethe para o seu salão. Pouco antes das invasões francesas e daquela vitória perto de Jena que abriu a Napoleão o caminho para leste, chegara a Weimar uma russa, filha e irmã de czares, neta de Catarina, a grande, recentemente casada com o filho de Carl August. Este escrevera uma carta muito humilde ao czar, dizendo que sempre tivera esse sonho, sem que ousasse dizê-lo em voz alta, mas ao saber que um primo dele casara o seu filho com uma das princesas russas, vinha agora temerariamente patati-patata. E foi assim que a pobre da Maria Pavlovna, coitadita, veio de São Petersburgo para Weimar. Ao chegar, pensou que o palácio ducal seria a residência familiar para as férias no campo. Mas não, era mesmo ali que faria o resto da sua vida, e lá tentou fazer o melhor que podia. Por sorte, pouco depois de casar teve de fugir às tropas francesas e regressou a casa durante algum tempo. Matar saudades da vida urbana, coisas assim. Mas não há guerra que sempre dure (“infelizmente...”, terá ela suspirado) (isto sou eu a imaginar), e lá voltou para Weimar, onde assumiu as suas funções com dignidade e sentido de dever. Quando a vida te dá limões em forma de um Herr Goethe já entradote, convidas Liszt para vir morar na tua província e tentas dar nova força à vida cultural da terra, agora com música. Foi isso mesmo que a princesa russa fez, e correu bem: tal como anteriormente muitos escritores tinham procurado aqui a proximidade de Goethe, em meados do século XIX vários compositores estiveram muito presentes na cidade. O mais famoso será com certeza Wagner, e talvez viesse mais por causa da filha de Liszt que pelo colega propriamente dito, e aqui estreou Tannhäuser. Para além de dar novo fôlego à vida cultural da cidade, Maria Pavlovna fez muito mais por Weimar: desde elevar o nível político do ducado e garantir uma protecção especial devido à aliança com a Rússia, até uma obra social muito abrangente, em grande parte paga do seu próprio bolso, que fez dela uma grã-duquesa muito amada. Na segunda metade do século XIX não acontece nada de realmente empolgante na cidadezinha, excepto em termos de marketing: reforça-se a ideia da importância histórica da cidade no panorama cultural alemão, põe-se em frente ao teatro uma estátua de Goethe e Schiller, ambos do mesmo tamanho e volume (na vida real, eram o Bucha e o Estica), com as mãos unidas por uma coroa de louros que Goethe entrega a Schiller, mas tendo cada um deles o olhar no seu próprio horizonte. A estátua foi feita com o bronze de canhões fundidos oferecidos pelo rei da Baviera. Canhões dos turcos, diga-se de passagem - e pergunto-me que diria Goethe, o do divã ocidental-oriental, sobre isso. Damos agora um salto de várias décadas até ao fim da primeira guerra mundial. Em 1919, a pacata cidade é sacudida por duas enchentes: os estudantes que procuram a nova escola, a Bauhaus, onde se sentem parte de um movimento inebriante de modernidade; e os deputados que fogem aos violentos tumultos de Berlim para aqui escreverem com mais sossego a constituição da república recém-criada. A população de Weimar olha para toda esta gente com perplexidade. Particularmente o pessoal da Bauhaus, essas raparigas de cabelos curtos que andam misturadas com rapazes, esse estranho Itten que faz no parque de Goethe cerimónias esotéricas com os seus (e as suas!) estudantes em trajes menores. Os deputados regressam a Berlim com a sua constituição escrita paredes meias com Goethe e Schiller, Wagner e o Shakespeare de Wieland. A Bauhaus fica. As mães da cidade ameaçam os filhos: “se não comes a sopa toda, vêm por aí os da Bauhaus!”




Pintura mural de Oskar Schlemmer no edifício de oficinas da Bauhaus.

Talvez os meninos não tenham comido a sopa toda - e quem veio foram os nazis. A Turíngia, onde fica Weimar, é uma das primeiras regiões onde se implantam. Weimar adora Hitler, Hitler adora Weimar – e apropria-se da sua herança histórica, e manipula-a a seu bel-prazer. Uma das primeiras promessas do partido NSDAP, se ganhar as eleições, é expulsar a Bauhaus de Weimar. A escola muda-se para Dessau em 1926, e junto à primeira casa Bauhaus, a Haus am Horn, constroem-se casas como os nazis acham que deve ser – lado a lado, apesar de terem sido construídas anos depois, parecem cem anos mais antigas.





Memorial dos povos Sinti e Roma vítimas dos nazis.


Memorial dos judeus vítimas dos nazis.

O campo de concentração de Buchenwald é construído numa colina junto à cidade, na floresta onde Goethe tanto gostava de passear, e durante oito anos ali serão cometidos diariamente crimes hediondos. No centro da cidade constroem um hotel “para mil anos”, como o Reich, com uma única varanda virada para a praça onde fica também a casa de Lucas Cranach. A varanda do Führer. A população da cidade enche a praça e chama o seu querido Führer em brados festivos. E é aqui, precisamente aqui, que Weimar me provoca enorme tristeza, profundo desalento: depois dos escritos de Lutero que Cranach distribuía, depois da música de Bach nas igrejas, de inúmeras encenações das peças de Shakespeare e de Schiller no teatro, de todo o trabalho de Goethe, depois de tantos salões culturais, depois da biblioteca e da escola de artes da Anna Amalia, depois das obras de apoio social da Maria Pavlovna, depois de todo o esforço para implantar valores humanistas na sociedade e elevar o nível cultural da população: Weimar foi um dos primeiros lugares onde os nazis se conseguiram estabelecer.