24 junho 2025

Mascha Kaléko


Fique registado que no dia 23 de Junho de 2025 descobri a poeta Mascha Kaléko (1907-1975), e que a descobri por um poema que me deixou o dia inteiro a pensar como podia ser traduzido. 

De modo que agora tenho duas dúvidas: como traduzir este poema, e como me aconteceu ter andado tantos anos sem saber da existência da Mascha Kaléko. 

O problema central da tradução deste "Take it easy!" é que usa uma expressão idiomática, "pôr no ombro fácil" em tradução literal, com o sentido de não levar as coisas muito a sério. Pensei em "fechar um olho", mas a expressão portuguesa tem uma conotação mais próxima de tolerar algo que se sabe não estar certo - o que não é bem a mesma coisa. Seria mais "deitar para trás das costas", mas o texto exige que haja um contraponto, e fazê-lo com costas e barriga era o anticlimax do poema. Porque, convenhamos, na tradução de poemas, o meu desplante vai ao ponto de virar os versos sem pensar na métrica, nem na rima, nem no ritmo, nem na música -  mas anticlimax já é abuso! Até para mim. 

Portanto, para os mais curiosos, aqui deixo a tradução do sentido do poema, usando a tradução literal da expressão idiomática:


"Take it easy!"

Tehk it ih-si, dizem-te
Em inglês, para mais. 
"Põe no ombro fácil!"

Acontece que tens dois.
Põe sobre o fácil. 

Obedeci a este imperativo
Popular humanitário.
E fiquei torta. 
Porque o outro ombro
Também existe.

Por desdita há então que se forçar 
A escolher, às vezes, o mais difícil. 



Mascha Kaléko nasceu em 1907 em Chrzanów, perto de Auschwitz, filha de um casal de judeus - de mãe austríaca e pai comerciante russo. Em 1914, por causa da guerra, ou talvez por causa da violência crescente dos pogroms no Leste da Europa, a família decide fugir para a Alemanha, onde não é bem recebida. Devido à sua nacionalidade, o pai chegou a estar preso num campo de "estrangeiros inimigos".

(...) Já tinha seis anos, e ainda acreditava
Que no fim das guerras havia paz.


Em 1918, instalam-se em Berlim. Mascha aprende secretariado, e observa a Berlim dos anos vinte. Escreve de forma simples sobre o que conhece e vivencia. O quotidiano na grande metrópole. O amor e a fragilidade. A condição das jovens mulheres emancipadas daquela época, a sua tosca emancipação ("Vivemos de pão e chá / porque é barato. / Por vezes há quem nos ofereça um souper / ...se estivermos disponíveis. (...) De nada serve todo o crêpe satin / Somos os que somos: apenas manequim."). Escreve sobre a liberdade de costumes dessa década berlinense ("Aqui e ali beijos em bancos tranquilos / - ou então em barcos a remos. / O erotismo é reservado para os domingos. / ...E quem se lembra de pensar no futuro? / Chamamos as coisas pelos nomes, e só raramente coramos."

No famoso Romanisches Café, mesmo em frente à Gedächtniskirche (onde é agora o centro comercial Europa-Center, ao fundo do Ku'damm), consegue passar da "piscina dos pequeninos" para a "piscina dos nadadores", a pequena sala à esquerda onde diariamente se encontram os mais importantes jornalistas, críticos, escritores, artistas plásticos, músicos e actores daquela época: Else Lasker-Schüler, Gottfried Benn, Georg Grosz, Alfred Döblin, Bertolt Brecht, Hanns Eisler, Erich Kästner, Stefan Zweig, Erich Maria Remarque e tantos outros.

No final dos anos vinte já é uma autora aclamada. O primeiro livro publicado esgota rapidamente. Diz-se que só a poesia de Goethe vende mais. 

Trabalho oito horas como empregada
Por má paga cumpro as tarefas do dia
Em certas noites escrevo poesia
O meu pai diz, era só o que nos faltava. 

A pouco e pouco, chega a mudança radical. Os nazis conquistam o poder. No centro de Berlim, na praça entre a ópera e a universidade, atiram livros à fogueira. Por agora, os livros de Mascha Kaléko escapam, porque o regime ainda não se deu conta de que é judia. No Romanisches Café, aparece um grupo de homens em uniforme a perguntar por Walter Mehring, cuja recente peça de teatro irritara os nazis. Mascha Kaléko arma-se em inocente, distrai-os com uma longa conversa, enquanto Mehring escapa discretamente do local, atravessa a praça em direcção à estação do Jardim Zoológico, e apanha sem demora o primeiro comboio para Paris. Em 1937, o seu editor dá-lhe a terrível notícia: está proibida de trabalhar como escritora e de publicar. 

Em Setembro de 1938 consegue fugir para os EUA, com o filho e o marido. Mesmo a tempo! Um mês mais tarde, o regime nazi declara que os passaportes de judeus já não são válidos, e dois meses mais tarde incendeia sinagogas e empresas de judeus em todo o país. Mascha Kaléko e a família estão a salvo em Nova Iorque, mas ela não se sente feliz ("Tudo à minha volta desabrocha à luz do sol / Mas esta Primavera não é a minha"). O casal tenta criar em Greenwich Village um café com um ambiente semelhante ao do Romanisches Café, mas sem sucesso. Torna-se claro que esse tempo passou, e não voltará nunca. O marido é músico, encontra facilmente trabalho. A poeta em língua alheia vê-se remetida para funções de mãe, esposa e assistente do marido. 

