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02 junho 2012

Roma! (8)



Quase me ia esquecendo de falar do Vaticano, e das multidões que atravessam a basílica de São Pedro fazendo fotografias e filmes a torto e a direito. Agora usam o iPad, é muito engraçado vê-los a fotografar com um tabuleiro. O ambiente dentro da igreja é mais ou menos como o da Estação de São Bento do Porto, só que em São Bento não se olha tanto para os azulejos, nem há tantos fotógrafos - mas a pressa é a mesma.
Por causa da celebração do Pentecostes, parte do recinto estava fechado ao público. Foi pena, porque eu queria mostrar à Linda e ao Robert a cara da sobrinha do Papa Urbano VIII em trabalho de parto no baldaquino de Bernini, feito com o bronze do Panteão. Também lhes queria mostrar a Giulia Farnese, a amante do Papa Alexandre VI, no túmulo do seu irmão, o Papa Paulo III (um protegido de Alexandre VI, mas o melhor é não começar a lavar essa roupa suja aqui, senão nunca mais acabo o post). Era suposto a Giulia Farnese figurar nesse túmulo como a Verdade, nua portanto, mas acabaram por lhe pôr umas roupinhas de bronze em cima da pele de mármore. O manto diáfano da fantasia...

Claro que no séc. XVI não se estava a inventar nada de novo, coitados, se era para inovar no capítulo da imoral, dos maus costumes e do nepotismo haviam de ter nascido bem mais cedo. Já muitos séculos antes, nos tempos da Pax Romana, fizeram um altar para o imperador Augusto (um quase-deus, para que conste que os Papas também não inventaram nada) e nele um imponente friso com os membros da sua família.





Gosto muito do ar do pequeno Caio César, da sua mãozinha que prende o manto do adulto à sua esquerda, da mão protectora pousada sobre a sua cabeça. Só podia ser a mão da Fortuna porque, além de ter chegado a imperador, ainda teve a sorte de morrer antes de ver nascer um sobrinho seu, este gorduchinho aqui em baixo,


- que até tem um ar amoroso, mas era o Calígula.
Razão tinha o padre Américo: não há rapazes maus (eles estragam-se é depois de grandes).

***

A vantagem de não nos deixarem ir ver o que já conhecemos é que sobra mais tempo para explorar o desconhecido. Como quase metade da basílica estava fechada ao público, ficamo-nos pela metade do lado da entrada.  E foi assim que descobri o João XXIII, com máscara de cera a esconder o rosto, o Papa de corpo inteiro ("incorrupto!", dizia um guarda, muito orgulhoso), numa vitrina mesmo à nossa frente. Há algo mórbido nestas coisas, e eu gosto. Fiquei por ali a ver a cara dele, e a cara dos turistas que estavam numa fila movediça, pessoas que nem sequer paravam enquanto faziam as fotografias, quanto mais parar para ver.


Tinha sapatos vermelhos, como os que tanto criticam ao Ratzinger. Mas, pergunto eu: que outra cor dava bem com o resto da indumentária? Afinal de contas o Vaticano está rodeado de Itália, há toda uma tradição de design e bom gosto que é preciso manter. 


Numa coluna na zona da entrada da basílica o Robert descobriu um quadro com três figurões, que nos apontou com ar escarninho. Contou-nos a história de um católico com pretensões ao trono inglês, e das suas investidas para o conquistar. "A trouble maker, not more than a trouble maker, and here is he now!", comentava ele com desprezo.

Preferi ir descansar os olhos na Pietà. Um muro de dois metros de espessura separava-me dela - era mais um grupo enorme. Mas nada de grave, que a vantagem destas hordas de turistas é que rapidamente desandam para a atracção seguinte - e num instante a Linda e eu estávamos em frente à Pietà, a saborear com todo o vagar a expressão daquela mulher, o abandono daquele corpo, enquanto nas nossas costas deslizavam as massas de turistas.
"É tão consolador", dizia ela. "Apetecia vir cá todos os dias receber dela esta tranquilidade reconfortante".
Melhor ainda que estar à frente da Pietà, é estar à frente da Pietà com uma amiga a trocar impressões. Há muitos anos, num comboio na Catalunha, ouvi um brasileiro dizer que viajar sozinho é muito triste, "porque uma pessoa não tem com quem se maravilhar". Como o compreendo bem!

Saímos para o sol, seguimos para a fila dos que queriam subir à cúpula. Ao fim de cinco minutos desistimos - preferíamos ir passear na cidade. Quando nos preparávamos para sair, o indiano à minha frente perguntou para que era aquela fila. Senti-me como na RDA, quando as pessoas viam uma fila e automaticamente se alinhavam, sem saber o que ia ser posto à venda. O indiano não fazia a menor ideia do que havia para ver, e onde e como. Mas eu não me ri muito alto, que bem sei com que telhas é feito o meu telhado.

