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17 maio 2025

saudades de tudo

 

 

Depois de passar umas férias connosco em Weimar, uma amiga de San Francisco contou-me que sentia saudades das aldeias da Turíngia. Na altura ri-me incrédula: pois se ela morava em Haight-Ashbury, e todos os dias atravessava a ponte sobre a baía!

Há tempos, a atravessar a Turíngia de comboio, lembrei-me desse comentário. Estas aldeias, que fotografei à pressa, nem são as mais bonitas. Mas sei das outras, essas povoações adoçadas à ondulação das colinas, com as suas igrejas esbeltas que Feininger gostava de pintar com ponto de fuga no além.

E sei da beleza da Bay Area , e concluo: posso ter saudades de ambas.





03 outubro 2023

conta-se em Weimar que...

 


Na praça do teatro, o local onde foi escrita a constituição da república de Weimar, à volta da estátua de Goethe e Schiller: uma instalação a lembrar a tragédia dos refugiados.

Algum dia teria de acontecer: na Enciclopédia Ilustrada, o tema do dia foi "Weimar". Tentei sintetizar o que sei numa espécie de “as obras completas de Shakespeare em 90 minutos”. Agarrem-se bem, cá vamos nós. A minha Weimar começa com uma mulher. Já existia antes, é claro, mas era uma terra mais ou menos igual às outras
- ai caramba! Ainda agora comecei e já estou a dizer asneiras. Antes desta mulher, já lá havia alguma história: Lucas Cranach pai morreu ali no auge da fama que os seus calendários Pirelli do Renascimento lhe davam, e no auge da riqueza ganha também graças à máquina de impressão que comprara a Gutenberg, com a qual imprimia os escritos do seu amigo Martinho Lutero; e também Bach ali passou, e até passou umas semanitas na Bastilha do palácio antigo, onde ficou preso por ter decidido mudar de empregador sem pedir autorização como deve ser, e onde aproveitou o sossego de não ter a choradeira de futuros compositores como o Carl Philipp Emanuel Bach, criancinha de colo à época, aproveitou o sossego, dizia, para compor o cravo bem temperado, segundo dizem –
onde é que eu ia? Ah, já sei: Weimar seria uma terra mais ou menos igual às outras até ao dia em que uma muito culta Anna Amália, de 16 anos, foi apressadamente casada com o também muito jovem duque, para garantir descendência àquele nome antes que a frágil saúde do rapaz o levasse desta para melhor. E cumpriu: quando enviuvou, aos dezoito anos, já era mãe de um principezinho e estava grávida de outro. Tudo isto aconteceu por meados do século XVIII, quando andavam a introduzir o cultivo da batata na região. Muito ciosa da educação do filho, Anna Amalia foi à universidade de Erfurt buscar um dos mais importantes autores do Iluminismo, Christoph Martin Wieland, que veio arejar a cabeça do príncipe adolescente e de caminho traduziu peças de Shakespeare para o dar a conhecer no teatro da terra. E assim ia a vida, com Anna Amália a juntar à sua volta uma bela grupeta de intelectuais, a fazer muito pela vida cultural da região, a tratar de criar uma excelente biblioteca feminista avant la lettre (entre os livros centenários e os volumes habituais à época, havia uma surpreendente quantidade de livros de mulheres, sobre mulheres ou para mulheres), a criar uma escola de artes para elevar o nível cultural da população. Foi então que Wieland convidou Goethe a vir passar uns dias a Weimar, “parece-me que vais gostar”, terá ele dito. Goethe, que andava pelos 25 anos e já tinha escrito “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, veio, encontrou uma corte a viver literalmente em cima de caixotes porque o palácio ducal tinha ardido quase completamente (sobrou a Bastilha do Bach, ao menos isso) – e ficou. Uma dama da corte, Charlotte von Stein, deve ter sentido a atracção do abismo, porque andou décadas a tentar dar modos - lá está: corteses - àquele génio intempestivo. Acabou por desistir quando Goethe meteu em casa uma “barregã”, a Christiane Vulpius, e quando partiu apressadamente para Itália, mais que farto dos tantos espartilhos que lhe impunham. Pois Goethe lá foi a Itália, lá voltou feliz e contente, lá recebeu das mãos do grão-duque (o Carl-August, sabem? Aquele dos cães Weimaraner) uma casinha muito jeitosa mais perto do centro da cidade, que na realidade eram duas: a casa virada para a rua, uma autêntica casa de fachada onde ele recebia as visitas importantes, e por trás dessa a casa onde vivia com a “barregã” e o seu filho August. Nas traseiras desta, o jardim onde ele fazia as suas experiências botânicas, e os pavilhões onde guardava as suas colecções de pedras, esqueletos de animais, e tudo o mais que lhe interessava. Goethe regressou tão cheio de boas impressões que contagiou todos com a febre da Itália, e lá foi a corte conhecer também esse universo tão diferente das terras de Weimar.













