13 novembro 2024
o nosso mundo é assim, nós é que nos esquecemos demasiadas vezes
04 janeiro 2024
as boas festas da cultura dominante na Alemanha
A propósito de um jardim infantil em Hamburgo, que decidiu não ter um pinheirinho de Natal por uma questão de liberdade religiosa (pinheirinho de Natal e religião, hihihihi), Friedrich Merz, o actual líder da CDU, veio a público dar um presente natalício à extrema direita, afirmando que "comprar um pinheiro de Natal faz parte da cultura dominante alemã".
Oh, a cultura dominante alemã! Quem me dera saber se é a cultura de Berlim, a de Rosenheim, ou a de Raguhn-Jeßnitz (que agora tem um presidente da Câmara que é AfD) (que durante a campanha eleitoral prometeu tornar os infantários estatais gratuitos, e mal chegou ao poder se viu obrigado a aumentar os preços, hihihihi). A da Alice Schwarzer ou a do Ratzinger. Ah, o Ratzinger! Na altura em que criaram um teste para os estrangeiros que pediam a nacionalidade alemã, um político dos Verdes comentou que, na parte das questões sobre a homossexualidade, o papa alemão havia de chumbar redondamente.
Tragicamente, no dia de Natal, terroristas da extrema-direita alemã deitaram fogo à casa de uma família paquistanesa e escreveram na parede "estrangeiros, rua!".
Uma pessoa fica logo com vontade de perguntar ao Merz se ficou contente com este belo exemplo de espírito natalício da cultura dominante alemã.
A exigência de ter um pinheirinho atormenta-me muito: porque quero meter os papéis para me tornar alemã, mas por convicção ambientalista já não compramos pinheirinhos de Natal há alguns anos.
É o que dá o Joachim ir embrulhar-se com uma moça do sul, "enfraquecer o sangue" (acho que era essa a formulação dos nazis): assim se perde o respeitinho pela "cultura dominante".
Sempre posso argumentar que muitos amigos nossos, e esses são "alemães como deve-de-ser", também deixaram de comprar os pinheirinhos no Natal. Uns usam uma árvore estilizada em metal, outros têm uma árvore estilizada feita com paus apanhados na praia, trazidos pelo mar, outros põem enfeites de Natal numa daquelas plantas gigantes que se vendem na IKEA, enfim: tudo, menos comprar um pinheirinho de Natal. Pobre Alemanha! Por este andar, um dia destes ainda começam a rever a orgia dos presentes. (Ai, espera!) (Se calhar é melhor não revelar tudo de uma vez. Deixo para outro post a história dos presentes de Natal reduzidos a um por pessoa, e sorteados no meio de muita risota. E deixo para um terceiro post a revelação escandalosa de termos ido para a Volskbühne rir e dançar com o Wladimir Kaminer a seguir ao jantar de consoada, em vez de termos ficado em casa a sortear presentes.) (Os funcionários da minha autarquia berlinense que não saibam de nada disto! Já estou a ver a minha nacionalidade alemã por um canudo...)
Como se não bastasse, dei-me conta de que, na época de Natal, as pessoas na padaria e na rua me desejaram "Boas Festas", em vez de "Feliz Natal". Mas no próprio dia 25, quando andava a passear o Fox, um casal alemão reparou no cãozito e desejou-lhe (a ele!) Feliz Natal. Eu levei um "olá", e já fui com sorte. Confesso que tive vontade de ir fazer queixinha ao Merz. Mas duvido que ele fosse dar um raspanete àquele casal. O Merz gosta de mostrar músculo, mas é só quando o caso envolve estrangeiros. Ainda era capaz de me mandar a mim voltar para a minha terra se não estou contente com o modo como alguns alemães reinterpretam a cultura dominante a que têm direito quando o objectivo é erguer muros entre si e os outros.
No dia seguinte, comentei o sucedido com uma vizinha, que não reparou na ironia da minha história e desatou a afirmar, combativa, que deseja "Feliz Natal" a todos, mesmo àqueles que ela bem sabe que são muçulmanos. Porque é o meu país, dizia ela, são os hábitos do meu país! Era o que faltava termos de ajustar aos de fora as frases típicas da época!
Fiquei a pensar que tinha a sua graça eu dar os parabéns aos outros no dia em que faço anos. Ou aos adeptos do Porto quando o Benfica ganha o campeonato. Ou desejar um bom 5 de Outubro aos monárquicos, no dia 1 de Dezembro dizer a um vizinho espanhol "Este es un día que da gusto, ¿verdad?"
Eu cá, sou mais pragmática. Pelo andar da carruagem, quem vai pagar a minha reforma, daqui a uns anitos, pode bem ser descendente de turcos, sírios, afegãos, iraquianos. Dos paquistaneses a quem incendiaram a casa no dia de Natal. Mais me vale ir treinando o "Boas Festas" - e demais formas de comunicação pacífica com as pessoas que partilham comigo este continente e o mantêm viável. Com as pessoas, melhor dizendo, que mostram pelo seu exemplo de vida que é possível vivermos em boa paz uns com os outros.
E nem sequer estou a inventar nada, está escrito há dois mil anos: "Paz na terra às pessoas de boa vontade."
29 junho 2023
um milionário, um refugiado, um jornalista e um activista das redes sociais entram num bar...
Bem sei que o assunto actual é o fumo do Canadá, mas queria ainda falar do submarino da semana passada e do alvoroço por causa da atenção que lhe foi dada, e da indiferença em relação à tragédia do naufrágio com centenas de mortos no Mediterrâneo que aconteceu na mesma altura. É que calhou de fazer férias longe da internet justamente quando tudo estava a acontecer...