Os homens com ofício têm sempre
um tesouro, normalmente feminino.
O que faz falta às mulheres
É a "esposa do artista". Ou um substituto equivalente. 
Mesmo que não seja uma Vénus,
Com doce boquinha de rosa,
Está por ali, escreve bem à máquina, e cozinha.
(...)
Quando Siegfried desembainhava a espada, e Don Carlos o punhal, 
raramente os chamavam para irem mudar as fraldas ao bebé. 
A alma de Petrarca, afastada do mundo, compunha os seus poemas
Livre de obrigações tais como limpar os legumes.

Bem gostaria de continuar estas linhas, mas, como sempre, tenho de interromper.
- O meu marido chama. Quer falar comigo sobre o seu próximo concerto


Regressam a Berlim em 1956, e Mascha kaléko dá-se conta de tudo o que já não existe na sua cidade  tão amada: 

Berlim na primavera. Berlim sob a neve.
O meu primeiro livro numa livraria.
Os amigos no Romanisches Café.
O tanto que vejo que já não vejo!
Tão alto me falam as pedras de "Pompeia"!
Engolimos ambos o remédio por fim.
Pompeia sem pompa. Bonjour, Berlin!


Numa retrosaria da Uhlandstraße, ao comprar um artigo qualquer, é reconhecida pela dona da loja, que vai ao fundo da loja buscar o seu livro "caderno lírico de estenografia", a primeira edição de 1933. Diz-lhe que o guardou durante todo aquele tempo terrível, e pede-lhe um autógrafo. 

Outros encontros não são tão aprazíveis. O tempo da inocência já vai longe. No país que quis exterminar um povo, nunca sabe com quem está a falar, que tipo de experiências fez essa pessoa, como a vê, e que espécie de discurso espera dela. 

Em 1956, ao saber que o prémio Fontane, da Academia das Artes de Berlim, lhe será entregue por um antigo membro das SS, recusa-se a recebê-lo. O secretário geral da Academia tenta persuadi-la a aceitar, diz que o escritor e membro do júri já ultrapassou há muito aquele seu erro de juventude, que é muito bem visto em toda a sociedade. Diz-lhe que a Academia se sente muito satisfeita por conseguir atrair um crítico tão conceituado, pede-lhe para considerar que ele precisa daquele cargo porque não consegue viver apenas do que escreve, e que todos temos uma família para sustentar. Apela à sua sensibilidade e empatia de mulher. Ela explica que, como emigrante, também não tem a vida fácil. No estrangeiro, perguntam-lhe como se pode identificar de novo com o mundo da escrita de um país que continua a manter nazis em lugares de destaque. Que irá ela responder depois de receber um prémio de literatura das mãos de um antigo SS? Não, por muito que o prémio a honre e o montante lhe faça falta, não pode aceitá-lo nestes termos, nem como escritora nem como judia. O director explode: "Não sou judeu, e passei por dificuldades iguais ou até maiores que os judeus. E não é possível acusá-lo eternamente por causa de um erro de juventude. Só se tornou SS por ser tão alto. Tudo isso já foi ultrapassado e está resolvido..."

Nunca mais foi nomeada para um prémio de literatura. 

Como sempre, continua a escrever poemas sobre a sua vida e os seus contextos. Os editores pedem-lhe mais leveza, mais humor, tal como escrevia antes. A vida é difícil para todos, dizem, o público precisa de textos estimulantes. Os poemas melancólicos e desanimadores não fazem falta a ninguém. 

A Alemanha do pós-guerra remete Mascha Kaléko para o esquecimento. O seu nome não consta dos léxicos da literatura alemã, nem mesmo em 1990. E a sua obra integral só é publicada em 2012. E talvez isso ajude a explicar porque andei todos estes anos sem saber dela. 

O casal emigra para Israel em 1960. Nova língua, novo exílio. 

Para onde quer que viaje, 
Vou para Lugar Nenhum

    

E também:



Inventário

Casa sem telhado
Criança sem cama
Mesa sem pão
Estrela sem luz.

Rio sem cais
Montanha sem cabo
Pé sem sapato
Fuga sem destino.

Telhado sem casa
Cidade sem amigo
Boca sem palavra
Floresta sem cheiro.

Pão sem mesa
Cama sem criança
Palavra sem boca
Destino sem fuga. 


Termino com um poema seu (traduzido, tal como todos os anteriores, muito à pressa) que parece uma mensagem enviada ao nosso tempo:


Neste tempo

Não temos outro tempo senão este, 
Que para nós inclina escasso copo.
Temos de beber. Uma segunda vez
Não floresce para nós.  À distância, já um monstro:

Efemeridade. Somos meros seres fugazes
Por trás de toda a luz, a palidez nos avisa.
Já se derrama em nós o gelo de um brilho tardio
E somos velhos antes de ter sido jovens.

Chegámos outrora com a credulidade da infância
A um século devastado pela tempestade. 
Ainda temos esperança. Dentro de nós um silêncio de espanto.
Mas só recebe ajuda quem grita.

Por vezes sonhamos com o paraíso
E o desejo de felicidade nos envergonha.
Famintos, tentamos conquistar o nosso pedaço. 
- Não temos outro tempo senão este...


---

Quase todas as informações contidas neste texto foram retiradas de um programa da SWR3, de 5.1.2025:

„Ich habe mit Engeln und Teufeln gerungen“ – Lebensspuren der Dichterin Mascha Kaléko, de Simone Hamm.