Entretanto: entra Schiller em cena. A princípio ficou-se por Jena, a 20 km de Weimar. Goethe devia achar que Weimar era demasiado pequena para ambos. Só ao fim de vários anos é que Goethe se dignou falar com “o outro”, e acabaram por ficar amigos. Embora nunca se saiba o que significa “amigos” quando se trata de Goethe. Na terra, conta-se que terá tido o crânio do seu amigo Schiller em cima da sua secretária. Eu cá não sei de nada, ouço coisas destas e lembro-me logo do museu que exibia o crânio de Napoleão aos sete anos de idade. Além disso, Schiller era tão remediadinho que o deitaram numa vala comum, e ainda hoje não se sabe bem a quem pertencem os ossos desencontrados que muitos anos mais tarde foram buscar a esse cemitério para depositar numa urna mais digna, ao lado da de Goethe, no monumental túmulo da família ducal. Schiller sai de cena, demasiado cedo como todos os que vêm ao mundo por bem. É a vez de Napoleão chegar a Weimar e ser recebido – que remédio! – com todas as honras no novo palácio ducal. Foram tempos difíceis em Weimar, com os soldados franceses a saquear e destruir tudo o que podiam. Conta-se na terra que Christiane Vulpius, a mulher com quem Goethe vivia há mais de vinte anos, defendeu a sua casa – as duas, aliás, a de trás, e a da fachada para a rua – com unhas e dentes, e por isso Goethe decidiu casar com ela numa de Sturm und Drang. Também se diz que eles não defenderam nada, limitaram-se a albergar naquela famosa casa alguns dos chefes franceses. E também se diz que Goethe terá decidido casar com a sua companheira porque, perante o devastador cenário de tantas mortes e destruição, terá pensado em fazer alguma coisa acertada na vida. Em todo o caso: em meia dúzia de dias tomou a decisão e consumou: casou com "a sua barregã". O que provocou grande escândalo em Weimar. Mas a mãe do Schopenhauer abriu uma pequena brecha no muro de resistência da corte, dizendo: “Se o Herr Goethe lhe deu o seu nome, nós seremos capazes de lhe oferecer um chá.” E convidou a nova Frau Goethe para o seu salão. Pouco antes das invasões francesas e daquela vitória perto de Jena que abriu a Napoleão o caminho para leste, chegara a Weimar uma russa, filha e irmã de czares, neta de Catarina, a grande, recentemente casada com o filho de Carl August. Este escrevera uma carta muito humilde ao czar, dizendo que sempre tivera esse sonho, sem que ousasse dizê-lo em voz alta, mas ao saber que um primo dele casara o seu filho com uma das princesas russas, vinha agora temerariamente patati-patata. E foi assim que a pobre da Maria Pavlovna, coitadita, veio de São Petersburgo para Weimar. Ao chegar, pensou que o palácio ducal seria a residência familiar para as férias no campo. Mas não, era mesmo ali que faria o resto da sua vida, e lá tentou fazer o melhor que podia. Por sorte, pouco depois de casar teve de fugir às tropas francesas e regressou a casa durante algum tempo. Matar saudades da vida urbana, coisas assim. Mas não há guerra que sempre dure (“infelizmente...”, terá ela suspirado) (isto sou eu a imaginar), e lá voltou para Weimar, onde assumiu as suas funções com dignidade e sentido de dever. Quando a vida te dá limões em forma de um Herr Goethe já entradote, convidas Liszt para vir morar na tua província e tentas dar nova força à vida cultural da terra, agora com música. Foi isso mesmo que a princesa russa fez, e correu bem: tal como anteriormente muitos escritores tinham procurado aqui a proximidade de Goethe, em meados do século XIX vários compositores estiveram muito presentes na cidade. O mais famoso será com certeza Wagner, e talvez viesse mais por causa da filha de Liszt que pelo colega propriamente dito, e aqui estreou Tannhäuser. Para além de dar novo fôlego à vida cultural da cidade, Maria Pavlovna fez muito mais por Weimar: desde elevar o nível político do ducado e garantir uma protecção especial devido à aliança com a Rússia, até uma obra social muito abrangente, em grande parte paga do seu próprio bolso, que fez dela uma grã-duquesa muito amada. Na segunda metade do século XIX não acontece nada de realmente empolgante na cidadezinha, excepto em termos de marketing: reforça-se a ideia da importância histórica da cidade no panorama cultural alemão, põe-se em frente ao teatro uma estátua de Goethe e Schiller, ambos do mesmo tamanho e volume (na vida real, eram o Bucha e o Estica), com as mãos unidas por uma coroa de louros que Goethe entrega a Schiller, mas tendo cada um deles o olhar no seu próprio horizonte. A estátua foi feita com o bronze de canhões fundidos oferecidos pelo rei da Baviera. Canhões dos turcos, diga-se de passagem - e pergunto-me que diria Goethe, o do divã ocidental-oriental, sobre isso. Damos agora um salto de várias décadas até ao fim da primeira guerra mundial. Em 1919, a pacata cidade é sacudida por duas enchentes: os estudantes que procuram a nova escola, a Bauhaus, onde se sentem parte de um movimento inebriante de modernidade; e os deputados que fogem aos violentos tumultos de Berlim para aqui escreverem com mais sossego a constituição da república recém-criada. A população de Weimar olha para toda esta gente com perplexidade. Particularmente o pessoal da Bauhaus, essas raparigas de cabelos curtos que andam misturadas com rapazes, esse estranho Itten que faz no parque de Goethe cerimónias esotéricas com os seus (e as suas!) estudantes em trajes menores. Os deputados regressam a Berlim com a sua constituição escrita paredes meias com Goethe e Schiller, Wagner e o Shakespeare de Wieland. A Bauhaus fica. As mães da cidade ameaçam os filhos: “se não comes a sopa toda, vêm por aí os da Bauhaus!”