Num primeiro momento, entendo a crítica ao modo como a comunicação social tratou os dois casos. Mas a seguir dou-me conta de que há muito que as mortes no Mediterrâneo deixaram de ser um tema realmente importante. Por mais que protestemos, a tendência é para os órgãos de comunicação social tentarem agradar ao mercado, oferecendo-lhe prioritariamente aquilo de que ele mais gosta. Aquilo que vende.
E o mercado gosta de sensações fortes, como, por exemplo, cinco multimilionários fechados numa (pseudo-)maravilha da técnica, no fundo do mar, sem sabermos se vão escapar à morte. Como um grupo de mineiros fechados nas profundezas do solo, sem sabermos se vão escapar à morte. Ou uma dúzia de miúdos encurralados numa gruta tailandesa, sem sabermos se vão escapar à morte. E se um dia destes o Elon Musk for a Marte, e a nave tiver uma avaria séria, mesmo que nesse dia naufraguem cinco navios no Mediterrâneo, é mais que certo: os noticiários abrirão com Musk e a sua aventura marciana. “Sem sabermos se vão escapar à morte”: o suspense é um ingrediente fundamental para prender a atenção e aumentar as vendas.
Outro elemento importante é o glamour. Multimilionários, oh!, é outro frisson. E não é de hoje. Basta olhar para o outro veículo (involuntariamente) envolvido nesta triste aventura, o Titanic: apesar de ser um imenso cemitério de pobres, entrou para a História como um barco de luxo, como o barco dos milionários. Num total de 2224 passageiros e empregados, só 325 pessoas (14%) iam na primeira classe. Morreram 123 passageiros da primeira classe, e quase 1400 empregados e passageiros das classes mais baratas (mais grave ainda: quanto mais rico, maior foi a percentagem de sobreviventes desse grupo - 62% na primeira classe, 41% na segunda, 25% na terceira e 23% no grupo dos empregados). Mas sem esses 123 milionários num total de 1514 vítimas mortais, e sem os elementos luxuosos e inovadores do navio, o desastre do Titanic seria apenas uma linha igual às outras na “lista de desastres marítimos” da Wikipédia. Lista essa que, curiosamente, na página portuguesa não inclui nenhum dos barcos que nos últimos anos naufragaram no Mediterrâneo. Ou seja: não são apenas os meios de comunicação social que se esquecem dos que morrem no Mediterrâneo – a Wikipédia é feita por todos, e até agora ninguém se lembrou de incluir naquela página os desastres com barcos de refugiados.
Voltando aos critérios editoriais dos órgãos de comunicação social: temos, por um lado, o suspense e os famosos, que vendem; por outro lado, as questões que nos incomodam, e por isso vendem menos. Cinco milionários que pagam uma fortuna para se meterem voluntariamente numa cápsula de lazer perigosíssima são um assunto que capta o nosso interesse, mas não nos desinstala. Já as tragédias do Mediterrâneo têm directamente a ver connosco: porque é “no nosso interesse” que os países da Europa permitem (em certos casos até dão uma ajudinha, como parece ter acontecido com este navio) que no Mediterrâneo continuem a morrer tantos seres humanos.
Penso que a questão central não passa por exigir à comunicação social que dê o devido realce a cada uma das tragédias que acontecem no Mediterrâneo. No fundo, não precisamos de conhecer o caso mais recente para saber que naquele mar estão a morrer milhares de pessoas. A questão central é muito mais complexa, e dá-nos muito mais trabalho: exige de nós a certeza de querer realmente abrir as fronteiras a essas pessoas, exige que conversemos com o tio, a prima, o colega de trabalho ou o amigo que têm medo “dessa gente que não é da nossa cultura e vem para cá viver à nossa custa”, exige conseguir criar um ambiente francamente positivo em relação a essas pessoas. Implica que façamos realmente pressão para que a União Europeia lhes permita chegar ao nosso continente por vias seguras, e faça também o que está ao seu alcance para criar nos países de onde elas vêm condições para não terem de fugir.
Em última análise, as pessoas continuam a morrer desta maneira no Mediterrâneo porque as nossas convicções não são fortes a ponto de se transformarem em ondas de solidariedade com força suficiente para influenciarem as políticas europeias. Enquanto não o conseguirmos, e por muito ou pouco que os órgãos de comunicação social falem do assunto, o Mare Nostrum vai continuar a ser um fosso de separação e indiferença, e um lugar de tragédias repetidas.
20 maio 2023
tudo de bom
Acabei de ler a newsletter semanal "Alles Gute" do Spiegel, que só tem notícias positivas, e fiquei com vontade de dar beijinhos ao mundo.
Na edição deste sábado (aqui, em alemão), são estes os temas:
- é possível reduzir o lixo de plástico no mundo inteiro em 80% até 2040;
- duas irmãs, de 10 e 13 anos, contam como viveram uma semana inteira sem consumir nada embrulhado em plástico ("uma amiga ofereceu-nos gomas, mas como vinham num saco de plástico, não aceitámos")
(onde está o emoji da lagriminha quando a gente precisa dele?);
- uma casa numa favela de Belo Horizonte ganhou um prémio internacional de arquitectura (podem ver imagens da casa aqui e vídeo da notícia numa TV brasileira aqui);
- mamografias acessíveis em regiões rurais da Índia, onde não existe o equipamento adequado: estão a ensinar mulheres com cegueira a usar o seu tacto apuradíssimo para detectar nódulos na mama;
- o neuropatologista Diego Sepulveda-Falla descobriu um gene que protege do Alzheimer;
- há uma nova liga de futebol: só com equipas de pessoas com excesso de peso, para lhes dar a oportunidade de praticar desporto em grupo sem se sentirem diferentes (título: "tivemos de mandar duas pessoas embora porque eram demasiado magras") (hehehe);
- o preço do gás na Europa, que em agosto de 2022 tinha subido aos 300 euros por MWh, esta semana esteve abaixo dos 30 euros;
- o WhatsApp tem agora uma função de senha para proteger conversas mais privadas;
- estão a trabalhar num sucedâneo do café, a partir do fruto do cafeeiro depois de extrair os grãos - em vez de os deixar a decompor e a largar metano para nos desgraçar ainda mais o clima. Também tem muita cafeína, é uma bebida saudável, chamam-lhe "Cascara", e a ver vamos;
- uma carta de um leitor: estava no café de uma estação de comboios à espera da ligação, trocou meia dúzia de frases com um passageiro a seu lado, e quando ia pagar o outro fez "pay forward": pagou o café dele, e da próxima vez ele pode fazer o mesmo a um desconhecido.