Mais alguns poemas:

- Traduzidos para 
português: https://escamandro.wordpress.com/2018/06/27/mascha-kaleko-por-valeska-brinkmann/  

- E para inglês: https://thehighwindowpress.com/2022/08/08/mascha-kaleko-four-poems/ 

- E para espanhol: https://poemashumanos.com/2018/09/13/y-patria-es-solo-donde-estoy-contigo-tres-poemas-de-mascha-kaleko/

E um pouco de música: https://www.deutschelyrik.de/einmal-sollte-man.html


19 junho 2025

aniversário

Hoje o meu deus faz anos (meu e de mais ninguém, ouviram?)
De modo que vou daqui até ao Mezio - onde tenho encontro marcado para uma caminhada no Parque e outras coisinhas mais - a cantar as tantas canções dele que sei de cor: diz que Deus diz que dá, se eu só lhe fizesse o bem, se acaso me quiseres, o primeiro me chegou, quando olhaste bem nos olhos meus, vai meu irmão, mirem-se no exemplo, apesar de você, e agora eu era o herói, pai afasta de mim esse cale-se, olha será que ela é moça, eu faço samba e amor até mais tarde, e muitas mais, e mais todas as dos Saltimbancos.
Com tanta cantoria ainda me perco no caminho, e ainda vou ter a um ermo com uma azinheira (ou um carvalho), e ainda me aparece a mãe deste meu deus lá em cima dos ramos, e eu então, digo-lhe assim:

- Obrigada. 

11 junho 2025

e assim ia a vida

Lembra-me o facebook que há onze anos estava a mudar de casa, e não foi fácil:

Ponto da situacäo:
- estamos vivos
- mas a nossa internet nem por isso (parece que vem cá hoje um homem fazer näo sei que ligacäo, e depois parece que é só esperar mais um bocadinho, até ao Outono, disseram)
- ao fim de 4 camiöes de mudancas descobri que o meu mal é síndroma da personalidade múltipla:
-- livros? sou o Pacheco Pereira
-- quadros? parece a despensa do Gurlitt - literalmente, excepto no que diz respeito ao nome dos autores
-- sapatos? acabei de descobrir que sou a Imelda Marcos
-- agilidade? sou o Tarzan, movendo-se por entre uma selva de caixas - e nem preciso de lianas
E assim vai a vida.

03 junho 2025

se andam com falta de sorrir, venham!

 



Sabem aquilo de chegar Novembro e eu ter pena de todos os portugueses que não estão em Berlim para poderem ver bom cinema português nos Portuguese Cinema Days in Berlin?

Pois bem: quando Maomé não vai à montanha...

No próximo sábado, em Lisboa, há uma sessão de homenagem a Maria Teresa Horta, que inclui o revolucionário filme de António de Macedo, Verão Coincidente (1963), baseado num poema da escritora, e O Que Podem as Palavras (2022), o documentário sobre as autoras das Novas Cartas Portuguesas que encantou o público berlinense quando passou aqui, em Novembro de 2024.

Já conto o resto do programa, mas deixem-me parar um pouco mais neste documentário: demorou dez anos a ser concluído, e, enquanto avançava e não avançava, as escritoras morreram. Ficou apenas Maria Teresa Horta, e as entrevistas preparatórias que nem tinham sido feitas para entrar realmente no filme. O resultado é um milagre: um relato a três vozes que encaixam perfeitamente umas nas outras, e de onde emana uma enorme alegria de ser e de resistir.
Se andam com falta de sorrir, venham ao Cinema Ideal no próximo sábado às 4 da tarde. Se querem conhecer/lembrar os meandros daquele julgamento e da primeira acção feminista internacional em defesa daquelas valentes portuguesas, venham também.

Mas o programa vai muito além disto. Após a exibição, haverá uma conversa com a realizadora Luísa Marinho, António de Sousa Dias e Manuel Neves, moderada por Anabela Galhardo Couto.
Vão falar de um tema menos conhecido na vida de Maria Teresa Horta: a sua ligação ao cinema.
Não haverá certamente muitas mais oportunidades na nossa vida para ouvir Manuel Neves contar como, ali para o início da década de 50 do ano passado, o ABC Cine-Clube de Lisboa passou um filme extraordinário, que atraiu um grupinho de gente jovem, entre os quais vinha aquela rapariga a quem ele, algum tempo depois, viria a pedir que assumisse a direcção do cineclube, porque o regime não lho permitia a ele. E foi assim que Maria Teresa Horta se tornou a primeira mulher portuguesa à frente de um cineclube, e foi humilhada pela PIDE, e começou a arranjar sarilhos com a ditadura, aos 18 anos acabadinhos de fazer.

Caso queriam saber mais, encontramo-nos no próximo sábado, 7 de Junho, às 4 da tarde, no Cinema Ideal.

Bilhetes (5€/4€) à venda na bilheteira do cinema, ou online:
https://bilheteira.cinemaidealemcasa.pt/ (se não for possível comprar, tentem entrar por outra página do site, ou passar do PC para o telemóvel, ou vice versa)
Mais informações: https://www.facebook.com/events/1250223019866617



02 junho 2025

duas vezes Ligeti

 

1. Bem sei que tenho "Ligeti" no título do post, mas de facto é: Barbara Hannigan, Barbara Hannigan, Barbara Hannigan!



2. O segundo Ligeti é esta peça para cem metrónomos. Recomendo muito pôr várias janelas com este filme a tocar ao mesmo tempo, muito baixinho. Uma pessoa até se sente na Amazónia, num daqueles momentos em que o céu nos cai em cima da cabeça feito chuva.