E depois: Roma!





30 maio 2012

Roma! (7)

Sábado de manhã em Trastevere.


("fritti d'autore", hihihi)






A farmácia-museu de Santa Maria della Scalla, do séc. XVII, só abre em determinados dias de determinados meses, e no sábado passado estava fechada. Uma maçada, pois lá teremos de voltar a Roma.

Numa das praças havia um carro militar, e soldados na rua. O Robert, veterano dos protestos contra a guerra no Vietname, foi-lhes perguntar o que estavam ali a fazer.
- Garantir a segurança.
- A segurança de quem? Contra quem?
Ficou sem resposta.
Mais tarde, iria ter com uns carabinieri para perguntar para onde ia um autocarro cheio de colegas deles, que tinha passado à nossa frente. Começaram por olhá-lo com desconfiança, mas depois explicaram que havia mudança da guarda num edifício governamental.
O Robert move-se quase no limite do "desrespeito à autoridade" - admiro-lhe a tenacidade dos porquês. É preciso haver mais gente assim.

Em Santa Maria de Trastevere havia baptizados, e já estavam a preparar casamentos. Ah, o mês de Maio... 

(Um minuto antes, a cena era formidável: o homem que está de costas para mim não tinha ainda chegado, e era a criança que estava no centro, de costas para mim, com toda a família em ataques de sorrisinhos e gritinhos parvos que acontecem na presença de um bebé. Mas não tive coragem de fazer essa fotografia. Nunca serei um bom fotógrafo de ocasião...)




Em frente aos mosaicos medievais do altar, a Linda comentou, fascinada: "this Maria is dressed like a male bird". Hehehe, like a male bird. Fiz logo fotografias:



E por falar em pássaros (para ver melhor carreguem na imagem):


Na capela à esquerda do altar principal havia um fresco de fins do séc. XVI, um quadro muito estranho:


Uma mulher vestida como um papa?! Rodeada de mulheres?! Nas costas da cúria?! Diz que é uma cena do concílio de Trento, e que as mulheres na frente do quadro são figuras alegóricas. Pois sim, chamemos-lhe alegoria, e deixemos esta provocação atravessar os séculos...


Ao fundo da igreja encontrei um Santo António coberto de papelinhos. Com que fé, com que desespero, com que esperança lhe escreverão todas aquelas mensagens?



Queríamos ir ver o êxtase de Ludovica Albertoni, uma escultura de Bernini na igreja de San Francesco a Ripa, mas tinha acabado de fechar para o almoço. Por sorte havia um frade que, numa porta ao lado, dava um saco de comida a pedintes, a quem pudemos perguntar a que horas reabria e onde podíamos almoçar. Ele apontou o restaurante do outro lado da praça, o Da Paolo, e que lhes disséssemos que íamos da parte dos frades. Não sei se foi isso que tornou os pratos do dia tão bons, mas saiu-nos um óptimo restaurante. A pasta era fora de série (os molhos eram apenas bastante bons), e as tripas que encomendei foram das melhores que alguma vez comi.


Uma velhota na casa vizinha espreitava a rua. Primeiro abertamente, e depois os nossos pratos, por trás das suas persianas. É desagradável ter alguém a espreitar-nos os pratos e as conversas a um metro de distância, meio escondida. Apetecia sugerir-lhe que fosse antes ler as cartinhas que escreveram ao santo.




Uma pedinte - a que minutos atrás tinha recebido um saco enorme de comida dos franciscanos - apareceu a implorar uma esmola. "Tenho fome", fazia ela com a voz em tremolo. Disse-lhe que os franciscanos davam comida, ela respondeu que estavam fechados. Os pedintes em Roma impressionam, porque fazem da negação da sua dignidade um modo de vida. Mas isto sou eu a falar, que vivo num país cujos residentes não precisam de recorrer a nada disto para terem uma vida digna.

O almoço, incluindo uma garrafa de vinho, cafés e sobremesas (boas!) foi muito barato (para Roma) - uns 15 euros por pessoa. Para quem quiser, aqui vai a recomendação de amiga: Trattoria da Paolo, no largo de San Francesco a Ripa, em Trastevere.

Entretanto a igreja abriu, e fomos ver o famoso Bernini. Um homem preparava os bancos para um casamento, cobria-os com um rico tecido vermelho e uma paciência de chinês.


O famoso Bernini não nos desiludiu. Aquela beata de saia revolta, aquele ar de - sim... - êxtase. A posição das mãos. Cada vez desconfio mais dos antigos - eles sabiam-na toda! Só me pergunto se estas cenas eram vendidas à Santa Madre como alegoria, como liberdade artística ou com uma piscadela de olhos de como quem diz "com a verdade me enganas".



