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12 outubro 2024

concertos que tal

 



Azares da vida: meses e meses sem acontecer nada em Berlim, e de repente estas mocinhas dão o concerto delas no mesmo dia em que eu tenho o meu!
Ainda pensei "perder-me" no caminho para o concerto do meu coro, mas ontem tivemos o ensaio geral e por duas vezes me comovi imenso. Quero lá saber destas mocinhas! Hoje e amanhã, o concerto mais especial que acontece em Berlim é o do coro Bancanta na igreja Christuskirche em Berlin-Oberschöneweide, a propósito dos 35 anos da queda do muro.


09 outubro 2024

concerto "Estranhos e Amigos"

 


Atenção, Berlim! 🙂
Este concerto foi um parto difícil, um autêntico "cenas da vida na Alemanha".
Começou com esta vossa artista a sugerir animadamente "olhem, em 2024 é o 50º aniversário da revolução portuguesa, e o 35º da queda do muro. Podíamos fazer um concerto com canções de protesto!"
Primeiro, acharam muito bem.
Depois, deixaram cair a parte "25 de Abril", e sobrou a queda do muro.
A seguir, apercebi-me que na tradição alemã não há canções de protesto como na portuguesa: em Portugal, facilmente nos juntamos mais de uma hora a cantar de cor todas essas canções que são património comum indiscutível; na Alemanha, é preciso pensar muito para conseguir juntar três canções deste tipo, e ninguém as sabe cantar de cor.
E foi então que chegou a parte mais complicada da questão: demo-nos conta de que, no nosso coro, há perspectivas muito diferentes sobre a reunificação alemã.
Esta vossa artista, por exemplo, estava a pensar num concerto em que cantávamos misturados com o público, todos de velas na mão e em movimento, em homenagem à imensa coragem dos manifestantes das segundas-feiras em Leipzig - e penso que foi justamente esta proposta que originou a crise: apareceram pessoas a lembrar que era preciso ter cuidado com a narrativa.
Está visto: na Alemanha, sou "Wessi". Tenho uma perspectiva demasiado romantizada (ou ignorante) do que a reunificação significou para as pessoas que de repente se viram a viver no país dos outros, onde não eram respeitadas.
E lá continuámos a partir pedra, até conseguir uma homenagem aos 35 anos da queda do muro que espelhasse o sentir de uns e outros.
Vamos apresentar o resultado este fim-de-semana, numa igreja nos confins da antiga Berlim-Leste. E o resultado é um belo naco de petite histoire contemporânea.
Em suma: recomendo muito. Desde o Fiesta Requiem que não fazíamos um concerto tão misturado com o nosso tempo.

07 junho 2023

e porque andas tu tão calada, ó Helena?



Ultimamente tenho andado muito calada por cá. Não é que não se passe na minha vida nada digno de contar, é mesmo só porque se anda a passar tudo ao mesmo tempo. Este fim-de-semana, por exemplo: juntaram-se a festa da minha rua, que organizo com os vizinhos do lado, mais a fantástica Festa da Cultura Portuguesa, no 10 de Junho, mais o extraordinário concerto do meu coro, que de facto são quatro, dois no sábado e dois no domingo, em cuja organização tenho grandes responsabilidades.

Se quiserem saber mais sobre a Festa da Cultura Portuguesa no 10 de Junho...

- a extraordinária festa do tudo em bom, com uma enorme diversidade de artistas (desde o grupo folclórico ao Carlos Bica, passando por cantoras líricas, música pop e outra que nem sei bem descrever, mas é muito boa, e ainda, claro claro, o fado que não poderia faltar) e os habituais petiscos portugueses, incluindo sardinha assada. Ah, e poncha! Mas não precisam de contar a ninguém que vai haver poncha, quero muito que sobre toda para mim... -

...podem seguir este link.


Se quiserem saber mais sobre o concerto Misatango...

- o fantástico concerto do meu coro, com uma pequena orquestra que inclui bandonéon (foi preciso afinar o piano de cauda alemão para o ajustar ao bandonéon, nem sei que me parece, vêm estes instrumentos estrangeiros mudar as nossas referências, em vez de tratarem de se integrar nesta sociedade, enfim, se os estrangeiros continuam a desrespeitar a nossa cultura desta forma, o melhor é fechar as fronteiras e passar a fazer unicamente cultura nacional...) (confesso que me rio sempre quando digo "nossa" e "nacional" quando estou a falar da Alemanha e dos alemães; lembro-me logo dos emigrantes portugueses em França que votam Le Pen), mas adiante: para além de a Misatango ser um peça lindíssima, no palco vai haver artistas de uma escola de dança berlinense a interpretar aquela música com as suas danças. Desde um amoroso bailado clássico de meninas de seis anos, até street dance e sapateado. Sim, podem esbugalhar os olhos, que eu também esbugalhei. É Berlim mais uma vez a experimentar caminhos -

...podem seguir este link. Eu, propriamente dita, estarei na festa da minha rua na sexta-feira à noite, na Festa da Cultura Portuguesa no sábado e nos dois concertos do Misatango no domingo. Isto, nos intervalos de fazer os trabalhos que me pagam a conta da luz (estive a pagá-la hoje, ainda não recuperei do trauma).


31 maio 2022

a paz perpétua

 


O projecto de 2022 do meu coro é - podem crer! - espectacular: vamos "dançar" o Requiem de Fauré, e ligá-lo à tradição mexicana do Dia de los Muertos. A doçura da abordagem de Fauré, que nos propõe a morte como passagem para o paraíso, e o reencontro festivo com aqueles que amamos e passaram para o lado de lá. E também a reapropriação dos sentidos do nosso corpo, bastante maltratados durante a crise da covid: um evento para ver, ouvir, cheirar, saborear e viver em proximidade.