Tem mais alguns artigos, mas eu quero parar neste último, porque me lembrou algo que aconteceu no meu bairro por alturas do Natal. Num passeio da manhã com o Fox, vi um sem-abrigo a dormir num banco junto ao lago (esse banco por trás da fotografia do topo, com aquela mesma neve), apenas com um saco-cama para se proteger das temperaturas negativas. Pensei telefonar ao serviço que dá apoio a estas pessoas, e no inverno impede que morram de frio na rua, mas entretanto o senhor desapareceu. No dia seguinte, ao passar com o Fox, vi que já tinha uma tenda. No terceiro dia, quando ia a passar perto da tenda, apareceu uma vizinha com uma garrafa termos, que anunciou alegremente: "O pequeno-almoço está pronto! Café quentinho!" E no quarto dia, vi duas vizinhas a conversar e a rir muito com ele, os três no jardim em frente ao lago, com flutes de espumante na mão. Depois uma delas agarrou nos copos e na garrafa vazia e despediu-se "Desculpem, tenho de ir, são horas de fazer o almoço. Até amanhã!"
07 janeiro 2023
Umberto Eco, os bárbaros e nós
30 setembro 2022
os queer e eu - e a gramática
1. Eu e eles
A pessoa que vem ajudar quando as nossas colmeias têm algum problema mais sério tem nome de homem e anda sempre de saias (um estilo muito pessoal, fascina-me). Até agora não me provocou qualquer dúvida ou insegurança - talvez, desde já, por em alemão não ser preciso pôr um artigo antes do nome. Um dia que precise de usar um género na minha frase, pergunto-lhe delicadamente qual devo usar.
O Joachim tem uma amiga que é trans. Não sei em que ponto vai a transformação do corpo dela, e não tenho de saber. Sei que quer ser tratada no feminino, e é quanto me basta.
Os meus filhos trouxeram há tempos visitas para jantar, e avisaram-me que uma delas não se identifica nem com o género masculino nem com o feminino. Podia ter sido um daqueles exercícios infantis "qual é a peça que não pertence a este conjunto?", mas, pelo contrário, foi um serão tão alegre e agradável como sempre que temos a casa cheia.
Muito se fala do "lobby gay" e da "ameaça do lobby gay" e - pelo que tenho lido - do "lobby trans", que aparentemente está a roubar protagonismo aos outros. Parece que o conflito está muito aceso: uns contra os outros, e todos contra "nós".
E "nós" contra eles.
Mas aqui na minha vida - ao nível mais básico das relações entre os seres humanos, ao nível ainda mais básico do respeito pelos seres humanos que brota da delicadeza dos sentimentos ou, ao menos, da boa educação - é completamente pacífico. Nenhuma destas pessoas ameaça a minha identidade ou o meu lugar no mundo.
Sei que a naturalidade com que as recebo em minha casa é fruto de ter sido alertada para a sua existência por artigos, desfiles, debates. Sabendo agora que estas realidades são um facto, e sabendo que as pessoas sofrem por serem sentidas como um incómodo ou uma ameaça pela maioria, o mínimo que posso fazer é transformar os momentos que partilhamos num porto seguro para elas.
2. Eles e eles, eles e nós
Esses debates e esses conflitos são parte do processo. Por muito radicais que sejam, fazem parte e são consequência natural de uma opressão até agora sofrida em silêncio e medo. Não me lembro de nenhum novo passo da Humanidade que não tenha sido dado sem conflitos entre múltiplas partes. A revolução francesa, a luta pelos direitos civis nos EUA, a luta dos palestinianos pelo fim da opressão, o nosso 25 de Abril, para nomear apenas alguns: em nenhum destes processos se encontra um grupo uniforme de pessoas que lutam em perfeita sintonia pelo estabelecimento de uma ordem mais justa.
Porquê, então, exigir esse simplismo ao mundo queer, feito de realidades tão múltiplas que até nos habituámos ao tique de revirar os olhos por troça e por preguiça de entender as realidades por trás de cada uma das letras?
3. Os hábitos e a gramática que são "nossos", mas excluem
Sim, bem sei que estamos habituados, e que soa ridículo dizer "bom dia a todas, todos e todes", quando ainda há tanta gente que se dá perfeitamente com o masculino como genérico. Mas quais são os valores mais altos que se alevantam para obrigar uma pessoa que não se identifica nem com o género masculino nem com o feminino a ter de escolher por qual deles quer ser tratada?
Ainda ontem me aconteceu, ao comprar um bilhete de avião da easy jet: antes do nome, tenho de pôr uma cruz em "homem" ou "mulher". Não era para mim; pus "homem", espero ter acertado.
