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14 abril 2022

quinta-feira santa



 




Quando andámos a filmar o ARtMENIANS em 2014, pudemos assistir ao #rito da Páscoa da Igreja Arménia: domingo de ramos em Etchmiadzin (o "Vaticano" da Igreja Arménia), e domingo de Páscoa no mosteiro de Gelarde. Recomendo tudo: as celebrações, os cânticos antiquíssimos, a vivência da fé, os cenários. A alegria das crianças no domingo de ramos, a festa da ressurreição em Gelarde - e uma solista a cantar numa sala subterrânea, uma das primeiras igrejas cristãs do mundo. 

Na quinta-feira santa estávamos em Nagorno-Karabakh, e filmámos partes da celebração desse dia com o famoso arcebispo Pargev Martirosyan.

Todos me falavam com imensa admiração deste arcebispo que esteve sempre ao lado dos arménios na guerras de Nagorno-Karabakh após o desmembramento da URSS. Um herói, diziam. Vimo-lo em Shushi, cidade da qual os arménios tinham sido expulsos depois dos massacres do princípio do século XX. A catedral, durante muitos anos usada como paiol pelos azeri, foi rapidamente reconstruída após a conquista da cidade. Mostraram-nos - com lágrimas nos olhos - um filme do regresso do arcebispo àquela igreja.

Quando chegou o momento de lavar os pés, alguns soldados fardados subiram ao altar, e o arcebispo ajoelhou à frente deles num gesto de grande humildade. O Pedro, nosso artista da câmara, ficou chocadíssimo com a cena, e recusou-se a filmar. Só filmou o lava-pés dos ajudantes da celebração.

Quando entrevistei o arcebispo, tive o atrevimento de falar sobre guerra e cristianismo. Ele não gostou, e respondeu-me com uma passagem do Evangelho, justamente de quinta-feira santa: Então lhes disse: Agora, porém, o que tem bolsa, tome-a, como também o alforge; e o que não tem dinheiro, venda a sua capa e compre espada (Lucas 22:36.)

Em 2014, Shushi era uma cidade ainda cheia de ruínas: as ruínas do antigo bairro arménio destruído um século antes, e as ruínas da guerra dos anos noventa. Em 2020, o exército azeri reconquistou a cidade, e voltou a danificar a catedral. Mais ruínas.

Pergunto-me onde andarão agora as crianças que ali vimos, e se ainda terão aquele sorriso confiante. Onde estarão os soldados cujos pés foram lavados pelo arcebispo. E, sobretudo, qual dos versículos em que Jesus fala de espadas é o certo quando o que está em jogo é a nossa vida e o nosso sentido de Justiça.


[ Agora mudava de religião e passava para a história do rabino de uma shtetl no Leste da Europa, que juntou dinheiro da comunidade para ir à cidade comprar a Justiça. O espertalhão do negociante pegou numa ânfora, encheu-a com água do esgoto, fechou-a, recebeu o dinheiro e deu ao rabino a ânfora cheia de Justiça, avisando que não a podia abrir. O rabino regressou à shtetl, meteu a ânfora debaixo da cama, mas não conseguia dormir. Quando não aguentou mais a curiosidade, abriu a ânfora. No dia seguinte, toda a comunidade queria saber como era a Justiça que tinham comprado. E o rabino:
- Só vos sei dizer isto: a Justiça fede! ]








15 abril 2021

alimento essencial

Este post ia chamar-se "para começar bem o dia", e estava a nascer assim:


Trago da página de youtube da autora, Anne Magalhães:

"Música da artista e ativista Nina Simone, de 1965.
Não tá tudo bem. Não tá tudo bem. E a gente sabe que toda essa história de se sentir plena é impossível num momento como esse. Mas deixo aqui a maneira calorosa como me alimentei num dia de desesperança, vai que não serve para você também.
Seguimos."



Mariana Abrunheiro, Ruben Alves, Carlos Bica. 

Não sei se "a beleza salva". Mas, como dizia ali em cima a Anne Magalhães, alimenta.
Num momento como este, alimenta. 