Pintura mural de Oskar Schlemmer no edifício de oficinas da Bauhaus.

Talvez os meninos não tenham comido a sopa toda - e quem veio foram os nazis. A Turíngia, onde fica Weimar, é uma das primeiras regiões onde se implantam. Weimar adora Hitler, Hitler adora Weimar – e apropria-se da sua herança histórica, e manipula-a a seu bel-prazer. Uma das primeiras promessas do partido NSDAP, se ganhar as eleições, é expulsar a Bauhaus de Weimar. A escola muda-se para Dessau em 1926, e junto à primeira casa Bauhaus, a Haus am Horn, constroem-se casas como os nazis acham que deve ser – lado a lado, apesar de terem sido construídas anos depois, parecem cem anos mais antigas.





Memorial dos povos Sinti e Roma vítimas dos nazis.


Memorial dos judeus vítimas dos nazis.

O campo de concentração de Buchenwald é construído numa colina junto à cidade, na floresta onde Goethe tanto gostava de passear, e durante oito anos ali serão cometidos diariamente crimes hediondos. No centro da cidade constroem um hotel “para mil anos”, como o Reich, com uma única varanda virada para a praça onde fica também a casa de Lucas Cranach. A varanda do Führer. A população da cidade enche a praça e chama o seu querido Führer em brados festivos. E é aqui, precisamente aqui, que Weimar me provoca enorme tristeza, profundo desalento: depois dos escritos de Lutero que Cranach distribuía, depois da música de Bach nas igrejas, de inúmeras encenações das peças de Shakespeare e de Schiller no teatro, de todo o trabalho de Goethe, depois de tantos salões culturais, depois da biblioteca e da escola de artes da Anna Amalia, depois das obras de apoio social da Maria Pavlovna, depois de todo o esforço para implantar valores humanistas na sociedade e elevar o nível cultural da população: Weimar foi um dos primeiros lugares onde os nazis se conseguiram estabelecer.

02 dezembro 2020

Napoleão e eu, e mais uns quantos

Calhou de estar a morar em Weimar quando a região lembrou a batalha de Jena e Auerstedt, por ocasião do seu bicentenário. Um dos eventos organizados foi a reconstituição da batalha nos próprios campos em que acontecera duzentos anos antes. Fui ver, e lembrou-me uma fantasia infantil com soldadinhos de ferro - só que estes eram de carne e osso, e muito bem fardados, e vinham com cavalos e armas. 