Numa outra perspectiva, um fenómeno frequente: receber cartas ou mails de alguém que assina apenas com o apelido, ou assina com todos os nomes de uma língua desconhecida para nós, e hesitar entre responder "Dear Mr." ou "Dear Mrs." ou "Dear Ms.". Se temos automaticamente essa preocupação com pessoas do género masculino ou feminino, se sentimos um embaraço genuíno por, por exemplo, nos termos dirigido a uma mulher partindo do princípio que era um homem, porquê este displicente encolher de ombros perante pessoas cuja realidade escapa a este binarismo?
Voltando ao início: se um dia perguntar a quem me trata dos casos mais bicudos das abelhas que género devo usar, e se a resposta for "diverso", tenho um problema, porque a gramática não prevê esse caso. O que dá um novo significado à expressão "grammar nazi": a ideologia nazi também decidia que tipo de pessoas têm o direito a existir, e que tipo de pessoas não têm lugar entre nós.
A nossa gramática extingue simbolicamente as pessoas que são diferentes da maioria.
20 novembro 2021
um Corão na minha casa
Ao arrumar o apartamento airbnb descobri entre os livros de decoração que por lá há uma edição de luxo a explicar o Corão.
Então que é isto? Terá sido esquecimento, ou intencional?
Inclinei-me para intencional - ninguém mistura os seus próprios livros aos que estão pousados nos móveis a fazer de conta que é shabby chic - e senti-me invadida. Depois comecei a pensar quem terá sido - o egípcio que até trouxe um tapete para rezar? Era muito simpático e delicado, mas se calhar é assim que uma pessoa se engana... Ou terá sido um dos jovens que trabalhou numa start up e tinha um nome "estrangeiro"? Também era muito educado e simpático, mas...
Estava nesta dinâmica de largar os meus preconceitos todos contra algumas das pessoas que por cá passaram nos últimos tempos, e de repente lembrei-me que tenho nesse apartamento alguns livros infantis de que os meus filhos não gostaram muito, e não conseguimos vender numa das nossas garage sale (vá-se lá saber porquê...). Como não tenho onde pôr, deixei ficar por lá. Se alguém roubar, não me incomoda: assim como assim, são livros que não queremos. Entre eles, há vários de temas religiosos. O abecedário da Bíblia em inglês, objectos e histórias da Bíblia, coisas assim.
E foi então que me caiu a ficha: para um muçulmano fervoroso, pode ser um pouco desconfortável dormir num quarto onde há uma série de lombadas a dizer Bíblia isto e Bíblia aquilo. Bem sei que é a minha casa, mas pode ser sentido como provocação, ou pelo menos vontade de missionar.
Continua a parecer-me errado terem deixado aqui um Corão. Tanto mais que sinto um certo prurido em espetar com ele no contentor do papel. Mas esse gesto de alguém que por aqui passou, e era simpático e educado, permitiu-me sair da própria pele, e perceber como outros se podem sentir na minha casa.
15 junho 2021
a humanidade no seu melhor
Ouçam isto.
Descobri-o esta manhã no "não mudes nunca" (*) e senti-me tocada pela alegria, pelo amor e pela compaixão pelo mundo que habita esta canção.
Um exemplo comovedor e terno da humanidade no seu melhor.
Se me pedissem uma banda sonora para a pandemia que se abateu sobre nós em 2020: era esta.
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(*) O "não mudes nunca" é um dos mais excelentes blogues que ainda vivem entre nós (podem ir à confiança) (devolvo o preço a quem não gostar) (mas se calhar depois a nossa amizade nunca mais será a mesma ;) )
15 abril 2021
seis novos direitos básicos europeus
O jurista e escritor alemão Ferdinand von Schirach propõe a inclusão de seis novos direitos básicos na Europa. Diz que as constituições europeias foram escritas para outras épocas, e não reflectem os desafios primordiais do tempo que nos é dado viver.
São esses direitos:
08 maio 2020
"dia da libertação"
O tema de hoje na Enciclopédia Ilustrada foi o "dia da libertação":
Numa aula de U.S. Citizenship em San Francisco, o professor perguntou:
- Quando começou a segunda guerra mundial?
Os alunos, muitos deles russos e polacos, responderam em coro:
- 1 de Setembro de 1939!
O professor riu-se.
- Isso é a vossa guerra europeia. A mundial começou em 1941, quando os EUA entraram.
Os alunos europeus riram-se:
- Os americanos, sempre com a mania que são o centro do mundo.
- E quando terminou a segunda guerra mundial?, perguntou o professor.
- 8 de Maio de 1945!, responderam os alunos de novo em coro.
O professor riu-se:
- Estes europeus, com a mania que são o centro do mundo... A guerra terminou na Europa nesse dia, mas continuou no Japão. Só terminou em Setembro desse ano.
Em inglês, chamam ao dia 8 de Maio de 1945 o "dia da vitória na Europa". Na Alemanha oriental chamavam-lhe #dia_da_libertação, embora - parece-me - se devesse antes chamar "dia da troca" - a passagem do totalitarismo nazi para o totalitarismo de Estaline.
Na Alemanha ocidental foi preciso algum tempo para passar de "dia da capitulação" para "dia da libertação". Durante duas décadas a Política tentou ignorar este dia. Em 1970, quando se comemoravam 25 anos do fim da guerra, o governo socialista de Willy Brandt assinalou a data com uma cerimónia, tendo sido muito criticado por deputados da oposição (CDU/CSU) que argumentavam que "não se comemoram derrotas" e "não se presta homenagem à vergonha e à culpa".
Só no 40º aniversário do fim da guerra é que foi possível o então presidente da República, Richard von Weizsäcker, afirmar que naquela data se comemora o "dia da libertação do sistema desumano do despotismo nacional-socialista".
Que longo caminho foi o percorrido pela sociedade alemã nesses 40 anos, que permitiu passar da ideia de derrota para a de libertação!
