Um dos melhores artigos que li sobre o "não" irlandês ("Schluss mit der Rosinenpickerei", de Gerd Appenzeller, aqui) dizia isto:
Um dos países mais pobres da Europa transformou-se, graças ao esforço do seu povo e aos milhares de milhões recebidos, numa economia forte e saudável. Uma minoria de eleitores desse país inviabilizou o tratado de Lisboa. As reformas urgentes dos processos de decisão desta união de 27 países terão de ser adiadas. Os irlandeses impediram aquilo que o tratado pretendia obter: uma maior democratização dos processos europeus.
Mas não podemos dramatizar. Os irlandeses limitaram-se a fazer o mesmo que os franceses e os holandeses, quando rejeitaram Nice. Os referendos sobre a Europa têm sido utilizados para protestar contra problemas políticos, económicos e sociais internos. Por outro lado, tem havido uma prática perversa dos políticos de atribuir ao seu governo as evoluções positivas e a Bruxelas tudo o que provoca contrariedade. De modo que os irlandeses, numa altura em que a economia do seu país dá sinais de estar em abrandamento, culpam a Europa e acusam o tratado de Lisboa de facilitar a prostituição e o aborto.
Que as pessoas sejam capazes de acreditar em tanta palermice é também resultado do comportamento dos eurocratas e, não raro, da arrogância dos políticos europeus - e isso diz respeito a todos, não apenas à Irlanda.
O texto dos tratados (quer o de Lisboa, quer o de Nice) é muito extenso e quase incompreensível. A complexidade do texto sufoca a vivacidade central do projecto europeu. O que resulta é um texto que ninguém consegue - nem quer - ler.
O que é irritante neste enfado europeu é o esquecimento de que devemos à Europa muito daquilo que hoje é para nós algo normal: desde a liberdade de viajar e de estabelecer uma empresa em qualquer país, à de escolher o país onde se trabalha ou se estuda.
A Europa corre o risco de ter o destino de muitas empresas familiares: a primeira geração criou as fundações, a segunda alargou a construção, e a terceira dá cabo da herança.
Que a base da União é o princípio de dar e receber é um facto que interessa a poucos, como se vê agora nos irlandeses, que dizem "não" com os bolsos cheios.
Chegou o tempo de considerar seriamente uma proposta feita por políticos da CDU há quase uma década e meia: precisamos de uma Europa a duas velocidades, um núcleo europeu com países que se articulam de forma muito coesa, e à sua volta um conjunto de países com todo o tempo que precisarem para discutir se querem ou não fazer parte deste núcleo. Também na Alemanha, na França e nos países do Benelux há resistências contra a crescente perda das competências nacionais. Mas estes Estados - e quem mais quiser fazer parte do grupo - não podem continuar a ser travados por aqueles que do bolo só querem as passas.
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Vê-se bem que o Eduardo Pitta estava na Alemanha quando soube a notícia do resultado do referendo na Irlanda: "A Irlanda deve ir à sua vidinha. Tão simples como isto."
Foi essa a primeira reacção de muitos políticos alemães: uma Europa a duas velocidades.
O que é uma coisa fácil de decidir quando se tem a certeza que se vai no pelotão da frente. Para os países mais pequenos, que temem ser carne para o canhão europeu, há medos que têm de ser desfeitos.
O Lutz, que é alemão mas tem andado em estágio em Portugal, faz uma análise mais cuidada (vale a pena ler o post todo):
Devemos agradecer aos irlandeses ter nos dado, em cima da hora, talvez a última oportunidade para colmatar a ineficiência e o défice democrático da União.
Proponho criar uma Assembleia Constituinte, ocupada de forma proporcional por representantes de cada país membro, que elabore a constituição, não mais complicada nem menos clara do que outras constituições de outros países. Uma que dote instituições comuns com poderes verdadeiros, sujeitos ao escrutínio directo de todos os eleitores comunitários.
Depois, cada país a referende, com o efeito de quem a rejeitasse, ficaria fora. Ponto final.
Nos comentários desse post, o MP-S, que é português mas tem andado em estágio na Alemanha, acrescenta alguns pontos interessantes:
(...) Por fim, cada pais poderia decidir (por referendo ou outro processo que entenda melhor) se aderiria ou nao ao projecto. Quem nao o quisesse fazer, deixaria de participar nos processos de decisao politica da Uniao.
(...) O voto nestes referendos e' muito 'barato'; os votantes votam de forma 'leviana' porque a percepcao generalizada e' a de que as consequencias praticas sao quase nulas e/ou muito longinquas no tempo. O pessoal vota para chatear porque sabe que a UE vai continuar mais ou menos na mesma, nao se vai dissolver, nem nada de remotamente perturbante ira' acontecer em resultado da eleicao. Ate' ver ....
E eu, que só sei o que sou realmente, e sem margem para dúvidas, quando a Alemanha joga contra Portugal, acrescentei lá o seguinte:
Proponho uma nova regra para a realização dos referendos: só pode votar quem passar um exame para provar que sabe o que está a ser referendado.
Um exame cujas perguntas e respostas tenham sido previamente divulgadas nos meios de comunicação social.
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