Para leigas como eu, aquilo era uma patetice de homens a andar para um lado e para o outro. Mas para eles deve fazer sentido, porque repetiram pelo menos em 2016 - que é a data deste filme:


A batalha de Jena abriu a Napoleão o caminho para a Rússia. Mas antes disso os soldados dele fizeram alguns estragos em Weimar e nas vizinhanças. Um deles ainda lá está à vista de todos: uma bala de canhão bem enterrada na fachada de uma casa vizinha da de Goethe. Terríveis momentos aqueles (contaram-me em Weimar de forma tão viva que acreditei que a pessoa os tivesse vivido ela própria): os soldados em semicírculo virados para a casa de Goethe, prontos a invadir e pilhar. Imagino Goethe lá dentro, preparado para o pior. Mas eis que a porta principal se abre, e Christiane Vulpius se apresenta aos soldados, destemida e zangada. A partir daqui, as versões divergem: há quem diga que os soldados preferiram não afrontar aquela fúria, e fizeram meia volta e debandada geral. E há quem diga que os soldados franceses, uns cavalheiros, preferiram não incomodar a senhora. Finalmente, historiadores há que dizem que Goethe era muito respeitado por Napoleão, e que, enquanto Christiane empatava os soldados, Goethe foi falar com o comandante francês pedindo para ele pôr os seus homens com dono.
Se me deixassem mandar, escolhia a primeira versão, que é a mais engraçada.  

Nessa altura, Goethe vivia já há duas décadas com a Christiane Vulpius em regime de pouca-vergonhice. Mas depois daquele episódio ganhou juízo, foi logo meter os papéis para casar, e passados uns dias estavam a unir oficialmente os trapinhos há muito unidos (sim, que a Erotica Romana não se escreveu sozinha). Não é que isso melhorasse muito a situação daquela mulher, que continuava a ser desprezada pela sociedade. Só a Frau Schopenhauer, a mãe do filósofo, foi capaz de um momento de delicadeza quando a convidou para o seu salão, dizendo às outras megeras snobs "se Goethe foi capaz de lhe dar o seu nome, nós também conseguiremos dar-lhe um chá". O que está bem dito, mas podia também lembrar-lhes que a Christiane tinha dado um filho ao Goethe, e que isso vale bem mais do que um nome ou todo o chá do mundo. De facto, Christiane deu cinco filhos a Goethe, mas só o primeiro sobreviveu - os outros morreram todos à nascença, vítimas de eritroblastose fetal. Penso às vezes no sofrimento de Christiane Vulpius: essa mulher a quem os filhos morriam logo após o parto. Como será, depois da morte do segundo filho, depois da morte do terceiro, estar de novo grávida e a temer que o quarto possa morrer também? E o quarto a morrer também à nascença, e ela a engravidar de novo, e a passar outros nove meses de horroroso temor? 

Se fosse comigo, ganhava tamanha fúria contra a vida que ficava bem capaz de aviar todos os soldados de Napoleão à bofetada. Pelo menos. 

Em Weimar contaram-me também que os soldados franceses fizeram imensa festa em frente à casa de Schiller, recitando alguns dos seus poemas que tão bem harmonizavam com os ideais da revolução francesa. Não sei. Em todo o caso, não seria um amor correspondido. Ao contrário dos outros grandes de Weimar (Goethe, Herder, Wieland), Schiller recusou-se a louvar o poderoso invasor, remetendo-se a um precavido silêncio.

Quem não podia ficar calado era o Grão-Duque Karl August. Pelo contrário: depois de perdidas as batalhas de Jena e Auerstedt, e de enviar a sua jovem nora Maria Pavlovna, irmã do czar, em direcção à segurança de São Petersburgo, recebeu Napoleão no seu palácio para negociar o melhor que pôde. Napoleão entra no palácio, começa a subir a escadaria monumental, e admira o candelabro gigante suspenso sobre as escadas. E é neste momento que eu própria entro na história: duzentos anos mais tarde dei comigo a viver numa casa em frente a esse candelabro. À noite, quando havia recepções no palácio e as luzes se acendiam festivamente, parava uns momentos a olhar, unida a Napoleão por um encanto que me transportava no tempo dois séculos para trás. 


 


    

26 abril 2020

"quiche"

A cena que vou contar passou-se em Weimar, no coração da Turíngia, uns 15 anos depois da reunificação. Nessa época, a maior parte das pessoas falava russo como segunda língua, e ia tentando fazer o seu caminho entre o sistema em que se socializara, e o sistema forasteiro que se viera impor às suas vidas.