Por estes dias, a morar na Bretanha, tenho-me dado conta de um detalhe curioso: nesta região de importância estratégica fundamental, que foi tão martirizada pelo exército alemão, nos vestígios que ficaram da guerra não se menciona nunca "alemães" ou "Alemanha", mas "inimigo". A placa na torre perto do porto lembra a vitória "sobre o inimigo", a placa na prisão da minha rua, de onde, pouco antes do fim da guerra, levaram os prisioneiros que eram membros da Resistência para serem executados, diz "partiram para o seu trágico destino", e até o meu "anti-guia bretão" fala de um menir de sete metros numa ilhota aqui perto, que foi dinamitado "por estranhas convicções nacionalistas".
Esta manhã hesitei um pouco sobre o nome a dar ao tema do dia. Escolhi "dia da libertação" porque as palavras contam. As palavras têm o poder de construir ou pelo menos cimentar os caminhos da paz.
24 abril 2020
correcção fraterna
Pedimos desculpa, dissemos que íamos fazer, e ele então tirou do bolso uma embalagem de discos de feltro. Recusamos, porque já os tínhamos em casa, e só faltava mesmo pô-los nos pés dos móveis.
Depois perguntámos-lhe se havia mais alguma coisa que o incomodasse, ele disse que não, e despedimo-nos.
Fiquei a pensar na maneira pacífica como tudo decorreu. Geralmente as pessoas têm algum pudor em dizer aos vizinhos o que as está a incomodar, e esse silêncio embaraçado alimenta quotidianamente o desprezo e a raiva que envenenam as relações.
O tom pacífico do nosso vizinho lembrou-me um episódio que aconteceu há alguns anos, quando estava a entrar num parque de estacionamento de um supermercado numa ilha do mar Báltico: uma pessoa da terra veio ter comigo, pediu-me para abrir a janela do carro e disse com um sorriso encantador: "temo que esteja a entrar pelo lado errado de uma via de sentido único".
Há pessoas assim: que nos dão vontade de mudar tudo para nos tornarmos semelhantes a elas.
(Mas - infelizmente - nem sempre me lembro deste bom exemplo quando estou a corrigir erros alheios.)
No mesmo registo de comunicação não violenta, traduzo um comentário que li no mural de facebook de uma amiga, a propósito da violência doméstica em tempos de confinamento:
"Qualquer pessoa pode ajudar. Se têm a sensação de que há alguma coisa que não está a correr bem, arranjem uma desculpa para tocar à campainha desses vizinhos. É uma maneira simples de contribuir para acalmar um pouco a situação, e de dar uma oportunidade à vítima. Quando a cena se passa no espaço público, podemo-nos aproximar das pessoas em conflito e perguntar delicadamente pelas horas, ou por uma direcção. Tudo o que suspende por momentos determinada situação de conflito pode ser uma ajuda, e pode até salvar uma vida."
Este comentário resolveu-me uma dúvida que tenho há mais de quinze anos, quando vi na rua uma criança de três anos com uma mulher fora de si. A criança fazia uma birra, e a mulher gritava-lhe desalmadamente. Que devia eu ter feito? Confrontar a mulher não ajudaria nada, porque ela estava de cabeça perdida. Agora sei: devia ter-lhe perguntado onde é que havia uma boa loja de gelados, devia ter-me feito de burra para ela me levar lá, devia ter oferecido um gelado a cada uma delas. Talvez a criança parasse de chorar, talvez fosse até possível ouvir a mulher falar das suas dificuldades como educadora daquela criança.
09 abril 2020
"Dietrich Bonhoeffer" (4. Envolto em bons poderes, leais e calmos...)
Um dos cânticos que se ouve frequentemente nos serviços religiosos entre o Natal e o Ano Novo tem a letra de um poema que Dietrich Bonhoeffer escreveu na prisão pouco antes do Natal de 1944 - e uns meses antes de ser assassinado pelos nazis. Na imagem pode ver-se uma tradução para português que encontrei no livro "Dietrich Bonhoeffer: discípulo, testemunha, mártir - Meditações", de Harald Malschitzky". O original é bem mais belo ("Envolto em bons poderes, leais e calmos,") mas nem sei nem tenho tempo para traduzir isto como merecia.
Normalmente associa-se aqueles "bons poderes" ao poder divino. Mas há quem leia o início do poema como uma referência à sua família, que o envolve numa rede amorosa de cuidado e protecção.
Traduzo uma carta que o seu irmão mais velho escreveu aos seus próprios filhos pouco depois do fim da guerra, e que mostra bem como a família Bonhoeffer cuidou dos seus membros apanhados pela fúria nazi:
"... Gostaria de vos falar sobre tudo isto. Porquê? Porque os meus pensamentos estão lá neste momento, nas ruínas de onde não nos chegam notícias, na prisão onde visitei o tio Klaus (irmão), o condenado à morte, há apenas três meses. As prisões de Berlim! Que sabia eu sobre elas há apenas alguns anos atrás, e com que novos olhos as vejo agora! O edifício para prisões preventivas de Charlottenburg, onde a tia Christel (irmã) esteve presa durante algum tempo, a prisão militar de Tegel, onde o tio Dietrich (irmão) esteve preso durante ano e meio, a prisão militar de Moabit com o tio Hans (von Dohnanyi, casado com a irmã Christel), a prisão da SS na Prinz-Albrecht-Straße, onde o tio Dietrich foi mantido em cativeiro na cave durante meio ano, e a prisão na Lehrter Straße, onde o tio Klaus foi torturado e o tio Rüdiger (Schleicher, casado com a irmã Ursula) foi atormentado, onde ambos viveram durante dois meses após terem sido condenados à morte
Nos últimos anos, sempre que fui a Berlim esperei à frente das portas de ferro pesado de todas estas prisões. Ali acompanhei a tia Ursel e a tia Christel, a tia Emmi (de solteira Delbrück, casada com o irmão Klaus) e a Maria (von Wedemeyer, noiva do irmão Dietrich), que lá iam diariamente buscar ou trazer coisas. Muitas vezes fizeram o caminho em vão, muitas vezes se sujeitaram a ser insultadas por comissários vis, mas de vez em quando encontraram também um porteiro amigável com coração humano que transmitia uma saudação, que aceitava levar ao prisioneiro algo mesmo fora do período estabelecido, e até comida, apesar da proibição.