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Este era o post que queria escrever hoje.
Acontece que quando cheguei ao parágrafo anterior me ocorreu uma entrevista que fizemos em Yerevan, com o director do Cafesjian - Center for the Arts, durante a crise do euro, quando o governo português estava a cortar drasticamente todas as despesas. Perguntei-lhe porque gastavam tanto em cultura num país tão pobre e a precisar urgentemente desse capital para outras coisas. Ele sorriu, e respondeu: 

"Porque a Arte cura."

A Arte é um alimento essencial: para nos ajudar a crescer para além da escuridão do momento que nos tolhe o horizonte. 


30 novembro 2020

Nagorno-Karabach


"We reach way back" é uma frase dita por um descendente de arménios no filme Ararat, de Atom Egoyan, quando está a ser interrogado por um polícia de um aeroporto canadiano - e é nessa frase que penso ao ter de decidir onde começar a história de Nagorno-Karabakh, que de novo tem sido notícia pelas piores razões. 

Começar talvez no século V a.C, quando naquela região coexistiam vários povos - autóctones, arménios e nómadas? Ou quando Artsakh (Nagorno-Karabakh) se tornou uma das províncias da antiga Arménia, séculos antes da nossa era? Ou no século IV d.C., quando já eram arménios praticamente todos os habitantes da região, e São Gregório - que tinha convertido o país ao cristianismo, o que se tornou uma peça fundamental da identidade arménia - ali fundou o mosteiro de Amaras? Em todo o caso, Nagorno-Karabakh tinha uma posição central no reino arménio quando, na passagem para o século V, Mesrop Mashtots instalou no já centenário mosteiro de Amaras a primeira escola da língua arménia que utilizava o alfabeto por ele criado. Foi portanto nessa região que, há mil e seiscentos anos, se deram os primeiros passos para escrever a Bíblia em arménio, outra peça fundamental do reforço da identidade arménia para se distinguir dos outros povos que coexistiam e se moviam sobre o mesmo espaço geográfico.  

Ao contrário da maior parte do território da antiga Arménia, dilacerado e repartido pelos vizinhos ao longo de uma violentíssima História, os príncipes arménios de Artsakh conseguiram relativa autonomia em relação a cada uma das potências ocupantes: mais de mil anos de jogos de cintura com árabes, mongóis, persas, otomanos, iranianos, russos. Artsakh é, por isso, muito mais que uma região de população maioritariamente arménia: é o milenar oásis de segurança com o qual sonharam tantos arménios obrigados a viver como estrangeiros na terra que era a sua desde tempos imemoriais. 

No início do século XIX Artsakh é anexada ao Império Russo, e passa a ser conhecida pelo nome russo: Nagorno-Karabakh. Algumas décadas mais tarde o novo ocupante cria uma unidade administrativa que une esta região a outras dos actuais Azerbaijão e Arménia, diluindo as antiquíssimas fronteiras dos principados arménios e dando origem a novos movimentos demográficos e fluxos económicos. Já em 1905 há tentativas por parte da maioria arménia de Artsakh para se separar da restante região. Aparentemente o vice-rei russo aceitou esse plano, mas nada foi feito para o pôr em prática. Em finais da Primeira Guerra Mundial, a região é disputada pelo Azerbaijão e pela Arménia, dois novos países que estão em processo de desenho de fronteiras. No âmbito da reorganização geopolítica do momento, os britânicos decidem entregá-la ao Azerbaijão por motivos estratégicos, porque precisam deste país para conter o avanço dos bolcheviques. Mas, perante o recrudescer dos conflitos cada vez mais incontroláveis, decidem afastar-se daquele cenário, deixando arménios e azeris entregues ao poder de decisão das suas próprias armas. Em Março de 1920 os azeris respondem violentamente a mais um ataque dos arménios: toda a população arménia de Shushi é massacrada, e o bairro é incendiado. O exército arménio entra em cena, e é criada a república arménia de Nagorno-Karabakh, que terá uma vida curta. Entretanto os bolcheviques chegam à Arménia e, para conseguir apoio popular, prometem-lhe os territórios das antigas províncias arménias: Artsakh, Nakhitchevan e Zanguezur. O próprio chefe bolchevique azeri escreve um manifesto celebrando a vitória do poder soviético na Arménia e a entrega daqueles territórios a esse país. Mas Estaline decide o contrário, e em Julho de 1921 entrega Nagorno-Karabakh ao Azerbaijão com o estatuto de região autónoma. A sua população conta, à época, com 92% de arménios.