Desde o princípio que penso que este projecto é muito actual, e um grande presente que fazemos à população de Berlim. Na ânsia de sobreviver à crise e de regressar depois à normalidade, restou pouco espaço para nos confrontarmos com o que nos aconteceu nestes dois anos: o stress do quotidiano transtornado, o medo da morte e da doença, a ameaça da falência, a dor de despedidas que não foram possíveis.

Sim, é um grande projecto, mas: como sempre, falta o dinheiro para o realizar. Temos andado a pensar nas várias possibilidades de financiamento, e uma delas foi pedir patrocínios às agências funerárias.

Uma delas deu um pequeno apoio, combinado com várias condições - a costumeira publicidade, mas também um ensaio do nosso coro nas suas instalações. Comecei por revirar os olhos, pensando que estavam a exagerar nas contrapartidas para um apoio tão minúsculo. Mas estivemos lá recentemente, e viemos de lá muito mais ricos.

Mostraram-nos a sala dos velórios, o armazém de caixões com todo o tipo de modelos (escolhi logo para mim o mais simples: a caixa de pinho não tratado, que eles usam para recolher ossadas) e a sala onde preparam os cadáveres para os expor no velório. Têm uma máquina parecida com as de diálise, para trocar líquidos e mudar a cor da pele ("Se o corpo estiver mais bonito na morte do que era em vida, é sinal que exageramos nos nossos esforços", disse o guia, e eu a pensar "bem, se o nicho de mercado pegar, as pessoas ainda vão começar a encomendar aparências post mortem, ai eu queria ficar tipo Brad Pitt, ai eu queria ficar tipo Brigitte Bardot...").

Falámos muito da morte, esse tema tão evitado. O pudor no trabalho com os corpos indefesos (as zonas genitais, obviamente, mas também o detalhe de, no exame para técnico de preparação do corpo, se chumbar caso se pouse por um momento a cabeça do cadáver na mesa, em vez de a pousar no suporte que ali existe para esse fim. A relação com o corpo como última homenagem à pessoa que vivia dentro dele - por exemplo, a história de uma família que entregou um lenço para pôr no corpo, e o tanto que eles pensaram sobre como usar o lenço (na mão? na cabeça, com um nó à frente, como quem vai para a apanha das batatas? na cabeça, com um nós atrás, como quem anda a limpar o pó?); repararam que aquela mulher tinha uma cicatriz na cabeça, e usaram o lenço para a cobrir, prolongando-o com um nó elegante num dos lados, entre o pescoço e o ombro: a homenagem que é também observação e reinvenção da pessoa. As decisões sobre o funeral: o que a própria pessoa quer, mas também o que é conveniente para os vivos - um enterro na floresta não é grande ideia no caso de o cônjuge sobrevivo ter dificuldades graves de mobilidade; ou a história da família que ia enterrar a mãe ao lado do pai, e foi apanhada de surpresa ao saber que a mãe deixara indicações para deitarem as suas cinzas ao mar ("conversem sobre isso antes de morrer, ponham-se de acordo quanto à melhor solução" - dizia ele).

No fim, alguém perguntou ao responsável da agência funerária, que trabalha todos os dias com mortos, se acreditava num além da vida. A resposta dele:

- Espero que não haja nada depois desta vida. A verdadeira paz perpétua é o fim absoluto.

Gostei da formulação: "espero que". E ocorreu-me que esse ponto absolutamente final pode ter um lado positivo: nada de viver na inquietação eterna de tudo o que se fez mal nesta vida, nada de voltar à terra para tentar melhorar. A nossa vida é aqui e agora, e todos os dias contam, todos os gestos contam. A nossa vida é um rascunho gravado na pedra.

A nossa vida eterna seria essa herança que aqui deixamos: o bem e o mal que espalhámos. E, nesse caso, não entraríamos no paraíso depois da morte, como em Fauré, mas estaria nas nossas mãos recomeçar todos os dias gestos de oferecer ao mundo o paraíso à medida das nossas possibilidades.

08 junho 2021

o meu coro a ver a luz ao fundo da travessia do deserto

 


Por causa deste vírus que se transmite por aerossóis, cantar em grupo é uma actividade de altíssimo risco e os coros foram proibidos de ter ensaios presenciais. Muitos coros perderam o hábito de si próprios logo na primeira vaga da covid-19. O nosso continuou a preparar a Misatango de Palmeri em sessões zoom. No verão de 2020 aligeiraram as regras: permitiram ensaios ao ar livre, com as pessoas a cantar a 2 m de distância umas das outras. O meu coro encontrou-se na esplanada do espaço cultural onde costuma ensaiar, para cantar conviver - com as pessoas sentadas longe umas das outras. A presidente da associação pagou os comes e bebes de todos porque, como ela disse, por causa da pandemia não pôde fazer a viagem que tinha previsto para as férias, e tinha todo o gosto em pagar essa festinha com o dinheiro que lhe ficara a sobrar.

Os ensaios ao ar livre prolongaram-se até finais de Outubro. Nós a cantar no escuro com lanternas presas às folhas da pauta ou na testa, nós a cantar à chuva, nós a cantar cheios de frio. Ainda tivemos um encontro de fim-de-semana para interpretar em conjunto a Misatango (com testes, com imensa distância entre todos, com excelente ventilação), mas logo a seguir o país entrou de novo em lockdown, e nós voltámos ao zoom.