O liceu da minha filha usava uma forte componente de francês para afirmar a sua diferença no panorama escolar da cidade, e por isso atraía muitas famílias vindas da parte ocidental da Alemanha. As reuniões de pais eram muitas vezes momentos de confronto de paradigma - que eu, portuguesa, observava como se não fosse nada comigo.

Numa dessas reuniões falava-se das propostas que vários pais tinham feito para as comidas a servir numa festa escolar. A directora de turma juntara as propostas numa lista, que íamos lendo e discutindo.

Perante a oferta de levar uma #quiche, feita por uma família de Frankfurt, uma mulher de Weimar perguntava completamente desorientada:

- Kvitxe? Que é isto?

Ela lera a palavra francesa segundo as regras do alemão: "u" a seguir a "q" lê-se como "v". E, obviamente, não fazia a menor ideia da língua original da palavra, e do seu significado.

Uns dias mais tarde a pessoa que fizera a proposta de levar uma quiche comentava comigo aquele momento. Ria-se imenso com o sucedido, especialmente porque "kvitxe" lembra "quietschen" (chiar).

A confusão tinha graça, mas eu não devia ter rido com ela. Muitas das dificuldades que existem actualmente na Alemanha nasceram de atitudes como essa, do sentimento de superioridade de alguns perante quem não conhecia algo normal na Alemanha Ocidental, sem se darem conta de que essas pessoas não eram ignorantes - simplesmente sabiam outras coisas, conheciam outros mundos.


09 janeiro 2020

"usado"

Post que publiquei no dia em que a palavra mágica da Enciclopédia Ilustrada (o melhor grupo que conheço no facebook) foi "usado":

Já muito se falou de roupa #usada por aqui, e eu bem podia ficar caladinha em vez de vir fazer confissões que me envergonham, mas não sei que me parece ficar muda perante uma palavra tão jeitosa para contar histórias.

Na Alemanha, é normal as mães venderem a roupa usada dos seus filhos. Especialmente no sul da Alemanha, onde vivi quando os meus eram pequeninos, era um grande negócio: as crianças andavam sempre vestidas como se fossem para um casamento (vá, um casamento de alemães...) mas a roupa só era cara na primeira e na segunda vez - depois, ficava a preços muito acessíveis.

Entrei nesse negócio pela mão de uma amiga que comprava novo por metade do preço porque trabalhava numa loja de roupa de criança. Quando deixava de servir à filha dela, vendia-me a mim. E depois eu vendia na minha cidade, que tinha todos os defeitos das cidades ricas de província, e as mães vinham parar à minha mesa como moscas ao mel. Aliás: nessa cidade, ali para os anos 90, os parques infantis mostravam um espectáculo muito curioso: as crianças vestidas com todo o aprumo, e as mães extremamente descuidadas, tipo leggings e t-shirt XXL. Nunca percebi aquela fixação e aquele brio extremo na aparência dos miúdos a par do desleixo total na sua própria imagem.

E então as confissões que te envergonham?, perguntarão.
Ai...

O primeiro problema é que é um bocado parvo olhar para a roupa dos filhos como capital. Se eles faziam um buraco nas calças Joop, ou Armani, ou assim, eu ficava sem poder realizar os, sei lá, 15 euros que idealizara ao comprá-las, usadas, por 20.

O outro problema foi quando mudei para Weimar e comecei a organizar na escola dos miúdos uns bazares para vender a roupa de criança usada. Cada mesa custava 5 euros e um bolo. A associação de pais vendia os bolos com café ou sumos, o dinheiro ia para a escola, e as mães ganhavam algum para comprar a roupa do tamanho seguinte. Parece bem, mas esqueci-me que estava na antiga "Alemanha comunista". Lá, a roupa de criança não era importante, e quando deixava de servir era dada a outra família qualquer. Rebentei com o sistema solidário que eles tinham. E protestava com as mães que faziam os preços dos bolos, porque os vendiam a preços irrisórios. Eu insistia para que vendessem a um preço mais alto, porque aqueles preços não pagavam nem os ingredientes, e elas respondiam: "mas a nós não custou nada!"

Pois é, estive na linha da frente da luta entre o capitalismo e o socialismo, e estava do lado do... gulp, deixem lá, esqueçam. Tem estado muito frio aqui. No fim-de-semana nevou, e agora as ruas estão cobertas com uns 10 cm de neve. Por enquanto ainda está fofa. Só é pena não ter havido sol.
E aí, como tem estado o tempo?