Durante todo o período soviético arménios e azeris conviveram em boa paz. De facto, o regime não lhes dava outra hipótese, porque desde o princípio impôs violentamente a supressão dos nacionalismos, quer matando quer deportando muitos milhares de pessoas - que o diga o poeta Charents, cuja fidelidade à cultura arménia foi paga com a tortura e a própria vida, que o digam o compositor Chatchaturian e o realizador Parajanov, que durante muito tempo foram considerados criadores soviéticos. Mas quando chegou a perestroika, os antigos conflitos nacionalistas voltaram a emergir com toda a violência. Nagorno-Karabakh aproveitou os novos ventos para se proclamar uma república soviética autónoma, equiparável aos dois países vizinhos. De um lado e do outro houve erupções de violência entre civis, e numerosos massacres. Os arménios que viviam no Azerbaijão fugiram para a Arménia e para Nagorno-Karabakh, e os azeris que viviam entre os arménios (só em Nagorno-Karabakh eram cerca de quarenta mil, sensivelmente um quarto da população total) fugiram na direcção oposta. Uma catástrofe humanitária: centenas de milhares de desalojados de ambos os lados da fronteira. Após o colapso da URSS, a esmagadora maioria da população de Nagorno-Karabakh decide em referendo a favor da independência. Começa a guerra de Nagorno-Karabakh, que - com a ajuda da Rússia - permitiu a ocupação de vastas áreas envolventes daquele território, e terminará em 1994, sem que o país seja reconhecido pela comunidade internacional.

***

O brilho nos olhos da Chagig, quando me disse em 2014 em Yerevan, que tinha de ir a Nagorno-Karabakh: porque era "como a Suíça". 

Diz-se que Deus, quando criou o mundo, deixou o território da actual Arménia para o fim. Quando lá chegou deu-se conta de que já só tinha pedras no saco. Que havia ele de fazer? Virou o saco, e deixou cair as pedras sobre aquela terra. 

"Como a Suíça": as montanhas, o verde dos vales, a água - recuperar para a Arménia um pouco do que Deus prodigalizou aos outros. 

***

Olho para o mapa: Nagorno-Karabakh é uma torre no jogo de xadrez travado entre russos e turcos. Os arménios não passam de peões.  

***

Assistimos à celebração de quinta-feira santa na catedral de Nagorno-Karabakh. No altar alinhavam-se vários soldados descalços, e o famoso arcebispo Pargev Martirosyan curvava-se perante eles e lavava cuidadosamente os seus pés. 

Horas antes tinha-me dito que o próprio Jesus afirmara que tínhamos de lutar para nos defender. A minha interpretação dessa passagem do Evangelho de Lucas (22:36) é bastante diferente, mas isso, de facto, pouco interessa quando estou perante um povo que resiste ao processo da sua própria eliminação na terra que há milénios lhe pertence. Seria puro cinismo sugerir a estes cristãos, neste momento, que "ofereçam a outra face". 