A wikipedia diz sobre ela:
"The piece requires ten "performers", each one responsible for ten of the hundred metronomes. The metronomes are set up on the performance platform, and they are then all wound to their maximum extent and set to different speeds. Once they are all fully wound, there is a silence of two to six minutes, at the discretion of the conductor; then, at the conductor's signal, all of the metronomes are started as simultaneously as possible. The performers then leave the stage. As the metronomes wind down one after another and stop, periodicity becomes noticeable in the sound, and individual metronomes can be more clearly distinguished. The piece typically ends with just one metronome ticking alone for a few beats, followed by silence, and then the performers return to the stage.[1]
The controversy over the first performance was sufficient to cause Dutch Television to cancel a planned broadcast recorded two days earlier at an official reception at Hilversum's City Hall on 13 September 1963.[2][3] "Instead, they showed a soccer game".[4] Ligeti regarded this work as a critique of the contemporary musical situation, continuing:
but a special sort of critique, since the critique itself results from musical means. ... The "verbal score" is only one aspect of this critique, and it is admittedly rather ironic. The other aspect is, however, the work itself. ... What bothers me nowadays are above all ideologies (all ideologies, in that they are stubborn and intolerant towards others), and Poème Symphonique is directed above all against them. So I am in some measure proud that I could express criticism without any text, with music alone. It is no accident that Poème Symphonique was rejected as much by the petit-bourgeois (see the cancellation of the TV broadcast in the Netherlands) as by the seeming radicals. ... Radicalism and petit-bourgeois attitudes are not so far from one another; both wear the blinkers of the narrow-minded.[5] Poème symphonique was the last of Ligeti's event-scores, and marks the end of his brief relationship with Fluxus.[6] The piece has been recorded several times, but performed only occasionally."

3. E como não há dois sem três... Aqui ficam os nonsense madrigals. Uma reinvenção.


01 junho 2025

 



Diz-me o Facebook que faz ontem um ano estava de novo a ser feliz na Filarmonia: 1.6.2024 Ontem regressei ao Simon Rattle (ou ele a mim) e foi lindo – tudo!
A peça que Jörg Widmann escreveu para o trompista Stefan Horn (estreia mundial, e se calhar primeira e última vez que é tocada, que esta peça é um inconseguimento programado para qualquer trompista, excepto o Stefan Dohr) (hum...hum... acabei de ser desamigada por todos os trompistas do mundo, excepto o Stefan Dohr) era uma delícia de surpresa e humor.
Dei comigo a pensar que estava muito mais certa na batuta de Simon Rattle que na de um Petrenko: ali estava ele, o Simon Rattle da inovação e do risco, do prazer do inesperado na música, do humor. O Simon Rattle dos Late Night.
Na 6ª de Bruckner: ali estava o Simon Rattle a dirigir a música tantas vezes apenas com a expressão do rosto, a tirar desta orquestra toda a transparência, a profundidade e a subtileza de que ela é capaz.
E ali estava eu num dos bancos do coro, por trás da percussão, tão perto que bem podia ser mais uma da orquestra, encantada e com as costas a doer, sem tirar os olhos do maestro.
Uma sinfonia inteira a sorrir.
Havia várias cadeiras vazias na sala, teria sido possível sair dos bancos do coro e ir ocupar um lugar mais confortável. Mas ficaram todos. Desconfio que tinham tantas saudades como eu de ver o Simon Rattle a comunicar com a orquestra.

27 maio 2025

o imobilismo alemão a abrir brechas


Felix Klein, comissário do governo federal alemão para a vida judaica na Alemanha e o combate ao anti-semitismo, passou de um recente "Em princípio, não me parece mal que haja ideias novas e radicais"(estava a falar de "Trump Gaza") para um "É preciso repensar a solidariedade e o significado de raison d'État na relação entre o Estado alemão e Israel. (...) Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir a segurança de Israel e dos judeus em todo o mundo. Mas também temos de deixar claro que este compromisso não desculpa tudo." Vai mais longe: matar os palestinianos à fome e piorar deliberadamente a situação humanitária não tem nada a ver com a salvaguarda do direito de Israel à existência. E também não pode ser raison d'État da Alemanha. Israel tem o direito de se defender contra o ódio genocida do Hamas. Mas o objectivo do exército deve ser lutar contra os terroristas do Hamas que utilizam a população civil como escudo, e libertar os reféns israelitas. Perante o que está a acontecer em Gaza, é legítimo questionar se Israel está a respeitar o princípio da proporcionalidade. É certo que, na entrevista num noticiário da televisão pública, se fartou de gaguejar. Pelo que uma pessoa se pergunta de que espécie de cavalo terá caído para ter esta transformação radical. Mas adiante: tudo está bem, quando vai na direcção certa. Ontem, o chanceler Merz também apareceu com um discurso muito mais incisivo que aquele a que estamos habituados na política alemã. Criticou abertamente as acções de Israel em Gaza, afirmando que a extensão dos danos causados à população civil já não pode ser justificada como uma luta contra o terrorismo do Hamas. “Quando os limites são ultrapassados, quando o direito internacional humanitário está a ser violado, também a Alemanha, também o chanceler alemão, tem de dizer alguma coisa sobre isso”, disse em entrevista à WDR. No seu governo de coligação, já se ouvem vozes do SPD a apelar ao fim da exportação de armamento para Israel. Vem cinquenta mil mortos demasiado tarde. Mas se servir para a Alemanha repensar o seu apoio e novas maneiras de assumir a sua enorme parte de responsabilidade na criação de Israel, e se servir para evitar a deportação da população de Gaza para outra tragédia qualquer, e se servir para começar a tratar seriamente de uma solução de dois Estados nas fronteiras anteriores a 1967... mais vale tarde que nunca. (Para isto andar realmente para a frente, e para Israel deixar de ter desculpas perante a comunidade internacional para continuar a dizimar os civis palestinianos, era o Hamas - por uma vez na sua vida - pôr os interesses da população palestiniana à frente dos seus próprios, e propor trocar a sua existência por um bem maior: a criação do Estado Palestiniano.)