13 novembro 2014

heimat




Ai, que me está a dar a Ostalgie!

Conheci esta canção no Good bye Lenine. A minha vizinha em Weimar cantava-ma, a pedido. Belos tempos, quando os pais da turma da Christina, na escola primária, se juntavam em magustos e piqueniques. Um deles levava o piano eléctrico - era professor de música (bom, naquela escola metade dos pais eram músicos, e a outra metade eram arquitectos, e mais um par de estrangeiros como eu e mais um par de pessoas com roupas estranhas e ar de poucos amigos para os estrangeiros, que se calhar eram neonazis, ou assim). Pois, um deles levava o piano eléctrico, e acompanhava a minha vizinha, que sabia de cor todas as canções de todas as Alemanhas, e mais um bom par de canções russas ("aaaah, a alma rrrrussa", suspirávamos todos). As nossas filhas davam-se cotoveladas, um bocadinho incomodadas com estas mães que as embaraçavam. Depois comíamos o bom gulash húngaro que a minha vizinha fazia num caldeirão pendurado em paus por cima da fogueira. Bons tempos. Quase diria que foi minha, essa Heimat.


16 maio 2013

ainda Weimar




No domingo de manhã estacionámos os carros junto a esta escultura (pareceu-nos um guarda muito atento) e fomos visitar a Römisches Haus - a residência de Verão do Grão-Duque, em parte desenhada por Goethe. Numa das suas viagens a Itália andou a juntar ideias para uma casinha catita, e o resultado foi este pastiche anacrónico (bem, naquele tempo não se chamava anacrónico, chamava-se classicista), no topo de um canyon,


com uma fantástica vista para o parque,





ainda que um pouco distorcida.

(foto de cjs, estimado leitor deste blogue)

Continuámos a maratona cultural. Weimar precisa de uns bons três ou quatro dias, mas nós tínhamos apenas o fim-de-semana. O Palácio - com uma bela colecção de Cranach, outra de arte sacra medieval,  o gabinete de curiosidades, uma pinacoteca espalhada pelos salões magníficos, e ainda peças do enxoval da Maria Pawlowna, filha do czar, que me fez pensar na ironia desse luxo usado como cenário de violações consentidas por razões de Estado, mas talvez esteja agora a cair no erro do anacronismo, como o Goethe (não sei se repararam, acabei de tentar içar-me ao pedestal dele, se não o consigo igualar no génio, ao menos nas fraquezas).



Entrámos na igreja do Herder com o seu tríptico de Cranach, e corremos para o mausoléu da família ducal, onde repousam também Goethe e "Schiller". Entre aspas, porque Schiller teve um funeral de escritor pobre, e quando se lembraram de o levar para perto dos outros agarraram nos ossos que encontraram, mas pelos vistos já nenhum era dele. Vai ser bonito, quando o Goethe ressuscitar, olhar para o Schiller e disser "eh, pá, a morte transfigurou-te muito, até pareces o meu cocheiro". O que, em Goethe, provavelmente será algo do género "ignorância deste mundo, inexperiência dos cânticos eternos / - que ilusão da verdade me abriu os olhos? /Que não vos reconheço, meu dilecto amigo / e em vez do admirável companheiro de altos voos / um comezinho parceiro da rasa estrada apenas vejo."

Deixámos Goethe, fomos a Buchenwald - isto é Weimar.





Ao fundo do campo, perto do edifício com a exposição dedicada às vítimas do campo de concentração reaberto pelos russos, há na floresta um enorme memorial: barras de metal entre as árvores, assinalando corpos  sem nome.



Numa clareira, os familiares das vítimas - que só após a queda do muro, em 1989, puderam entrar no campo que já fora fechado em 1950 - deixaram cruzes contra meio século de humilhação surda: "Fulano, inocente", "Fulano, reabilitado".







Parámos ainda na placa de metal com a nacionalidade das vítimas, permanentemente aquecida a 37º - a temperatura do corpo humano. Pousar a mão naquela superfície tépida, e ser tocado pelo horror do campo. As fotografias, a prisão, os fornos, os ganchos do crematório - tudo isso aconteceu a "eles", há muitas décadas. Mas aquela chapa devolve-me o "nós" e resgata-os da História para os misturar comigo: o calor do seu corpo vivo igual ao meu.

