01 junho 2008

do baú de recordações

Em Outubro de 2002, poucas semanas depois do 11 de Setembro, assisti a um concerto da Maria João em San Francisco.
"A pedidos", repasso o e-mail que na altura escrevi para alguns amigos dos EUA e do Brasil.



Acabei de chegar do concerto da Maria João.

Sou cliente antiga e posso afirmar que está cada vez melhor – e já era muito boa da primeira vez que a vi!

A sala toda presa da força daquela mulher. Ela canta, dança, corre, salta como uma menina, dança de novo, canta sempre. A música sai-lhe pela garganta, pelos dedos, pelo corpo todo, e a sala inteira olha fascinada.

Dentro do vestido de cauda e sem alças, de um furta-cores entre o vermelho, o rosa e o laranja, vejo uma mulher completa: feliz no seu corpo transformado em instrumento, arrebatada pela música que lhe sai por todos os poros - sensual, alegre, terna.

Entre duas canções, a conversa. Acabei de cantar num dialecto moçambicano, terra da minha mãe (e eu: ah, pois, logo vi!), esta é a segunda ou terceira vez que vimos aos EUA, é difícil músicos portugueses virem aos EUA, na Europa as notícias são uma catástrofe (sacode os braços sobre a cabeça, arrepela os cabelos), mas decidimos vir na mesma (o público irrompe em aplausos), estou fascinada com a simpatia das pessoas nos restaurantes, nas lojas, até na estrada, em Portugal é bem diferente, todos apitam, mas aqui não, só vez por outra, não é como em Portugal onde os condutores são impossíveis, habituei-me a sair do carro e a ir discutir com eles (dá meia volta no palco e afasta-se para o fundo, esbracejando para um condutor imaginário, depois regressa) e quando volto para o carro o meu filho, de 11 anos, diz: “mãe, que vergonha!”, o meu país, Portugal, é um país pequeno, 600 km por 200 km, quanto é isso em milhas? (o baterista troca-lhe os cálculos: “Miles Davis?”), mas tem muito mais que fado para oferecer, adoro o fado mas também gosto de muita outra música, nós fazemos música com dois pés, um (levanta a saia, mostra o pé descalço) que faz jazz e o outro (mostra o outro pé, a saia levantada até ao joelho num gesto cheio de naturalidade) suga, suga tudo (e o pé move-se, parece que procura as notas que sobraram da última canção) e... é com estes dois pés que caminhamos, esperamos que andem bem!

Vou apresentar os músicos, na percussão um escandinavo nascido acima do círculo polar?, círculo ártico? (confunde-se, faz um gesto solto) não importa, bem lá em cima, ele é maravilhoso, toca connosco há três anos, é um amigo, confidente, lindo, alto, com uma maravilhoso sentido de humor (e o viking levanta-se e abre os braços, quase pedindo desculpa pelo exagero, e ela volta-se para o pianista), e aqui, atrás do seu instrumento enorme (a sala ri), refiro-me ao piano, aqui está o Mário Laginha, que tem uns óculos novos que lhe ficam muito bem (ele esconde a cabeça nos braços), e é o compositor de tudo o que ouviram hoje e é para mim o melhor músico do mundo.

Recomeçam a tocar, o baterista faz um solo e ela senta-se numa parte mais escura do palco, os pés dançam, os braços dançam, levanta-se de novo e continua a dançar ao som dessa música, o piano entra, vem a voz. Ménage à trois bem sucedido, aqueles três nasceram uns para os outros.

Não sei se irão a Los Angeles ou Nova Iorque, se irão a São Paulo. Se forem, não percam o espectáculo. Não adianta comprar o CD, a música que sai daquela mulher tem de ser vista.

Em pleno concerto, a referência à mãe moçambicana faz-me recuar a uma revelação antiga de vinte e cinco anos. Era o tempo dos retornados, o país enchia-se de portugueses diferentes de nós. Na aula de educação física, onde aprendíamos a dançar o “água leva o regadinho” e o “malhão”, resquícios do Estado Novo nos programas escolares, uma aluna pediu para mostrar uma dança nova. Trouxera o disco de casa, e dançou perante o nosso olhar fascinado a um ritmo completamente novo. Era de Moçambique.

Tive muitos amigos de famílias de retornados. Muitos contavam que tinham fugido ao som de metralhadoras, alguém lhes tinha apontado uma arma à cabeça, saíram para a escola e nunca mais voltaram a casa. Não conseguia entender a alegria deles, mas apreciava a jovialidade, a cor nova que traziam ao ambiente da escola. Como seria Portugal se eles não tivessem voltado?

A Maria João, nascida em Portugal com raízes africanas, combinando fado com jazz com música africana com música indiana e com música brasileira, materializa o que há de mais positivo na história dos descobrimentos.

E eu volto para casa com um orgulho enorme de ser portuguesa – embora esse seja um resultado do acaso e a Maria João não me deva nada, a não ser talvez uma pequena comissão pela publicidade.

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