***

Na época Obama, alguns Estados dos EUA e um da Austrália aprovam resoluções a reconhecer a República de Artsakh, e pressionam o seu governo federal a dar passos nesse sentido por respeito ao direito de autodeterminação dos povos. Em 2015 a Arménia dá sinais políticos de querer aproximar-se de Nagorno-Karabakh. Em 2016 recomeçam os ataques, e o Azerbaijão recupera pequenas parcelas do seu próprio território, que os arménios tinham conquistado na guerra dos anos 90, e que servia como faixa de segurança em torno da Artsakh histórica. Em 2019, o novo primeiro-ministro arménio afirma na capital, Stepanakert, que "Artsakh é Arménia. Ponto."Em 2020, no actual contexto de jogos de poder, a Turquia apoia abertamente o Azerbaijão para retomar a guerra, e envia mercenários sírios. Desta vez, a Rússia não vai em socorro dos arménios, tanto mais que não está muito certa sobre a fidelidade do novo primeiro-ministro Nikol Paschinian. Por sua vez os EUA estão demasiado ocupados com o umbigo do Trump. A União Europeia assiste consternada, como de costume. Ao fim de algumas semanas, o Azerbaijão recupera os territórios perdidos nos anos noventa, e conquista a estratégica Shushi. O acordo para pôr fim ao conflito prevê a instalação de dois mil soldados russos na região. 

Em suma: milhares de mortos depois, o Azerbaijão recupera boa parte do seu território, a Turquia conquista poder no contexto internacional, a Rússia instala soldados no Cáucaso. 

Ganharam todos - excepto os arménios. 

***

Muitos dizem que a República de Artsakh se constituiu à revelia do Direito Internacional, e por isso não merece reconhecimento. Mas eu pergunto: que Direito é esse que permite a potências estrangeiras pôr e dispor do território, e do destino do povo que o habita há milhares de anos?


05 julho 2019

"século X" (1)

As palavras propostas na Enciclopédia Ilustrada seguem a ordem alfabética. No que diz respeito às palavras por A, B, C, D e quejandas, temos para muitas voltas. Mas quando chegamos ao fim do alfabeto, ao W, ao X, ao Y, ao Z, parece que o dicionário se cansou. Ao fim de alguns anos de voltas ao alfabeto, escasseiam as palavras. Uma maneira de tornear a dificuldade para a letra X foi propor os séculos: X, XI, XII, ...
(Agora só preciso de um truque assim expedito para o W, o Y e o Z...)

Partilho aqui de seguida dois posts meus sobre o século X e um sobre o século XI. Os séculos restantes virão a seu tempo, volta após volta.


Século X



S. Gregório de Narek viveu na segunda metade do no #século_X. Além de monge e abade, especialista em música, geometria, matemática, literatura, astronomia e teologia, escreveu uma série de poemas-oração que foram integrados nos cânticos litúrgicos arménios. O seu túmulo permaneceu no seu mosteiro de Narekawank junto ao lago Van, até o mosteiro ter sido destruído na lógica de destruição da memória que se seguiu ao genocídio de 1915.
Alguns desses cânticos ainda hoje se cantam naquelas espantosas igrejas milenares. Não sei se esta melodia tem 1000 anos, mas o texto, esse, é mesmo do século X.
Quando fizemos o filme ARtMENIANS entrevistámos o compositor Tigran Mansurian, que a dada altura disse que Komitas, o grande compositor da passagem do séc. XIX para o séc. XX, todos os dias se passeava em milénios de cultura musical arménia como quem passeia num jardim.
E se fosse só o Komitas... Em Yerevan, na praça Sarian, encontrámos um pintor que estava a vender pinturas nas quais inscrevia poemas de S. Gregório de Narek. Quase comprei um, e quase me arrependo de não ter comprado: os tons azuis do quadro, e a árvore cujas raízes eram um poema místico do século X que o pintor conhecia de cor. Contou-nos que tinha um quadro muito especial, que não vendia por dinheiro nenhum, que representava os versos daquele poeta que mais o tocavam. Pedi que o dissesse, e ele comoveu-se, começou, hesitou, recomeçou. Sabia o poema de cor, mas sentia-se tão avassalado que não o conseguia dizer.