***

Antes do regresso a Berlim, passeámos ainda por Erfurt. A capital da Turíngia é uma cidade pouco conhecida, quase sem turistas. Merecia mais fama: uma cidade medieval muito bonita e bastante sossegada, cheia de História e com um extraordinário conjunto de igrejas, incluindo a do Mestre Eckhart, incluindo o mosteiro onde Martinho Lutero andou antes de resolver mudar de vida e enviar a humanidade rumo ao neoliberalismo. 
Uma boa maneira de acabar um domingo. Com chuva e sol, arco-íris e ponte medieval com uma rua dentro - dizem que é a mais longa da Europa, mas no grupo havia resistentes que diziam que a de Rialto, e que a Vecchio, ah, essas é que talicoisa! (uma pessoa mete-se com gente do Sul, e é isto, um dia destes ainda são capazes de afirmar que Atenas não foi descoberta pelos alemães...)






 ("aqui viveu Franz, o gato da ponte, de 1993 a 2010")
 


15 maio 2013

e agora fazíamos de conta que éramos estudantes da Bauhaus naqueles tempos tresloucados...



"A felicidade é fazer uma excursão", diz o Felicidário. Eles é que sabem, e nós fazemos:  no fim-de-semana passado houve excursão de portugueses a Weimar.

Gostei especialmente de andarmos a brincar à Bauhaus. Fomos para um dos ateliers do edifício histórico, e fizemos lanternas para o nosso cortejo nocturno, à semelhança do que aquele bando de malucos fazia, vai quase para 100 anos. Quase nos sentimos assim:




Mas a realidade foi um pouco mais prosaica:






O nosso guia bem tentou levar-nos longe, desenhando o candeeiro de Wagenfeld e a Haus am Horn para nos inspirar, mas aqui a artista resolveu fazer um lampião com pacotes de leite a imitar as casas de madeira do Lyonel Feininger, estas:


Depois houve jantarada à moda da Bauhaus em 1919:

("Salada de cebola: corta duas cebolas, e vários rabanetes em rodelas finas, e um nabo em palitos pequenos; junta duas colheres de amendoins moídos, algum óleo e sumo de limão; serve a salada em folhas de couve branca")


("Teig-Götter, no canto superior à direita: mistura uma chávena de farinha de trigo integral com algum sal e água fria, até teres uma massa com bastante consistência. Põe colheres dessa massa num tabuleiro quente e leva a assar rapidamente no forno. Se não tiveres forno, podes fazer numa frigideira de ferro, e é ainda mais fácil. Ao fim de algum tempo, vira o pão.")


Chouriço de sangue e paté da Turíngia - hmmmm.


Acrescentem isto ao Felicidário: a felicidade é uma mesa com enchidos da Turíngia, e alguns legumes frescos.

Depois do jantar partimos para a nossa aventura: atravessar o parque alumiados pelas nossas lanternas. As minhas casinhas do Feininger ficaram bem mais bonitas às escuras.


A felicidade é um bando de maduros a posar para uma fotografia, todos orgulhosos dos lampiões que fizeram. Uma festa.


***

Quando íamos a meio do parque - enorme, sem iluminação e deserto -, ouvimos ao longe vozes masculinas a cantar "Ich gehe mit meiner Laterne" (uma canção que os miúdos cantam nos cortejos do São Martinho, "eu vou com o meu lampião"). Não gostei nada do tom marcial e agressivo. Temi que fosse um bando de neonazis - que los hay, em regiões mais pobres los hay. Por sorte não aconteceu nada, e chegámos sãos e salvos (e um pouco molhados de chuva) à Haus am Horn.

Aos nossos colegas de 1919 aconteceu muito. Devido a mudanças políticas na Turíngia, a escola viu-se obrigada a mudar para Dessau já em 1924 e daí, devido à chegada dos nazis ao poder em 1931, foi para Berlim onde, apesar de se ter sujeitado a certos jogos de cintura menos honrosos, não conseguiu sobreviver. Em 1933 foi dissolvida - alunos e professores espalharam-se pelo mundo, salve-se quem puder.
Não havia lugar na Alemanha para um movimento "infiltrado por esquerdistas e judeus". Ao lado da Haus am Horn construíram imediatamente "casas como deve ser" - nada dessas coisas degeneradas. Mas nem assim conseguiram parar os ventos de mudança que a Bauhaus trouxera para o país.