Até à semana passada. O primeiro ensaio ao vivo desde há sete meses foi na terça-feira, e parecia aqueles reencontros com bons amigos que não se vêem há eternidades mas com quem a conversa brota imediatamente com toda a naturalidade. Eu, desabituada de falar e cantar (é que já nem sequer no duche!), redescobri a minha voz. Comentei essas descobertas com a cantora ao meu lado, que disse ter ouvido alguém afirmar na rádio que quando a pandemia passar vamos regressar rapidamente à normalidade e esquecer os tempos difíceis. Desde terça-feira da semana passada que estou capaz de acreditar que sim.

O nosso maestro é que nem por isso: depois de tantos meses a dirigir um coro sem o ouvir, estava - como comentou depois - com problemas de sinapses.

No fim-de-semana passado tivemos novo encontro para cantar e conviver. Reservámos a Haus am Waldsee - que tem um café, espaço de exposições e um relvado em declive até um lago, cheio de esculturas impressionantes - para cantar e conversar no jardim.

Já era normal os ensaios deste coro decorrerem recheados de sorrisos e sinais de bom entendimento, com animadas conversas nos intervalos. O que é novo é que agora comecei a dar-me conta disso, e do enorme valor do que tínhamos e estamos a recuperar. E reparo muito mais nas expressões faciais. Só não sei dizer se não reparava antes, ou se todos nós ficámos muito mais expressivos depois de tantos meses em isolamento e a comunicar com o rosto tapado por uma máscara.

Em todo o caso: venha o futuro! Tinha muitas saudades dele.

--- O futuro do nosso coro já tem roteiro: o nosso projecto para Outubro de 2022 chama-se "Fiesta Requiem - um abraço". Quem puder estar em Berlim nessa altura, marque no calendário e arranje de reservar os bilhetes. (Quem avisa, amiga é.)

--- Deixo algumas imagens dos jardins da Haus am Waldsee:





E das casas do outro lado do lago:





16 dezembro 2020

uma festa de Natal muito zoomarenta

 



Ao pequeno-almoço o dia anunciou-se especial, e previ o que se seguiria. 
(sim, que isto são já vários anos de espectáculo deslumbrante durante cerca de meia hora ao pequeno-almoço) 






O café ficou frio, mas não importa. E ainda não foi hoje que fiquei doente por estar na varanda a fotografar descalça e em camisa de dormir no Dezembro berlinense. 

Depois fui trabalhar muito, e muito depressa, e daí a nada já estava assim outra vez:


Continuei a trabalhar o mais depressa que podia, porque não queria chegar atrasada à festa de Natal do meu coro.

Foi no zoom, e foi a melhor festa de Natal de um grupo grande em que alguma vez participei. Por mim, passávamos a fazer todas as festas de grupos de empresa ou tempos livres assim, por um motivo muito simples: o zoom permite que todos ouçam o que cada um está a dizer. Ao passo que nas festas de grupos grandes o pessoal rapidamente se divide em pequenos grupos.

Caso precisem de algumas ideias para uma festa de Natal daquelas de chegarmos ao fim com pena de ter acabado, a nossa foi assim:

Alguns dias antes enviaram um questionário para nós respondermos sem pensar muito: 
1. O que foi o melhor e o pior deste ano?
2. Se o nosso coro fosse um animal, que animal seria?
3. Se pudesses dar livre curso à tua fantasia, qual seria o teu desejo para o próximo ano?

Também pediram que enviássemos algumas fotos tiradas nos eventos do coro, e preparássemos uma história engraçada de Natal que quiséssemos contar a todos. 

Por causa do trabalho perdi a parte das fotos e das histórias. Cheguei no momento em que nos deram uma lista de coisas que tínhamos de juntar em menos de 3 minutos. Enquanto o nosso pianista tocava uma peça de 3 minutos, nós desatámos a correr pela casa em busca de:
- uma fotografia com mais de 10 anos
- um sapato de ir a concertos (esse foi fácil: uma pantufa, porque ultimamente só vou aos concertos no digital concert hall)
- algo feito à mão por nós próprios
- algo de desporto
- o meu livro favorito
- um postal com uma paisagem

Quando o piano se calou voltámos aos nossos lugares, e cada um mostrou as suas coisas e contou as respectivas histórias. Para mim, este foi o momento alto da festa de Natal: nunca estive tão próxima dos meus colegas de coro como neste momento em que mostravam uma fotografia do casamento, ou de algum filho, ou de uma palermice qualquer, ou o leque de tai-chi, ou o colchão de yoga, etc.

Depois estivemos a apreciar os adereços de Natal que alguns tinham posto em si próprios (o meu favorito foi a nossa solista, que meteu a cabeça dentro de embrulhos de Natal, com luzinhas a piscar à volta).

Outro dos momentos altos da festa foi a leitura das nossas respostas, arranjadas num texto muito bem composto que nos fez sorrir e soltar uma ou outra lágrima: ouvindo o que alguns têm encontrado de bom neste estranho tempo, sorrindo com os desejos mais divertidos, rindo com os animais malucos que inventaram. 

No fim cantámos da mesma maneira que temos ensaiado ao longo de todos estes meses: o pianista a tocar a peça, e nós a cantar com ele, cada um em sua casa. Entoámos uma canção de Natal da RDA que eu não conhecia, e é muito bonitinha:


As pessoas foram saindo a pouco e pouco, até que ficou apenas um pequeno grupo a saborear até ao último momento o copo de vinho e a presença dos outros. 

Nunca pensei que uma festa de Natal no zoom me pudesse deixar com o coração tão cheio. 
E já combinámos que na próxima festa - que será com certeza ao vivo! - vamos repetir o jogo dos objectos. 