Em todo o caso: não me lembro de alguma vez ter visto tamanha rebaldaria de costumes e tanta pouca-vergonhice como vi nestas igrejas e nestes aposentos papais da renascença e do barroco.

Saímos pelas ruas, sem destino certo.








Em frente a uma casa perto da igreja dos franciscanos encontrámos cinco Stolpersteine no chão. No dia 16 de outubro de 1943 a família Citoni foi levada da sua casa, naquela rua de Trastevere, para Auschwitz. Os filhos, que tinham 3, 5 e 7 anos, foram assassinados uma semana mais tarde. Dos pais, não se sabe onde nem quando morreram.
Aquelas pedras lembraram-me uma crónica que lera dias antes, a propósito do novo livro do Sarrazin, no qual ele critica o actual  endividamento alemão para salvar o euro, por o ver ligado ao eterno sentimento de culpa e responsabilidade pelo Holocausto. Comentário irónico na crónica: bom, se com o euro fosse possível resolver o Holocausto, até nos saía barato... pois que quantia poderia alguma vez apagar este crime?
Com quanto dinheiro se pode iludir a dor desta Giuseppina Anita, nascida em 1940, enviada de Roma para Auschwitz em 1943?



Decidimos ir ao Palazzo Corsini. Mais barroco, mais renascença, mais malcriadices. Pensávamos nós - mas não, que aquilo nem era igreja nem era palácio papal...
A senhora na caixa tentou vender-nos os bilhetes mais baratos possíveis: alguém tem mais de 65 anos? Alguém é professor? "Bem, eu dou aulas...", responderam dois de nós, e ela sorriu e cobrou 10 euros para o grupo de quatro pessoas. Só por ser tão simpática, perguntei-lhe se podia fazer fotografias, e como ela disse que não eu não fiz.
Logo na primeira sala, onde está a caixa, há um tríptico de Fra' Angelico que justifica a visita àquele museu, e uma estadia de vários dias: impressionante a expressão no rosto de cada uma daquelas figuras.



Também o São João Baptista de Caravaggio justifica a visita, e por sorte lembraram-se de lhe pôr um banco à frente. Também a escultura Psyché de John Gibson valeria a entrada, mas de momento está no Castel Sant'Angelo (o que uma turista se alegra quando consegue juntar as pecinhas do puzzle e vê que já conhece e até já viu a peça que falta em determinada exposição...). E há um Murillo com uma Maria muito humana, muito terra-a-terra. E um Rubens igual a si próprio. O próprio edifício justifica a visita, mas isso pode-se dizer praticamente de metade das casas de Roma, não conta.
O que é pena é a iluminação dos quadros, terrível. Se me deixassem mandar...

O Joachim e eu saímos de lá para fazer mais um pouco de power shopping, e aproveitámos para passar em frente ao restaurante Sofia, para termos a certeza que era verdade. Era verdade, é mesmo verdade.
Por causa das manifestações no centro da cidade voltámos a casa a pé, parámos numa gelataria nova muito boa, a grom, numa esquina abaixo do Giolitti. Aaah, caramelo com sal rosa do Himalaia, aaaah, chocolate amargo, aaaah, tudo.

Depois fomos ter com o Robert e a Linda a um tal de restaurante Trilussa, seguindo as indicações muito vagas que nos deram: um restaurante enorme, toda a gente conhece, perto da piazza Gioachino Belli, vê-se logo.
O perto deles era a umas boas centenas de metros por ruas labirínticas, e ninguém tinha ouvido falar. Chegamos com quase uma hora de atraso. Nada a que o restaurante não esteja habituado: o que eles se atrasaram para nos servir a água, o vinho, os pratos... A comida era boa, mas o serviço era uma catástrofe. De modo que no fim dos secondi pagámos e fomos comer a sobremesa ao outro lado da cidade, à Sofia. Aaah, Sofia!



***

No domingo de manhã aproveitámos a porta aberta da igreja em frente à nossa casa, e fomos espreitar. Tinha alguns quadros do séc. XX. Um deles mostrava uma cena em frente a Auschwitz: Maria, ou talvez uma freira, consola um prisioneiro junto ao qual há uma mala com a estrela de David, segurando-lhe a cabeça com uma mão e uma cruz com a outra. Eu achei a cena de uma arrogância insuportável, o Robert ficou furioso: "A Igreja Católica, que ao longo de dois mil anos preparou o terreno para o Holocausto, não pode vender-se agora como aquela que consola as vítimas. Devia pôr-se de joelhos e pedir desculpa!" Saímos da igreja, mas ele continuava a zurzir nos franciscanos, que geraram e alimentaram o anti-semitismo onde não o havia, nos papas, em toda essa cambada de cínicos sem vergonha.