..... E agora! A última vez que estive em Berlim foi no final de Março; tive de regressar pouco antes do 77º aniversário do avô. O tio Klaus e o tio Rüdiger ainda estavam vivos; o tio Hans deu notícias através do médico que não pareciam totalmente desesperadas; do tio Dietrich, que tinha sido raptado de Berlim pelas SS no início de Fevereiro, não se sabia. Alguém falou com o tio Dietrich no dia 5 de Abril, na zona de Passau. De lá seria levado para o campo de concentração de Flossenbürg, perto de Weiden. Porque é que ainda não regressou? ..."
Os dois irmãos, Dietrich e Klaus, foram assassinados pelo regime nazi a 9 de Abril de 1944, menos de um mês antes do final da guerra, por ordem pessoal de Hitler. Com eles foram também assassinados os cunhados Hans von Dohnanyi e Rüdiger Schleicher. Um outro cunhado, Justus von Delbrück, seria libertado pouco antes do fim da guerra, e feito de novo prisioneiro pelo exército soviético duas semanas depois do armistício, vindo a morrer pouco depois num dos seus campos de concentração. E antes de todos eles fora já assassinado um tio da parte materna, o tenente-geral Paul von Hase, que logo após o atentado falhado a Hitler cercara a zona de ministérios de Berlim para prender os governantes.
Sobre o enorme sacrifício familiar, o pai de Dietrich Bonhoeffer escreveu a um antigo empregado em Boston:
"Pode com certeza imaginar como tudo isso nos afectou. Vivemos anos e anos com a preocupação dos que estavam presos, e dos que estavam ainda em liberdade mas em risco de serem também feitos prisioneiros. Mas como estávamos todos de acordo quanto à necessidade imperiosa de agir, e os nossos filhos sabiam o que os esperava caso o complot falhasse e estavam preparados para morrer, sentimo-nos muito tristes e ao mesmo tempo orgulhosos pela sua atitude digna. Recebemos dos nossos filhos boas recordações durante o seu tempo na prisão ... que nos comovem muito, bem como aos amigos deles ..."
O irmão mais velho, que só por milagre escapou ao radar dos nazis, viria a comentar mais tarde: "O que nos deu força foi a frente unida da família contra os nazis. Mas pagámos um preço altíssimo por isso."
"Dietrich Bonhoeffer" (3. Bonhoeffer e a Igreja Confessional)
Este texto sintetiza brilhantemente o percurso algo errático da Igreja Confessional, que demorou muito tempo a entender que o seu dever de protecção se estendia a todo o povo, e não apenas a si própria. Naqueles tempos de terror e perplexidade não era fácil ver, e muito menos agir em conformidade com os valores atacados pela ideologia nazi. Pelo que a Igreja Confessional foi em simultaneamente perseguida pelo regime e frequentada por nazis e até SS. O próprio Niemöller fora desde 1924 adepto do partido de Hitler, e saudou a sua chegada ao poder em 1933.
Quando a perseguição aos judeus começou, em 1933, Dietrich Bonhoeffer e Martin Niemöller (que, sendo embora adepto do partido nazi, defendia ferozmente a independência da Igreja) fundaram uma Liga de Apoio aos Pastores de ascendência judaica, contra a nova imposição de os afastar dos púlpitos. Esta e outras iniciativas de defesa da independência eclesial viriam a evoluir para a Igreja Confessional, que se formou em Maio de 1934, com a declaração de Wuppertal-Barmen, que punha Cristo no centro da Fé da Igreja, livre de instâncias e critérios alheios, e recusava a apropriação do Evangelho para fins políticos totalitários. Era essa a matéria de discórdia entre a Igreja Confessional e os Cristãos Alemães (as Igrejas que se sujeitaram à Gleichschaltung).
Em Abril de 1935, depois de uma curta visita a Mahatma Gandhi, Bonhoeffer tornou-se professor no seminário de Finkenwalde, da Igreja Confessional. Foi aí que aprofundou a sua convicção de que a Igreja, mais do que uma comunidade de almas, é realmente o corpo de Cristo presente na terra.
Nas palavras de Wolfgang Huber (sublinhado meu): "O efeito de modelo de Bonhoeffer tem sem dúvida a ver com o facto de, no seu caso, a história de vida e a teologia estarem intimamente ligadas. No centro desta estreita ligação está o momento em que realmente descobre o Sermão da Montanha. Ainda antes da tomada do poder por Hitler, numa fase da sua vida em que a eficácia académica estava em primeiro plano, o Sermão da Montanha tocou-o de uma forma inédita. Esse encontro fez dele, como diria mais tarde em tom de autocrítica e demarcação de fases anteriores da sua vida, um verdadeiro cristão. E, ao mesmo tempo, deu à sua atitude ética a clareza que já vinha a fazer caminho dentro dele. O compromisso com a Justiça e a Paz tornou-se o motivo básico determinante, e com este a convicção de que o princípio orientador da ética cristã não é a pureza imaculada da própria consciência, mas a responsabilidade concreta pela vida e pelo futuro de outras pessoas."