25 março 2020

o meu coro em zoom



Ontem o meu coro teve um ensaio via zoom, e o melhor de tudo foi quando as pessoas começaram a entrar em linha: pipocavam muito alegres no meu ecrã. 
Passei uns bons quinze minutos a sorrir como uma apaixonada.
(Não sabia que gostava tanto deles.)

O ensaio começou com o maestro no centro, nós muito bem arrumados cada um na sua janelinha, e ele a explicar como é que o sistema funcionava. Confessou, a rir, que o que mais lhe agrada neste sistema é poder pôr-nos em silêncio - "quem me dera ter esta tecla durante todos os ensaios convosco!"

Fizemos os exercícios de aquecimento, e cantámos várias vezes:

Evening rise. Spirit come. 
Sun goes down when the day is done. 
Mother earth  awakens me
With the heartbeat of the sea.

(Para quem quer saber tudo: a versão que cantámos foi esta, com arranjos de Meinhard Ansohn. Mas optei partilhar o vídeo que está no princípio deste post porque me soube muito bem aquele passeio inicial pela floresta tropical.)

Depois cantámos em conjunto uma parte da peça que estamos a preparar para o concerto de Novembro. "Cantar em conjunto" é uma maneira de dizer: cada um cantava para si, olhando para o maestro que, de facto, estava a dirigir uma gravação no piano. As diferentes ligações de internet implicam velocidades diferentes para cada uma das vozes do coro, fazendo com que o conjunto seja, digamos, uma interessante cacofonia.

Ao ver o meu maestro a dirigir o vazio lembrei-me de uma cena contada por Konrad Latte, um músico judeu berlinense que conseguiu escapar ao Holocausto arrancando a estrela da roupa e usando um nome falso. O jovem Latte tinha aulas com um maestro que teve a delicadeza de não lhe fazer qualquer pergunta sobre a sua vida. Durante os terríveis anos da guerra e da perseguição ensaiavam apenas com a partitura da orquestra, e Latte contaria mais tarde no seu livro "E nem que ganhemos apenas uma hora" que os vizinhos deviam achar estranhíssimo ver pela janela os dois homens a gesticular com movimentos largos, fechados numa sala em silêncio.
(Para quem quer saber tudo: Konrad Latte foi o criador da
Berliner Barock-Orchester, que dirigiu de 1953 a 1997.)

No fim do ensaio falámos dos ajustamentos que teremos de fazer. Provavelmente haverá ensaios por naipes. E vamos usar o zoom também para ter aulas de canto individuais ou em pequenos grupos.

Outro ajustamento que temos de fazer é um controlo melhor da nossa imagem. As cenas que nós fazemos no coro, que vergonha! Os bocejos, os olhares, os esgares...
O maestro diz que para ele não foi nada de novo, porque vê disso em todos os ensaios.
Ou seja: mais uma vez se prova que este tempo estranho serve ao menos para nos revelar algo que que não sabíamos sobre nós mesmos. 

À despedida, uma das cantoras anunciou muito orgulhosa que os vizinhos dela estavam todos à janela a aplaudir.
(O que me lembrou uma gracinha que li há dias no instagram: a sugestão para ter sexo uns minutos antes da hora a que começa o aplauso aos profissionais da saúde.)

Quando desliguei, por volta das nove da noite, dei-me conta de que, pela primeira vez em muito tempo, tinha passado duas horas sem me lembrar de sentir fome. Jantei tristonha e nostálgica, ligeiramente atormentada pela dor de ter lembrado como era a minha vida antes.

Mas tenho esperança que lá para Julho as medidas de segurança vão abrandar, e sei que em fins de Setembro regresso à Alemanha e recupero o meu coro em carne e osso.
Isto não passa de um intermezzo.



25 novembro 2019

meu Requiem de Mozart

O ensaio geral correu tão mal que nos pôs em estado de alerta extremo. Foi o melhor que nos podia ter acontecido.

(Enfim, o segundo melhor. O primeiro melhor teria sido sabermos todos a partitura de cor, estarmos bem ligados a todas as vozes do nosso naipe, não tirar os olhos do maestro.) (Ah, e ter uma boa acústica, que uma boa acústica dá sempre jeito, e naquela igreja não conseguíamos ouvir as pessoas da fila da frente nem da fila de trás.)

Depois do ensaio desastroso, ficamos em modo alerta total.  À frente do nosso público, numa casa cheia a rebentar pelas costuras, demos tudo. Simultaneamente tensos e calmos. E foi assim que no dia 24 de Novembro de 2019 inventei uma nova lei da Física - a Lei da Relatividade Música-Tempo: quando a música corre bem, o concerto conclui-se muito mais depressa. Ontem, não me durou nem cinco minutos, e cheguei à última página em luto antecipado por termos chegado ao fim. Se me deixassem mandar, inventava concertos destes em repeat. Enquanto estivesse a correr bem, ninguém parava.

(Não liguem a esta proposta, esqueçam. Era falar por falar. Mesmo antes de pôr o ponto final parágrafo já me tinha ocorrido que seria uma espécie de priapismo, e dizem que é doloroso. Esqueçam.)

Resumindo e concluindo: às vezes vejo os filarmónicos de Berlim a sair de um concerto, e trazem um brilho diferente nos olhos. O melhor do meu requiem de Mozart de ontem foi descobrir em mim o que existe por trás e por dentro desse brilho.

23 novembro 2019

desculpa lá, ó Mozart


Amanhã vou cantar neste concerto, e já estou em feliz expectativa para ouvir a solista soprano, que sabe pôr a alma inteira - a sua alma delicada - na música que canta.