malditos imigrantes?


Na semana passada, uma mulher alemã com problemas psiquiátricos graves desatou à facada na estação de caminho de ferro de Hamburgo, ferindo dezoito pessoas. A boa notícia: já nenhum dos feridos se encontra em risco de vida.

Muhammad Al Muhammad também estava nesse cais. Quando viu todas as pessoas a correr numa direcção, o refugiado sírio, de 19 anos, decidiu correr na direcção oposta, para travar a mulher. Juntamente com outro homem, um tchetcheno, conseguiram imobilizá-la até à chegada da polícia.

O que mais me impressiona no caso de Muhammad Al Muhammad é ele ter fugido da Síria com 16 anos para salvar a vida, e ter escolhido arriscá-la para salvar os outros. Vi-o ontem, no noticiário, a contar o que se passou. Nem sequer falava alemão, mas arriscou a vida para salvar os outros.

Já não é a primeira vez que acontece algo deste género. Há alguns anos, refugiados sírios deram-se conta de que havia entre eles um que estava a preparar um ataque na Alemanha. Foram a casa dele, dominaram-no, e entregaram-no à polícia, já bem manietado e pronto a levar. Numa outra cena de facadas na rua, também na Alemanha, alguns homens começaram a atirar cadeiras de esplanada contra o atacante. Eram todos descendentes de imigrantes turcos.

Mas claro que nada disto tem algum valor para pessoas que decidiram adoptar o ódio e o preconceito como estratégia de afirmação e valorização pessoal. E os partidos oportunistas escolhem dizer-lhes o que elas querem ouvir. Por muito mentira que seja.









 https://www.facebook.com/reel/1425937745256185

26 maio 2025

"portugueses originários"

 


Estou com a jornalista. Também não sei o que são "portugueses originários". Segundo Pedro Frazão, é “ius sanguini”, e fica o caso resolvido. Acha ele...

Em primeiro lugar, o que está definido na lei é o "ius soli". Mas, mesmo que ele consiga mudar a lei, eu continuo sem perceber o que é um "português originário". Vejamos:

Os filhos dos emigrantes, nascidos fora de Portugal: seriam então "portugueses originários", por causa do "ius sanguini". Pela mesma lógica, consideram-se então estrangeiros no país onde nasceram, e não se devem queixar se os políticos desse país entenderem que (cito da entrevista) "têm primordialmente como missão tornar o seu país melhor para os cidadãos originários". Gostava de esclarecer este ponto, porque tenho dois filhos nascidos fora de Portugal. E os nascidos em Portugal, filhos de casais de pessoas com nacionalidades diferentes? 50% de sangue de "português originário" já basta para ser também "português originário"? E 25%? E um bisavô português? Também tenho dúvidas sobre outra questão: se aceitarem "cidadãos originários a 50%", a cor da pele não interessa? Quer dizer, é indiferente serem filhos de uma portuguesa e de um estrangeiro loiro e de olhos azuis ou serem filhos de uma portuguesa e de um estrangeiro negro?

Focando-nos no sangue propriamente dito: a partir de que momento é que o sangue de lusitanos, fenícios, romanos, suevos, ostrogodos, árabes, judeus, ciganos, berberes, vikings e tudo o mais se transforma em "português originário"? D. Afonso Henriques, por exemplo, que era filho de um borgonhês e de uma galega: era "português originário"? Todos os "portugueses originários" são iguais, mesmo que uns tenham mais sangue borgonhês e galego como o nosso primeiro rei, e outros tenham mais sangue norte-africano, como o das populações que ele subjugou para aumentar o seu país? Finalmente: como é suposto funcionar na prática? Vão acrescentar no cartão de cidadão o respectivo teor de "português originário" (100%, 50%, 25%...)?

Quanto mais penso, mais complicado me parece. Alguém peça aos jornalistas que, da próxima vez que entrevistarem o Pedro Frazão, lhe perguntem estas coisas com mais detalhe, para ficarmos todos esclarecidos.


um post que começa na minha cozinha e acaba no Parlamento

 

Tenho andado a reflectir cá em coisas, e chegou o momento de debater estes assuntos com as pessoas simpáticas que por aqui passam.

É o seguinte: a experiência que tenho feito com a Bimby mostra que é jeitosa para sopas, gaspachos e saladas de crudités (um dia destes decidirei como traduzir isto para português), mas em termos do resto é muito sabores tipo papa de bebé. A Bimby não apura a comida como uma cozinheira portuguesa que se preze. De modo que ultimamente dou comigo a pôr a comida na mesa e a dizer "bem, pelo menos é saudável..." assim como se estivesse a pedir desculpa. E estou.