08 abril 2020
"zelador"
Queria falar das portuguesas nos prédios parisienses, esteio da casa, e dos zeladores de bloco na Alemanha nazi, pequeno esteio do regime de terror. E, dentro destes últimos, contar uma história de Berlim: a mulher de um Blockwart, que tomou conta de uma pequenita filha de judeus e a escondeu na cave até chegarem os russos. Do fundo da escuridão, a pequena nuance de humanidade.
Mas, em tempo de reclusão forçada, o desenvolvimento mais óbvio é este fenómeno de nos tornarmos todos zelador e acusador dos outros.
Eu própria, esta manhã, fiz comentários poucos simpáticos sobre os trabalhadores do estaleiro militar em frente à minha janela: remendar um barco de guerra é uma actividade tão urgente e fundamental que justifique este bando de homens em azáfama, demasiado próximos uns dos outros e sem máscara? Então o Estado francês não cumpre as suas próprias regras?
Também penso muito mal de certos vizinhos meus, que convivem alegremente com os seus amigos na entrada do prédio e no jardim.
Há despeito na minha crítica: eu que me privo de tanto, e eles que fazem o que querem.
E há medo: já tive várias vezes problemas de pulmões, não quero correr o risco de apanhar covid.
Devo ficar calada? Devo criticar abertamente? E que resposta me darão?
“Sou eu acaso o guarda do meu irmão?”, perguntava Caim cinicamente.
Seremos capazes de um esforço de solidariedade e responsabilidade liberto da armadilha do poder sobre o outro?
Estou a falar da covid, mas o que me preocupa é a verdadeira crise do nosso tempo: o aquecimento global. Seremos capazes de escolher um estilo de vida menos depredador, e ter a liberdade interior de conviver em silêncio com o comportamento depredador dos outros?
Mais: como aceitar o comportamento depredador dos outros? Será possível ser zelador do planeta sem ser simultaneamente zelador-acusador dos outros?
12 janeiro 2020
melhor que uma missa
São onze da manhã de domingo, e já me ri aqui no facebook o suficiente para uma semana inteira.
Obrigada a todos os que estão desse lado a criar bom ambiente.
Abençoadinhos, sois uma autêntica celebração de bem-aventuranças.
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Referia-me a esta capacidade de rirmos uns com os outros, mas alargo a ideia ao grupo "Enciclopédia Ilustrada", onde todos os dias dezenas de pessoas animam com o seu saber, o seu bom humor e a sua alegria a vida de tantos outros que estão a passar terríveis fases de sofrimentos vários.
Mais ainda: as pessoas que, apesar de estarem a atravessar uma fase de terrível sofrimento, se sublimam em publicações enriquecedoras para quem as lê.
E vocês: que exemplos de celebração de bem-aventuranças encontram na vossa vida?
15 novembro 2019
quando comecei a escrever este post, chamava-se "no paraíso", mas o lirismo, coitado, foi atropelado pelos parêntesis que se seguiram
A propósito do post anterior, sobre a colaboração entre a Uniqlo e a Marimekko, uma amiga comentou que eu sou mesmo a Eva com uma cesta de maçãs.
Ora, por falar em paraíso...
Neste cantinho do youtube, a peça que se segue a este "In Paradisum", de Fauré, é o Hino dos Querubins, de Tchaikovsky. Admiro a coragem destes compositores que se lançam à aventura de tentar traduzir a ideia de paraíso de maneira perceptível aos nossos sentidos, tendo para isso apenas os meios disponíveis aos mortais.
(E fico a pensar: se tivesse realmente de escolher entre a cesta das maçãs - o consumo desenfreado - e ficar o dia inteiro nesta música - chamemos isso à consciência tranquila por não contribuir tanto para a destruição do planeta -, o que escolhia?)
(O que me lembra uma história das férias na África do Sul: ao ver a paisagem devastada pela passagem dos elefantes - os ramos quebrados, as árvores derrubadas - perguntei à nossa guia porque é que eles fazem aquilo. Ela respondeu: "porque podem". Nesse momento achei os elefantes uns bichos um bocado antipáticos. Mas depois caí em mim: eles são tal e qual como nós, que também destruímos o planeta apenas porque podemos.)
25 outubro 2019
"sua tia não é fascista, ela está sendo manipulada"
Este filme foi feito antes da eleição do Bolsonaro, com base num trabalho do filósofo Rafael Azzi, e continua extremamente actual. Se não quiserem ver o filme, podem ler o texto aqui. Dele destaco o seguinte:
Agora é possível compreender porque é tão difícil usar argumentos racionais para dialogar com um eleitor do Bolsonaro? Agora você se dá conta do nível de manipulação emocional a que seus amigos e familiares estão expostos? Então a pergunta é: “o que fazer?”
Não adiante confrontá-los e acusá-los de massa de manobra. Isso só vai fazer com que eles se fechem e classifiquem você como um inimigo “do outro lado”. Ser chamado de manipulado pode ser interpretado como ser chamado de burro, o que só vai gerar uma troca de insultos improdutiva.
Tenha empatia. Essas pessoas não são tolas ou malvadas; elas estão tendo suas emoções manipuladas e estão submetidas a uma percepção da realidade bastante diferente da sua.
Tente trazê-las aos poucos para a razão. Não ofereça seus argumentos racionais logo de cara, eles não vão funcionar com essas pessoas. A única maneira de mudar seu pensamento é fazer com que tais pessoas percebam sozinhas que não há argumentos que fundamentem suas crenças e as notícias veiculadas de maneira falsa.
Isso só pode ser feito com uma grande dose de paciência e de escuta. Peça para que a pessoa defenda racionalmente suas decisões políticas. Esteja aberto para ouvi-la, mas continue sempre perguntando mais e mais, até ela perceber que chegou num ponto em que não tem argumentos para responder.