Também estou um bocado preocupada com aquela coisa de cantar a consoante do início da palavra antes do pulso ainda me baralha um bocado (o nosso maestro que não saiba disto!).

Hoje, no duche, descobri que já sei a fuga do Kyrie quase toda de cor. Quase toda. O problema é que me escapa a passagem para o movimento final, que é diferente, e pareço um disco riscado a repetir sempre e sempre a mesma frase. Desisti ao fim de inúmeras voltas, e agora estou a pensar quanto é que este Kyrie me vai custar na conta da luz no fim do mês.
Lux aeterna, aeterna, aeteeeeeerna...

---

Agora, a sério: chegar mais perto de Mozart nota a nota e frase a frase, e sentir o seu génio a tentar traduzir-se pelas minhas cordas vocais, foi das melhores coisas que me aconteceram este ano. Ainda estou muito longe de tocar a verdade de Mozart, mas sinto-me grata por este encontro entre a beleza da sua música e a  minha incompletude. Apesar da minha incompletude. 

25 janeiro 2019

reais catástrofes



Programa para hoje: além do restante trabalho, aprender de cor os textos de cinco das canções que vou cantar com o meu coro no concerto de hoje. Os bilhetes já estão todos vendidos, os figurinos experimentados, o pianista (que é o português Rui Rodrigues, yay!) a postos - a única coisa que falta é eu fazer a minha parte e aprender a cantar tudo muito bem.
("Cinco para a meia-noite" é o meu nome do meio, triste vida.)

O coro foi criado em 2016 e já tem um belo histórico de façanhas. De todas, a que mais me impressiona é a capacidade de delegar do nosso maestro: praticamente todos os membros do coro assumiram a responsabilidade por uma tarefa concreta - partituras (cópias, distribuição, direitos), gestão da página na internet, listas de mailing por temas e naipes, informações várias, abrir e fechar as salas onde ensaiamos, instalar os pianos electrónicos e arrumá-los no fim, etc.
(A mim calhou-me: aprender a cantar bem as peças cinco minutos antes do concerto...)




O nome do programa do concerto de hoje e do próximo domingo é "reais catástrofes". Todas as peças são sobre reis ou rainhas - desde "All Creatures Now", de Bennet, até "König von Deutschland", de Rio Reiser - em grande diversidade de épocas e estilos musicais. Os apresentadores prepararam textos tão divertidos quanto profundos. Por exemplo, quando chamam a atenção para a atemporalidade do desespero do rei de Ungewitter, de Schumann: "no alto deste castelo / não sou rei com espada e coroa / sou o filho impotente e apreensivo / destes tempos de cólera".
(Ou pensaram que o nome "reais catástrofes" era em minha homenagem? heinhe?) (bom, reconheço que seria merecida)



A encenação deste programa esteve a cargo de uma dramaturga de teatro musical que já conhecemos de alguns projectos da Filarmonia, e de uma das cantoras do coro, também dramaturga, mas da área do cinema. De modo que chegámos ao ponto de treinar a expressão do rosto e a direcção do olhar em determinadas passagens de uma canção. Além de concerto, é um show.
(Cantar afinadinho, alinhados à frente do maestro, é muito século XX.)  

Os figurinos, por sua vez,  são um espectáculo. Do meio dos cantores, vestidos de preto, sobressaem dois soberanos por naipe, profusamente produzidos. A minha favorita é uma das rainhas das soprano, que vem de chapéu real e blusa, mas traz sobre as calças pretas apenas uma armação de arames para saia. Sempre que olho para ela dá-me vontade de rir.
(Convém que não olhe para ela durante a parte do Ungewitter, do Schumann). 

De modo que agora cá vou eu ao trabalho: aprender de cor o texto do Bassa Selim e do König von Deutschland (logo eu, que sempre detestei a rapidez do rap!), o da Glor'würdge Königin, partes do Ungewitter e da Traurige Krönung. Ah, e treinar bem a tensão de "All creatures now", porque em certas passagens - aquelas em que me sinto mais segura - esqueço que se trata de música renascentista e espraio-me como se estivesse a cantar Schumann.
(Aprender textos alemães de cor, enquanto vou despachando as outras urgências do dia: "quadraturas do círculo" é o meu nome do meio.) (Com tantos nomes do meio, um dia destes o meu passaporte terá de vir com folhas desdobráveis.)

E além disso está a nevar. Se calhar também vai ser preciso ir limpar o passeio.
(Seria a primeira vez que alguém limpa um passeio a cantar a melodia do contralto no Bassa Selim.)



12 março 2017

aqueles cinco minutos de sol entre as nuvens grossas e o horizonte


Ontem ia no S-Bahn a caminho do nosso grande concerto quando o entardecer se encheu de luz.

Sentada no banco do comboio, fui disparando. É daqueles momentos em que até de olhos fechados se acerta. Tive pena de não ter a máquina melhor ao passar no Hansaviertel, com os seus prédios da exposição internacional de arquitectura de 1957. Num deles, havia uma bicicleta na varanda num dos andares mais altos.  

O concerto correu bem. Muito bem. Agora temos duas semanas de férias, e depois começa o novo desafio: uma viagem à lua, uma ópera novinha em folha.



 















11 março 2017

In the spring time, the only pretty ring time, / When birds do sing, hey ding a ding, ding; / Sweet lovers love the spring.






Mais um daqueles dias em que bem me podia dar inveja de mim própria: esta manhã, no ensaio geral, ouvimos o Ravel dos dois pianistas ("Ma mère l'oye"), e o Rundfunkchor a cantar cheio de swing "It was a Lover and his Lass", canção de George Sharing sobre um poema de Shakespeare.
O maestro deles disse-lhes que os queria a cantar aquilo no espírito On the Road de Jacques Kerouac. "Como a descrição que faz daquele clube de jazz em Nova Iorque", explicou.