Para a despedida da cidade, fomos mais uma vez até Campo de' Fiori.
"Adeus, Giordano Bruno", disse o Robert para a estátua. "Talvez seja esta a última vez que nos vemos."
Eu fiquei triste, a Linda quase chorou. Ela tem uns quinze anos menos que o Robert. Se para mim já é duro assistir a este lento despedir dos lugares que nos foram importantes, que sentirá ela ao ver o marido fechar contas à medida que vê a morte aproximar-se?

À despedida, no aeroporto, já estávamos mais animados. Do Giordano Bruno não sei, mas eu cá farei os possíveis para me encontrar ainda muitas vezes com aqueles dois amigos!

29 maio 2012

Roma! (6)

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No Castel Sant' Angelo havia uma exposição sobre Amor e Psyché. E nos aposentos dos papas havia mais episódios de oftalmologia. A sorte deles é que naqueles séculos não tinham ainda inventado o Vatileaks, e entretanto os crimes já prescreveram.

Tivemos a pior refeição da semana num restaurante para turistas, junto ao rio. Tudo tão óbvio, o aspecto do restaurante, o upselling desavergonhado ("também querem bruschetta, não querem? uma saladinha de tomate com mozzarella também ia bem, não ia?"), o mau aspecto dos pratos servidos aos outros. Serviu-nos de lição.

Depois do almoço o Joachim e eu fomos para a zona da Praça de Espanha e a Praça Barberini, para uma sessão de power shopping há muito agendada. A Camicissima, para a qual tínhamos o radar apontado, revelou-se uma grande desilusão. Talvez seja verdade que não devemos voltar aos lugares onde já fomos felizes... Mas a Gattegna, a velha loja de camisas no 104 da Via del Tritone, não nos desapontou. É uma loja estranha: tem as caixas de camisas em pilhas de dois metros postas lado a lado, não parece ter levado pintura nem arranjo desde a fundação da casa (provavelmente antes da segunda guerra mundial), não deixa provar a roupa, mas vende camisas e gravatas com uma extraordinária relação qualidade/preço. Afinal pode-se ser feliz duas vezes no mesmo lugar. Emboramente... comprar em Roma camisas e gravatas lindas e baratas não é propriamente a melhor definição de felicidade.

Carregados de sacos enormes, fomos ter com o Robert e a Linda a um bar terraço sobre as escadas de Espanha, e passámos uma hora divertidíssima a apreciar o movimento. A linguagem corporal da senhora que se queixava a um polícia, o jogo do gato e do rato do polícia e dos vendedores ambulantes indianos, os casais que subiam as escadas com as compras, ou as desciam já preparados para a noite (elas muito chiques, de saltos altos - saltos altos nas ruas de Roma, estas turistas são loucas! - e eles às três pancadas), os romanos sempre impecáveis.

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O Robert falava de Keats, citava-lhe poemas de memória (Heard melodies are sweet, but those unheard / Are sweeter), louvava-lhe o lirismo e a beleza da forma, o optimismo de alguém que morreu aos vinte e cinco anos, na casa que víamos do topo daquelas escadas.  

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Antes de partirmos em busca de um bom restaurante, quis mostrar-lhes as carantonhas da via Gregoriana,

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e descemos essa rua, sem saber como escolher um bom restaurante para jantar. Em desespero de causa, peguei na lista de restaurantes que me tinham recomendado, com as respectivas moradas, e entrei num bar para saber qual era o mais próximo. Mandou-nos para a Fontana di Trevi, pelo que nós viramos imediatamente na direcção contrária à que ele nos indicou, e fomos ter direitos à maior descoberta da semana, o restaurante Sofia, que abriu há três meses, tem uma cozinha excelente e ainda está a praticar preços promocionais. Tudo perfeito, desde o ponto da carne até aos brincos da proprietária. E é para não falar do seu sorriso, e do sorriso do seu marido, e da sobremesa de mil-folhas. E da cadelinha deles, que passeava entre as mesas, a Sofia. Sofia!
(podem ir à confiança, e quem não gostar, pronto, faremos um esforço por ser tolerantes e deixar as coisas como estão)

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No caminho de regresso a casa ainda parámos para provar um gelado da San Crispino - apesar da fama que tem, foram os gelados mais exageradamente doces da semana.

Eu ia fazendo fotos pelas ruas,

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o Joachim sugeriu-me que trabalhasse com o white balance, para jogar melhor com os efeitos e as nuances da luz, e exemplificou:

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Tinha razão, claro. Mas eu, além de gostar de disfarçar a ignorância, gosto de banhar a minha Roma num exagero de dourado.  

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