E é por isso que tenho andado aqui a reflectir que se calhar devia introduzir um passo prévio e fazer um estrugidinho como deve ser, primeiro a cebola tipo 120º durante 2 ou 3 minutos, depois o alho, e só então depois os restantes ingredientes à maneira de como diz a receita, em vez de obedecer ao cookidoo, que é: misturar tudo logo à partida e deixar aquilo a cozer praticamente em temperatura de quem queria apenas marinar.

Que me dizem? Acham que é razoável, ou será que vou dar com os burros da rebeldia na água?

Uma outra questão que me tem dado que reflectir: os passos da receita atrasam-me muito a vida - a vocês não? Tenho a sensação que perco demasiado tempo com "uma colher de sal de chá" -> continuar -> "uma pitada de pimenta" -> continuar -> 5 g de noz moscada -> continuar -> etc.
No meu tempo, isto chamava-se "tempere a gosto" e estava a andar. Não tenho paciência para tanta burocracia.

Mas a pergunta que, nos tempos que correm, realmente me exige mais esforço de reflexão é esta: sendo certo que queimo muitas vezes os cozinhados quando uso o fogão, e que a comida da Bimby não queima o suficiente, e que portanto de uma forma ou de outra há sempre motivos para descontentamento, como é que meter um bando de incompetentes barulhentos na minha cozinha vai melhorar a qualidade da comida que ponho na mesa?

histórias de dignidade

 

Para começar a semana da melhor maneira, duas histórias da dignidade que podemos todos facilmente trazer ao nosso mundo:


1. Em Amesterdão: uma mulher visita o Rijksmuseum pela última vez.

(Foto: Stichting Ambulance Wens Nederland/oh)


2. Sebastião Salgado a falar sobre comunicação.


23 maio 2025

a esperança que nos deixa

 


De Sebastião Salgado, guardo a beleza das imagens - especialmente as que nos mostram a dor dos humanos a preto no branco. Imagens de enorme dignidade.
E guardo com uma gratidão ainda maior o testemunho que nos deixou sobre a capacidade de regeneração da Natureza.
Saibamos seguir o seu exemplo.

está escrito


Leram-me as linhas das mãos, e é isto: parece que vão ter de me aturar por cá até depois de 2050.

(Fiquei muito aliviada: ainda tenho tanto que fazer que ia ficar com muito stress se me dessem menos de trinta anos) 



22 maio 2025

e depois recomeçamos

 


Ouvi esta canção pela primeira vez pouco depois de Bolsonaro ter ganho as eleições.
Parecia o fim do mundo, mas não. Nunca é o fim do mundo. São "apenas" dias tenebrosos pela frente. A linguagem racista, xenófoba e anti-diversidade vai instalar-se de novo na sociedade como se fosse algo natural, como se o errado fosse reconhecer a dignidade de todos os seres humanos. O Parlamento vai ter grandes dificuldades para conseguir trabalhar. O tecido social vai rasgar-se mais. As pessoas vão ficar mais cínicas e desconfiadas.

E depois, pufff, um belo dia tudo volta atrás, e recomeçamos a trabalhar para construir um país decente.

Vamos atravessar estas trevas de mãos dadas, e vamos estar especialmente atentos para proteger os bodes expiatórios que um gang de pessoas sem carácter quer espezinhar no altar do ódio.
.
Se o mundo ficar pesado
Eu vou pedir emprestado
A palavra POESIA
.
Se o mundo emburrecer
Eu vou rezar pra chover
Palavra SABEDORIA
.
Se o mundo andar pra trás
Vou escrever num cartaz
A palavra REBELDIA
.
Se a gente desanimar
Eu vou colher no pomar
A palavra TEIMOSIA
.
Se acontecer afinal
De entrar em nosso quintal
A palavra tirania
.
Pegue o tambor e o ganza
Vamos pra rua gritar
A palavra UTOPIA


21 maio 2025

não há milagres

 