Ai, a correspondência das artes: agora para cantar Shakespeare é preciso ler Kerouac e frequentar bares de jazz em Nova Iorque...

Ainda está frio em Berlim, mas esta música dá-nos primavera.

(A peça começa a 4:25 - e o Rundfunkchor canta isto muito melhor, mas ainda não gravaram, por isso deixo aqui o que encontrei.)



  IT was a lover and his lass,
With a hey, and a ho, and a hey nonino,
That o'er the green corn-field did pass,
  In the spring time, the only pretty ring time,
When birds do sing, hey ding a ding, ding;         5
Sweet lovers love the spring.
Between the acres of the rye,
  With a hey, and a ho, and a hey nonino,
These pretty country folks would lie,
  In the spring time, the only pretty ring time,  10
When birds do sing, hey ding a ding, ding;
Sweet lovers love the spring.
This carol they began that hour,
  With a hey, and a ho, and a hey nonino,
How that life was but a flower  15
  In the spring time, the only pretty ring time,
When birds do sing, hey ding a ding, ding;
Sweet lovers love the spring.
And, therefore, take the present time
  With a hey, and a ho, and a hey nonino,  20
For love is crown`d with the prime
In the spring time, the only pretty ring time,
When birds do sing, hey ding a ding, ding;
Sweet lovers love the spring.


overdose

Três concertos numa semana - e teriam sido quatro se tivesse conseguido entrar no Lunchkonzert, mas fecharam a porta três pessoas antes de mim.

Três concertos, e três ensaios com o Rundfunkchor e o seu maestro que é muito tipo agarrem-me que se começo a pôr aqui coraçõezinhos nem sei que vos diga que vos conte.

Começo com um presente: este domingo o Digital Concert Hall transmite em directo e gratuitamente um concerto com Zubin Mehta e Pinchas Zuckerman. Vi-o hoje, e foi sublime. Concerto para violino de Elgar, e 5ª de Tchaikovsky. Domingo, 13.3, às 7 da tarde em Portugal.







Não sei como é que Zubin Mehta aguenta este ritmo aos 81 anos - já dirigia os Filarmónicos ainda eu não era nascida, ainda nem sequer era uma ideia. E aqui está ele: por estes dias tem dado vários concertos consecutivos em Berlim - o Elgar e o Tchaikovsky desta semana, a seguir ao Bartók e ao Ravi Shankar da semana passada. Ai, o concerto do Ravi Shankar, com a cítara tocada pela Anoushka Shankar!  Raramente bati tantas palmas - eram merecidas, e além disso queria que ela voltasse muitas vezes ao palco porque estava com uma roupa lindíssima, que eu não me cansava de ver.

Amanhã vai ser o concerto do meu coro com o Rundfunkchor. Trabalhámos muito durante vários meses para chegar aqui, e desta vez sinto que entendi o que estou a cantar e posso saborear melhor a alegria de fazer esta música.

Já tivemos vários ensaios com o coro profissional. Nos dois últimos optaram por separar os coros, em vez de misturar os profissionais com os amadores. A minha auto-estima agradeceu imenso.
No concerto de amanhã vamos cantar algumas peças juntos, outras cantam só eles, outras cantamos só nós. E há uma, uma das que vão ter estreia mundial no concerto de amanhã, do Frank Schwemmer, em que cantamos juntos três estrofes e a seguir canta apenas o Rundfunkchor. Ouvi-os ontem: estávamos formados em semicírculos concêntricos, os profissionais atrás de nós, e de repente fomos envolvidos por uma música de tal beleza, cantada de maneira tão bela, que tive de me conter para não chorar.


Por mim, nem precisava de concerto: já me basta o que aprendi e o que me ri na sua preparação. O maestro do Rundfunkchor é um holandês bastante jovem, muito expressivo e com enorme sentido de humor. Ontem, por exemplo: a ensaiar a primeira das Valsas de Amor de Brahms começou ele próprio a valsar à nossa frente. E pedia desculpa aos pianistas, dizia "oh pá, estou empolgado! Esta música é tão cool!" Exigente nos detalhes, quer que sintamos cada palavra que cantamos, que a cantemos de modo a ser claro o que ela significa. Mima-nos a música como a quer ouvir de nós. Faz comentários do género: esse "vem, vem" não me convence, assim não me convencem a vir - e põe cara de reticências, e ri. Dá o exemplo dos fãs de futebol a chamar nomes ao árbitro para nos explicar como é a cadência com ritardando que queria. "Se 30.000 holandeses acertam isto, vocês também vão conseguir". E quando os naipes masculinos cantaram uma frase de forma pouco nítida, ele contou que daqui a um mês vai haver eleições na Holanda, e que o Geert Wilders distribuiu uma folhinha com o seu programa, "não mais que uma folhinha"; um dos pontos é sobre cortar os apoios às televisões, às rádios, à cultura, à música clássica, etc. etc. - e acrescentou, virado para os homens: "vocês estão a cantar esta frase como etc. etc. - ahem, desculpem, isto não veio muito a propósito, mas é uma coisa que não me sai da cabeça, e preciso de falar."


Amanhã temos um dia de muito trabalho, depois temos o concerto, e depois virá o vazio. Já sinto saudades destes dias.



01 março 2017

e então, Heleninha, como correu o ensaio com o compositor?