Pergunte, por exemplo: “Por que você decidiu por esse candidato? Por que você acha que ele vai mudar as coisas? Você acha que ele está preparado? Você conhece as propostas dele? Conhece o histórico dele como político? Quais realizações ele fez antes que você aprova?”
Em muitos casos, a pessoa tentará mudar o discurso para falar mal de um outro partido ou do movimento feminista. Tal estratégia é esperada porque eles foram programados para achar que isso representa “o outro lado”, os inimigos a combater.
Nesse caso, o caminho continua o mesmo: tentar trazer a pessoa para sua própria razão: “Por que você acha que esse partido é tão ruim assim? Sua vida melhorou ou piorou quando esse partido estava no poder? Como você conhece o movimento feminista? Você já participou de alguma reunião feminista ou conhece alguém envolvido nessa luta?”
Se perceber que a pessoa não está pronta para debater, simplesmente retire-se da discussão. Não agrida ou nem ofenda, comportamento que radicalizaria o pensamento de “somos nós contra eles”. Tenha em mente que os discursos que essa pessoa acredita foram incutidos nela de maneira que houvesse uma verdadeira identificação emocional, se tornando uma espécie de segunda identidade. Não é de uma hora pra outra que se muda algo assim.
Duas das mais importantes democracias do mundo já foram hackeadas utilizando tais técnicas de manipulação. O alvo atual é o nosso país, com uma das mais importantes democracias do mundo. Não vamos deixar que essas forças nos joguem uns contra os outros, rasgando nosso tecido social de uma maneira irrecuperável.
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Ontem mostraram no doclisboa um documentário de Alison Klayman sobre o Steve Bannon: "The Brink". Esta entrevista com a realizadora, publicada no Expresso, mostra bem o que se move nos bastidores das redes sociais, e que ideologia e interesses estão por trás da manipulação de que somos constantemente alvos.
Se o Goebbels cá viesse, morria de inveja.
14 setembro 2019
ainda temos a alegria
"O Brasil sob Bolsonaro" foi o tema de duas palestras a que assisti ontem no Instituto Cervantes, no âmbito do Festival Internacional de Literatura de Berlim.
[E para que ninguém me acuse de só avisar sobre estas coisas depois de elas acontecerem: hoje, às quatro da tarde na nova galeria na Ilha dos Museus, é a vez de José Eduardo Agualusa, Luiz Ruffato e Grada Kilomba falarem sobre os vestígios coloniais no ADN cultural e biológico.]
Não tomei notas, pelo que faço um resumo de memória:
Na primeira sessão, Perry Anderson abordou o contexto brasileiro que tornou possível o fenómeno Bolsonaro (a crise económica, o aumento da corrupção dos políticos, a cínica perícia que conseguiu concentrar em Lula o ódio à corrupção que de facto grassa em todos os partidos, a falência do sistema jurídico, etc.). Luiz Ruffato trouxe números: em que grupos está a maioria dos apoiantes de Bolsonaro (são tantos, que mais vale dizer quais não são: a maioria dos negros, e a maioria dos jovens entre os 16 e os 24 anos), e o resultado dos primeiros oito meses de discurso fascista do sistema Bolsonaro: o aumento da violência (especialmente contra negros e contra mulheres), o aumento do número de assassinatos cometidos pela polícia e, mais assustador ainda, o aumento do número de suicídios entre os jovens e a assustadora quantidade de pessoas que querem fugir do seu próprio país. Djamila Ribeiro falou da incapacidade de reconhecer o genocídio contra negros que tem estado em curso, das lutas do feminismo negro e da urgência do agir.
A segunda sessão juntou Rafael Cardoso (historiador da arte, escritor - e anoto aqui o livro que quero ler: "O Remanescente"), Márcia Tiburi e Leonardo Tonus a conversar em modo de perguntas que lançavam uns aos outros.
Sabem aquela sensação de belo-horrível? Foi esta sessão: as frases e as ideias com que se referiam à ascensão do fascismo no Brasil eram simultaneamente um exercício brilhante de inteligência e um prazer estético. A conversa foi perccorrendo os temas da capacidade do fascismo se reinventar e regressar, da repetição de algo que há menos de meia dúzia de anos seria impensável imaginar, do modo como os cidadãos se vão habituando aos horrores noticiados dia após dia, do exílio e das formas de resistência. Falaram de Leibniz (o efeito corrosivo do medo e da tristeza) e de Adorno (a poesia depois de Auschwitz) e da dificuldade de ser quando se está marcado para o extermínio.
Uma intervenção tocou-me especialmente: a de Leonardo Tonus, sobre o que se pode fazer neste contexto de marasmo e caos. Continuando a citar de memória: disse que se pode aprender algo importante com os europeus, e deu o exemplo da reacção ao ataque ao Bataclan. O professor da Sorbonne, que dera consigo paralisado e chocado, a chorar desamparado no meio da cozinha, recebeu no domingo à noite uma mensagem da direcção da Universidade a exigir que todos os professores fossem dar as aulas no dia seguinte, como previsto. E ele foi. Às oito da manhã estava à frente da sua turma a falar de literatura do séc. XVIII, apesar de cinco dos seus alunos terem sido assassinados três dias antes.
"Ainda temos a alegria", disse ele. "A questão não é sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz. Havia poesia em Auschwitz! Mesmo que pareça uma ideia tonta, o céu continua azul e os pássaros continuam a chilrear. Não podemos desistir. Nestes tempos tão difíceis continuarei a escrever, nem que tenha de o fazer com o meu próprio sangue. E vocês também: escrevam nas paredes da vossa casa o poema "mãos dadas", de Carlos Drummond de Andrade. Espalhem a alegria."
MÃOS DADAS
Carlos Drummond de Andrade