A propósito da nossa Europa, aqui vai mais um artigo, que, como de costume, traduzi rapidamente e abreviei em parte. É de Stefan Kornelius e foi publicado no dia 16.06.08 na Süddeutsche Zeitung. O original, em alemão, pode ser lido aqui.
Não é fácil definir com precisão como é que a Europa desapareceu das cabeças. Em compensação, é facílimo determinar como é que poderia ter entrado nelas: o Muro caiu em 1989, o euro chegou em 2002, em 2004 e 2007 o alargamento trouxe a aproximação jurídica de regiões que, desde a separação religiosa na Idade Média, cresceram como Ocidente Cristão, por oposição à Igreja Cristã do Oriente.
A união europeia de 27 nações, ou seja, a união política, económica e monetária que cria uma região de paz e prosperidade, é um feito histórico único nesta parte do mundo, que ao longo dos séculos se entregou à auto-dilaceração e a devastadores jogos de poder.
Os cidadãos europeus deixaram de se dar conta disso: a guerra está muito longe, tal como a pobreza. Na Europa, pela primeira vez desde há séculos, nascem crianças no seio de estruturas familiares que não foram atingidas por conflitos militares. Esta é a primeira geração que pode crescer junto aos pais e aos avós sem a ameaça e a dor da guerra. Há apenas uma geração não havia família alguma que não tivesse perdido um dos seus membros nas tragédias do continente europeu.
Palavreado sentimental? Tomar, por compaixão, o partido de Bruxelas? Não. Esta abordagem histórica permite a distância suficiente para mostrar aos eleitores irlandeses a responsabilidade que tinham em mãos quando escolheram o "não".
862 415 cidadãos irlandeses contra 752 451 cidadãos irlandeses queriam decidir se uma dinâmica histórica de 490 milhões de europeus pode atrofiar; ou seja, se no dia 12 de Junho de 2008 a Europa já atingiu o seu grau máximo de unidade, ou se se pode validar um guia moderno com instruções de uso para a coexistência de 27 Estados no séc. XXI.
É disto que se trata: a Europa tem uma visão positiva? Existe vida para lá da estreiteza dos nacionalismos que tantas desgraças provocaram ao longo da História? Ou será que a integração chegou ao fim? Será que esta votação irlandesa marca a inversão da tendência, a favor do Estado nacional, que por enquanto triunfa em silêncio nos bastidores, mas em breve pode mostrar a sua face grotesca, quando lutar por barris de petróleo ou afastar ondas de refugiados? É fácil criticar os políticos por não explicarem o tratado ou por serem incapazes de conquistar a simpatia dos cidadãos para esta causa.
Mas talvez se possa também criticar os cidadãos europeus, que não fazem caso do complexo edifício político que os envolve. O cidadão prefere acreditar nos políticos populistas que lhe asseguram que é possível simplificar. Aí temos um tratado extremamente complexo, uma obra-prima da mecânica política, equilibrando 27 nações, 27 sensibilidades nacionais e relações de maioria, 27 comissários, 785 deputados europeus e centenas de milhares de vozes populares, interesses de lobbies e gente que pensa que sabe tudo melhor. Um tratado que traz mais democracia, mais participação, mais controle. O tratado de Lisboa desvia parte do poder de Bruxelas para os eleitores - mas exige também mais interesse da parte destes.
Será que a uma obra tão complexa se pode dizer apenas "sim" ou "não"? O governo irlandês cometeu um atentado ao acreditar que poderia reduzir o largo alcance de tal reforma a uma alternativa tão simples. O tratado de Lisboa era o remate obrigatório de uma onda de alargamento que unificou a Europa no fim da guerra fria. As regras necessárias ao funcionamento de 27 Estados são diferentes daquelas de que 15 Estados precisam. O alargamento foi, até agora, o objectivo central da União Europeia, quase se diria a sua razão de existir. Agora, que o brilho da União está a esmorecer e a sua capacidade de atracção diminui, põe-se ao clube dos 27 a questão do sentido desta unidade.
Para que quererá mostrar os músculos? A favor de ainda mais Estados, que - como as nações dos Balcãs - necessitam da ordem europeia para poderem viver em paz? Quererá mostrar a sua força num mundo económico cada vez mais rude, um mundo que escreve as suas próprias leis se o deixarem? A Europa tem de decidir se tem força para mais do que o seu próprio alargamento. E por isso precisa deste tratado de Lisboa.
A Europa não se pode deixar travar por estes 862 415 irlandeses. O governo irlandês devia estudar os tratados, satisfazer a vontade do seu povo e iniciar de moto próprio uma fase de abstinência. Porque a Europa está ainda muito longe de ter chegado ao fim da sua História.
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Apesar de alguns exageros, como por exemplo aquela história de todas as famílias europeias estarem atingidas pela guerra há apenas uma geração, e de não fazer referência ao problema do défice democrático no actual funcionamento da UE, faz uma abordagem fundamental para exigir responsabilidades a quem acha que pode usar a Europa para os seus jogos de capelinhas.
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