Correu bem. Quer dizer, exceptuando a parte de eu ter ficado em frente ao compositor e ao lado da mãe do nosso maestro, duplamente entalada, correu bem. O compositor é simpático e muito, muito estóico. Ouviu-nos com um sorriso enquanto nós lhe estraçalhávamos a composição, explicou com muito bons modos o que tinha pensado que aquela música ia ser. Pediu-nos para dar tensão e rumo às frases, especialmente aquelas em que se repete várias vezes a mesma nota (o que me fez pensar no samba de uma nota só, que vou ter de começar a ensaiar melhor no duche porque - e foi preciso cantar uma peça contemporânea em frente ao seu compositor berlinense para perceber o meu erro de sempre - resolvo esse tipo de sequências alterando o ritmo às notas com tal desplante que uma vez comentaram que canto os salmos como quem dança o vira, "canto" é como quem diz "cantava" no tempo em que salmodiava, entretanto ganhei juízo) (se calhar já dividia o parêntesis anterior em várias frases e explicações...).
Numa passagem em crescendo, o compositor - sempre a sorrir - pediu aos naipes femininos que não respirassem entre duas frases longas. Ah, malandro, desconfiei logo que se queria ir armar depois com os amigos: "as mulheres, oh, à minha frente: desmaiam todas!"
Pouco faltou.


Na segunda peça que lhe mostramos pediu mais velocidade. Já viram uma locomotiva a vapor a tentar fazer de TGV? Fomos nós, ontem. Mas ele gostou, e explicou que queria ter naquela música uma cacofonia de feira e festa popular, queria que nós cantássemos desirmanados e estridentes. Ora, já podia ter dito antes, veio falar com as pessoas certas! E tinha-nos poupado boas horas de ensaio no fim-de-semana do coro. O que nós nos esforçámos para cantar bem, e afinal ele queria era uma demonstração do que fazemos facilmente e com a maior das naturalidades!? O maestro deu o pontapé de partida, e nós largámos à desfilada, a ver quem chegava primeiro ao fim.
O compositor sorriu.
(Qual será a marca do calmante que toma?)

Em casa, contei ao Joachim. Que agora quer um bilhete para o nosso concerto. Disse-lhe que é muito caro, 25 euros, e até estão esgotados, mas ele insiste. Não sei se é sadismo, se é masoquismo, se é amor. Às tantas é por saber do que a casa gasta, e de como gosto de fantasiar quando falo do que me enche o coração.

Ponho-me a brincar com estas coisas, mas estou certa que o concerto vai ser bom. E para o meu coro, esta é uma oportunidade única de aprender com os melhores e de fazer caminho. Eu, por exemplo: mais 400 anos disto, e vou parecer o Farinelli. Tiques e tudo. 



28 fevereiro 2017

F*** day

 
 

(A arquitectura da Filarmonia continua a fascinar-me. 
De cada vez descubro novos detalhes, novas surpresas.)


 
Conhecem o famoso "F-word"? O meu é "Filarmonia". Foi hoje, outra vez.
Comecei por preencher a ficha de inscrição para participar na ópera que vai ser estreada em Junho. Quando cheguei à parte da motivação, escrevi:
- Então, trata-se de um education project da Filarmonia de Berlim e ainda me perguntam a motivação?! :)
(Eu sei que o mundo real não é assim, mas insisto em tentar ajustá-lo à minha maneira. A ver se corre bem.)

Depois fui ao Lunchkonzert. Era dia de duetos de piano e clarinete, como não ir?

Gostei muito do segundo andamento da sonata para piano e clarinete f-Moll op 120 nr. 1 de Brahms (no vídeo, a partir de 7:12). Estou ansiosa pelo próximo entardecer de domingo, é a música certa para adoçar essa hora.




Também gostei muito do Tema con variazioni para clarinete e piano, uma peça composta em 1974 por Jean Françaix. Ouçam, ouçam. Devolvo o dinheiro a quem não gostar.




Almocei com uma amiga, e por mim ainda agora estávamos lá na conversa. Mas o dever chama. Daqui a nada saio para o ensaio do coro. Em duas semanas vamos estrear uma peça de um compositor berlinense, e ele vai assistir hoje ao ensaio. Ai! A ver se não me acontece como da outra vez, quando me fui pôr num sítio onde não estava ninguém, e depois percebi que era mesmo ao lado do compositor da peça que íamos estrear, e no fim de cantarmos o Simon Rattle perguntou ao compositor o que achava e ele respondeu que não estava nada mal, mas era bom se conseguíssemos cantar em uníssono, e por azar estava a falar de mim. Triste vida, sou sempre o único soldado que vai a marchar bem na parada inteira.


e ainda perguntam?!



O novo Education Project da Filarmonia de Berlim é "A Trip to the Moon", uma ópera infantil encomendada a Andrew Norman, inspirada num filme francês de ficção científica de 1902. A première será no dia 17 de Junho, na Filarmonia. O coro vai cantar em "moonish", uma língua nova inventada de propósito para esta história, só com vogais e cheia de ritmo. O projecto inclui trabalhar com o Simon Halsey (aaaaiiii, o Simon Halsey) (que já nem sequer está em Berlim) e com o Simon Rattle (aaaaiiii!) (que vai deixar os Filarmónicos em 2018).

Tenho a ficha de inscrição à minha frente, cheguei à parte em que me pedem a motivação para participar neste projecto, e estou a agarrar-me para não escrever:

"e ainda perguntam?!"


22 fevereiro 2017

amor, prazer e dor




Comprei com meio ano de antecedência bilhetes para um concerto da Maria João Pires, e andei este tempo todo em estado de Vorfreude (mais uma palavrinha alemã para enriquecer o léxico de todos: aquele estado de alegria antecipada por alguma coisa que vai acontecer, seja um concerto especial, umas férias, ou as batatas azuis que vou plantar aqui na minha quintinha).