Sobre "a esquerda que não faz nada pelas pessoas", lembram-se de quando a Geringonça entrou em campo, e se ouviu um enorme suspiro de alívio em todo o país?
Pode ser percepção minha, mas tenho ideia de que, repentinamente, já não era preciso ultrapassar a troika pela direita.
Nos primeiros dois meses, a Geringonça reverteu boa parte das políticas duríssimas do governo de direita. Baixou a carga tributária nos grupos de rendimentos mais baixos, devolveu salários na função pública e aumentou o salário mínimo.
Lembro-me em particular de ter posto fim a uma situação terrível do tempo da troika: as famílias que perdiam as casas em que viviam por, devido à crise, não conseguirem pagar o empréstimo bancário.
Foi há 10 anos. Já esqueceram? Ou fui eu que sonhei?
Há descontentes? Pois claro que há descontentes! É impossível agradar a gregos e troianos, sobretudo quando uns querem sol na eira e outros querem chuva no nabal, e os terceiros nem sabem o que querem, mas querem já, imediatamente, perfeito e sem demora.
O caso do alojamento local é um bom exemplo da dificuldade de governar: se o governo tenta evitar a passagem de habitação para turismo, os donos das casas que precisam do dinheiro protestam. Se o governo não faz nada, os que andam desesperados para arranjar casa protestam.
Há sempre descontentes.
Se fossemos um país rico, riquíssimo, podíamos resolver os problemas atirando-lhes dinheiro para cima. Mas não somos.
Pelo que haverá sempre descontentes.
E mesmo que fôssemos riquíssimos, haveria sempre alguém a protestar, e a sentir-se deixado para trás por não ter tanto como lhe parece que o vizinho tem, a criticar tudo o que é feito e tudo o que fica por fazer.
Finalmente: se é para andar à procura de culpados do que aconteceu nas eleições do dia 18 de Maio, convém ter também presente que andamos a ser manipulados nas redes sociais por forças poderosíssimas apostadas em desestabilizar os sistemas democráticos; que - como se vê na nova era inaugurada por Trump e Musk - é possível comprar as eleições descaradamente; que o edifício da cooperação internacional é extremamente sensível, e um país sozinho não tem grande margem de manobra; que o grande capital inventa sempre maneiras de escapar ao controlo; que o racismo e a xenofobia correm docemente no silêncio dos corações até aparecer o primeiro flautista de Hamelin a fazê-los sair da toca.
Os partidos do arco democrático portugueses fizeram muitas asneiras, pois fizeram. Mas é injusto e perverso atirar para cima deles as culpas de tudo.
Porque, de facto, andamos há anos a jogar Calvinball.
(Se não entenderam a última frase, vão ler Calvin & Hobbes. Sempre aproveitam melhor o tempo que andando por aqui a bater nos "partidos de esquerda que se esqueceram do que deviam ser".)

20 maio 2025

O discurso da infâmia

 Partilho, do Facebook, este texto de Nuno Morna:


 
𝗢 𝗱𝗶𝘀𝗰𝘂𝗿𝘀𝗼 𝗱𝗮 𝗶𝗻𝗳𝗮̂𝗺𝗶𝗮.
[num domingo à noite, febril, deitado de lado, com o coração aos gritos e a televisão ligada no volume errado]
Ontem à noite, o país sentou-se a ver o circo. Um circo de uma só figura, de um homem só, de um espectáculo monológico onde o palhaço também era domador, director, macaco amestrado, leão faminto e criança perdida que grita da plateia para que olhem para ele, só para ele, sempre para ele. André Ventura falou. Falou como quem cospe. Falou como quem bate. Falou como quem quer ser amado mas só sabe odiar. E parte do país, a parte do país fatigado de esperar por Deus, ouviu. Ouviu como se ouve o padre numa missa a que se vai por obrigação, como se ouve a mulher que já não se ama ou o pai que já não se respeita. Ouviu com raiva, com cansaço, com culpa.
Disse que acabara o bipartidarismo. Disse-o como quem anuncia a queda de Roma, o fim dos tempos, a libertação do povo escolhido. E ali estava ele, o Moisés do populismo, de microfone à frente
e a azia no bolso como quem esconde a vergonha, prometendo terra prometida a quem nunca teve jardim. Disse que a história tinha mudado, que agora o país era outro, um país dele, feito por ele, para ele, com ele ao leme e os outros calados, de joelhos, em silêncio. Ventura quer o país em silêncio. O país de joelhos. O país em medo. Ventura não quer governar. Ventura quer mandar. E o que há de mais grave é que há quem deseje ser mandado. Há quem precise.
O Chega não é um partido. É uma carência. Um sintoma. É o vómito do país que nunca curou a sua tristeza. Que finge que é alegre no São João, no Santo António, nas bifanas do domingo, nos copos do sábado, nas sardinhas do Junho. Mas que sangra por dentro. Que odeia por dentro. Que tem raiva de si, de tudo, de todos. Ventura oferece isso: um inimigo. Um sentido. Um alvo. Se há um culpado, já não sou eu. Já não é o meu fracasso, o meu salário, a minha solidão. É o cigano, o negro, o comunista, o assistente social, o jornalista, o juiz, o reformado, o artista, o pobre, o estranho. Ventura dá um nome à frustração. E isso consola. E isso vicia. E isso mata.
O seu discurso foi uma lista de cadáveres simbólicos. “Matei o partido de Álvaro Cunhal”, disse, como se estivesse a caçar fantasmas no sótão. “Varreram o Bloco de Esquerda do mapa”, gritou, com o orgulho de quem limpa sangue do chão e chama a isso arrumação. Para Ventura, política é isso: uma limpeza. Uma desinfecção. Uma purga. Como se o país estivesse sujo e só ele, com a sua verdade puríssima, o pudesse lavar. E lavar com quê? Com insultos. Com medo. Com castigos. Com prisões perpétuas. Com castrações químicas. Com multas. Com violência.
E depois, claro, o momento cómico, se a comédia ainda tivesse graça. Atacou as sondagens. Sempre as sondagens. Sempre o mesmo coro: que o queriam calar, que o queriam derrubar, que lhe mentem, que lhe fazem armadilhas. Ventura não percebe que as pessoas viram no seu partido com vergonha de o fazer, de o dizer às sondagens. Ventura é o miúdo que jogava mal à bola e que ninguém quis na equipa e passou o resto da vida a sonhar ser capitão. E agora que lhe deram um apito, anda a expulsar todos os que correram mais depressa do que ele. Ventura não acredita em instituições. Acredita em si. Ventura não acredita em regras. Acredita no seu instinto. Ventura não acredita no país. Acredita no seu espelho.
E depois aquela frase. Aquela frase que soa a taverna com vinho barato e gritaria ao fundo. “A mama vai mesmo acabar.” Disse-o com o orgulho de quem faz justiça, mas com o tom de quem está habituado a mentir e a justificar-se com o cansaço. A mama vai acabar. A mama, quer dizer, o Estado. Os apoios. Os direitos. A solidariedade. Os serviços. A dignidade. Ventura quer um país onde só os fortes sobrevivem. Onde quem não consegue, morre. Onde quem chora, se cala. Onde quem precisa, se esconde. Porque, para ele, a vida é uma luta de cães. E ele é o dono da trela.
Mas Ventura não quer que a mama acabe. Ventura quer ser ele a mamar. Quer o lugar do outro. Quer mandar nos subsídios. Quer mandar na televisão. Quer mandar na escola. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. E o país, esse país magoado, esse país velho que já não acredita em ninguém, esse país que se esqueceu como é que se luta, esse país votou nele como quem diz: “toma, faz tu melhor.” E ele fará. Mas não será melhor. Será só mais triste. Mais cruel. Mais pequeno.
O que me espanta não é Ventura. Ventura é uma personagem de novela das seis: previsível, mal escrita, exagerada. O que me espanta é o silêncio. O silêncio dos outros. O silêncio dos bons. O silêncio dos sérios. Dos que deviam estar ali, naquele exacto momento, a dizer: basta. Mas estavam calados. Com medo de perder votos. Com medo de serem insultados. Com medo de não parecerem “populares”. E assim se mata uma democracia: não com balas. Com medos. Com cobardias. Com silêncios.
Este discurso, o de 18 de ontem, não foi um discurso. Foi uma bofetada. Foi uma noite de gritos num quarto fechado. Foi o início de qualquer coisa escura. E se não gritarmos agora, se não dissermos agora, alto e claro, que isto não é normal, que isto não é aceitável, que isto não é o país que queremos, amanhã já não poderemos falar. E depois? Depois virá o silêncio. O grande silêncio. O silêncio dos cemitérios. E Ventura sorrirá. Porque não há nada mais cómodo para quem quer mandar do que um povo sem voz. E nós estamos perigosamente perto disso. Perto de calar. Perto de baixar a cabeça. Perto de desistir.
E quando isso acontecer, será tarde. Será sempre tarde.
Maio 2025
Nuno Morna
P.S: Estarei sempre do outro lado da barricada. Com todos os que são, efectivamente, pessoas de bem, não os que se dizem, mas os que o demonstram, com os que amam a liberdade sem adjectivos e a democracia sem asteriscos. No combate a todos os radicalismos, venham eles mascarados de justiça ou de ordem, de povo ou de nação. No combate aos que aparecem para dividir, para semear o ódio, para apagar a pluralidade, para transformar o medo em política. No combate, sempre, à intolerância, a intolerância dos gritos e a dos silêncios cúmplices.
Quero viver com a noção de que "Combati o bom combate", 2 Timóteo 4:7-8.
Da minha parte, não esperem outra coisa. Nem agora, nem nunca.