Entretanto o meu coro começou um projecto especialíssimo com o Rundfunkchor - o coro profissional que costuma cantar com a Filarmónica de Berlim - e o segundo ensaio com eles coincidia com o concerto da Maria João Pires. Ainda pensei fazer gazeta, mas depois do primeiro ensaio percebi que a questão não é a obrigação de estar presente, é mesmo a oportunidade extraordinária de cantar ao lado daqueles cantores profissionais, e de aprender com o maestro deles, que é um espanto, vários espantos juntos. Um dia ainda escrevo um ensaio de teologia sobre este Deus que insiste em encher-me de nozes sem critério, como estes dois imperdíveis à mesma hora.

Com muita pena, desisti do concerto da Maria João Pires. E logo a seguir um amigo avisou-me que ela o cancelou. Ia anunciar alegremente que Deus existe, mesmo e sem margem para dúvidas, quando me lembrei que sou a Calamity Jane da música clássica. Ai! E se aconteceu alguma coisa à pianista? Low profile, que as conclusões teológicas ainda me saem pela culatra: arrisco-me a que me tirem a nacionalidade e me metam na cadeia por alta traição. Espero sinceramente que o concerto só tenha sido cancelado porque ela percebeu que eu já não podia ir assistir, e portanto não valia a pena dar-se ao incómodo de vir a Berlim. Claro que foi isso.

Ontem foi o segundo ensaio com o Rundfunkchor, na sala em que eles trabalham, com piano de cauda, estantes de madeira, painéis para melhorar a acústica - um luxo. Desta vez, fiquei entre a cantora que às vezes vem ajudar o nosso maestro com ensaios dos naipes, e uma solista do Rundfunkchor. Que maldade! Parecia aquela vez que puseram o o António Zambujo a cantar com o Milton Nascimento, mas muito pior. Parecia a anedota do elefante e da formiguinha, e eu de tal maneira intimidada que nem consegui brincar com a ideia da areia que estávamos a levantar. Não se faz isto a uma simples mortal! Lado a lado, ela tão insuperavelmente acima de mim, tudo era abismo entre nós: a sua voz cheia e segura, a dicção perfeita, a concentração absoluta, as palavras separadas com primor (quantas vezes o nosso maestro nos pede para meter uma folha de papel entre as palavras, e nos pergunta quem é esse "Willich" de que falamos quando devíamos dizer "will ich"), as consoantes finais no milésimo de segundo certo, a tensão, a exactidão dos crescendos, a doçura dos pianos ("piano não é um forte frustrado", dizia o maestro deles), a respiração, a frescura inteira no fim das frases. E eu ao lado dela, a morrer de vergonha. Sadismo puro. 

No intervalo, perguntei à cantora do outro lado (a estudante de canto que às vezes nos ensaia) se queria que eu trocasse de lugar com a solista, para ela a ouvir melhor. Disse que não, tranquilo tranquilo, que estava tudo bem como estava. E depois, a meio da segunda parte do ensaio, no fim de uma peça de Brahms, acrescentou: "não preciso nada da solista ao meu lado, já te tenho a ti, cantas como uma profissional". Aaaah, comecei logo a cantar melhor.
Sou uma rapariga muito sugestionável.

("Amor, prazer e dor" é uma excerto da canção de Brahms. Que é a minha favorita das suas 18 "Valsas de Amor".)



12 fevereiro 2017

cantorias e andanças

Canto em coros desde os 15 anos, e até agora ainda ninguém me tinha dito isto que é evidente: antes de começar uma frase, preparamos o corpo para o tom mais agudo, e só então largamos a cantar. Depois de saber, é mesmo um caso de elementar meu caro Watson. Mas andei quase quarenta anos para chegar aqui. A aprender a este ritmo, só lá para os 120 é que vou cantar como a Callas.

O fim-de-semana com o coro foi muito cansativo e muito proveitoso. Treinámos imensos detalhes: "inspirem em u e cantem i", o momento certo para terminar as palavras (malditos s, malditos t e dt...), a respiração como umas férias curtíssimas a meio das frases, para atacar a segunda metade com toda a energia, a proibição de "ir de elevador" entre as notas (gostei imenso da expressão).

Para nos obrigar a estar concentrados e a ganhar segurança, o maestro pôs-nos a andar desencontrados na sala, cantando ao mesmo tempo. Gostei imenso dessa combinação de enorme concentração na partitura e combinação aleatória e alternada com os outros naipes. E gostei ainda mais quando o nosso maestro, que é muito exigente e ambicioso, interrompeu uma cadência para anunciar com orgulho "este é o meu coro!"
(Sim, eu sei, síndrome de Estocolmo.)

No último bloco tentámos um ensaio geral do concerto, porque o próximo ensaio já é com os profissionais do Rundfunkchor. Correu mal: demo-nos conta de que é em voltas erráticas pela sala que cantamos melhor. De modo que agora temos um mês para aprender a cantar bem, arrumados disciplinadamente por naipes. Ou isso, ou o Rundfunkchor vai dar o concerto mais sui generis da sua vida. E talvez nós mudemos o nosso nome para "coro andanças".

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A viagem de regresso a Berlim não foi tão bonita como a de ida. O dia estava cinzento, e tornava tudo ainda mais triste. Passámos por algumas unidades de produção agrícola da RDA com os estábulos em ruínas e os prédios de habitação abandonados, atravessámos aldeias sem um único café ou loja.
Esta região pagou um preço altíssimo para a reunificação da Alemanha.