19 maio 2025

a nossa casa


Hoje dei comigo a pensar naquela piadinha "Foge cão, que te fazem barão! Mas para onde, se me fazem visconde?"
É que, no país onde vivo, a extrema-direita teve 20,8% dos votos para o Parlamento Federal, e no país de onde vim teve 22,6%.
Para onde quer que vá, uma em cada cinco pessoas (ou quase uma em quatro) com quem me cruzo na rua pode ser uma dessas que querem "abanar o sistema". Uma dessas que em vez de fazer funcionar o cérebro prefere entregar as tripas às percepções com que é intoxicada nas redes sociais e em certos jornais e canais de TV. Uma dessas que usa o seu voto para destruir o Portugal que temos vindo a construir juntos e com muito esforço neste meio século de liberdade, cientes dos valores que nos movem e do tanto que ainda temos para andar.
Ouço dizer que os jornalistas tiveram culpa nisto. Terão tido alguma, mas reparem que a diferença substancial no comportamento do jornalismo na Alemanha não está a impedir a AfD de crescer.
(Sim, bem sei que o Bild existe - mas a esmagadora maioria dos outros não leva a AfD ao colo.)
Também ouço dizer que a culpa é da esquerda, que se esvaziou, que se tornou woke, que se afastou dos princípios originais. Esta conversa dá pano para mangas, mas convinha olhar para o contexto internacional: se a culpa dos resultados de ontem fosse mesmo do PS e do BE, como explicar que no mundo inteiro a direita radical esteja a crescer desta maneira?
Não. Em Portugal como nos restantes países, a culpa de um em quatro eleitores votarem num partido da direita radical, é antes de mais de cada uma dessas pessoas. Ninguém pode fugir à responsabilidade pessoal das consequências do seu voto.
Quero-me bem longe de pessoas assim. Prefiro a companhia daqueles três em quatro eleitores que votaram num partido democrático, seja lá qual for: dentro do espectro democrático, todas as opções são dignas de respeito.
Mais de 75% de eleitores que apostam na Democracia e num voto construtivo, apesar de todas as dificuldades e dúvidas, é algo que temos de celebrar. Vivam! Espero continuar a encontrar-me convosco em projectos de construção da casa comum, e espero que consigamos melhorar a nossa maneira de estar uns com os outros. Continuaremos a discordar sobre o melhor rumo para o país, mas permanecemos unidos no essencial: a luta contra os que querem destruir algo tão básico e indiscutível como o sistema democrático e o respeito pelos direitos humanos.