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Só por curiosidade, partilho um link para um texto que encontrei sobre a evolução da música litúrigca arménia. O episódio passado no séc. VII é muito engraçado:
The next centuries were marked by an increase in feasts, the regulation of the rites and, consequently, the propagation of songs. Armenians did not yet intend to use parchment for music, but one day, in the 7th c., it became evident that the richness of the repertoire could cause a disaster. It was the Feast of Transfiguration. A crowd of clergymen who had come from different regions was gathered on this occasion and the Catholicos himself was present. Everything was normal until one of the choirs started singing the Patrum which belongs to a song series inspired by the prophet Azaria’s canticle. The other choir replied, with the same melody-type, but with a verse that belonged to another song, because the choristers didn’t know the first one. The two choirs exchanged eight verses, each belonging to a different song, composed in a different region. As a result, the Catholicos ordered that a selection of songs be made to be sung during offices and that every diocese in Armenia must use this selection.

01 julho 2015

ARtMENIANS no Golden Apricot em Yerevan



O documentário ARtMENIANS está no Festival Internacional de Cinema Golden Apricot, em Yerevan. Entrei na página do festival, e tive uma bela surpresa: o ARtMENIANS aparece logo a seguir ao Ararat do Egoyan. Antes de me virem com a história da formiga que dizia ao elefante "ena, pá! olha a poeira que estamos a levantar!", deixem-me dizer-vos que começo a acreditar que deve haver um fundo científico nas coincidências. Por exemplo: a aventura do filme ARtMENIANS começou comigo sentada na Kammermusiksaal de Berlim, a assistir ao ensaio geral para a estreia mundial do requiem do Tigran Mansurian. De repente, do nada, o filme Ararat, do Egoyan, começou a rodar na minha cabeça ao som daquela música. E agora, em Yerevan, é esse filme que aparece imediatamente antes do ARtMENIANS.

Sabem aquela história da florzinha, da sementinha, da abelhinha?
(Coitado do Egoyan, não sabe que é o meu Espírito Santo, digamos assim.) (Na realidade, este filme tem dois Espíritos Santos - talvez fosse boa ideia sugerir ao Papa Francisco nova encíclica: "os Espíritos que nos animam") (vou é acabar aqui mesmo o post e pôr-me a trabalhar, que já percebi que hoje os disparates vêm em modo chouriço, agarrados uns aos outros em série interminável.)

***

O ARtMENIANS passou ontem na RTP2. Uma pessoa liga o computador, descansada da vida, e tem o facebook cheio de mensagens de pessoas que se dão ao trabalho e ao tempo de dizer como se sentiram tocadas pelo filme. Uma pessoa desliga o facebook e vai trabalhar, feliz da vida. 


29 abril 2015

ARtMENIANS - debate sobre o filme (2)

Para continuar a conversa, transcrevo um comentário ao post anterior:

"Este filme levou-me a vários pensamentos.
Lembrei-me da preocupação de Ratzinger quanto à homogeneização e suas consequências. Afirmava ele que o que enriquecia a humanidade era precisamente a diversidade de culturas e não o contrário.
Impressionou-me o empenho do povo arménio na preservação da sua cultura. A consistência, a fidelidade. Perguntei-me quantos artistas abdicariam de uma carreira promissora para ficarem com os seus, porque são necessários aos seus. 
Chamou-me a atenção todos os pormenores a bem da memória: o escrever no livro, o livro que teve que ser rasgado por ser demasiado pesado, a menina que declama o poema de Charent ( e simultaneamente penso que a maior parte dos jovens não sabe o hino nacional), o memorial.
Não pude deixar de sorrir pela felicidade estampada no rosto daquela mulher que tem uma janela virada para o Monte Ararat e a esperança que não morre.
O director que sabe que a cultura é a coluna vertebral de um povo.
E como não poderia deixar de mencionar, a música de uma belíssima melodia. A melodia da peça de entrada, cujo nome infelizmente não fixei, cantada pelo coro, transmitia serenidade, assim como que um reencontro do homem com a sua essência. (Desculpe esta divagação!)
Disseram-me um dia: "Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música."
Está tudo dito."

Palavra puxa palavra, vamos por partes:

Homogeneização e diversidade: há um apontamento muito interessante no livro "The Armenians: From Kings and Priests to Merchants and Commissars", de Razmik Panossian (que é o director do Departamento das Comunidades Arménias na Fundação Gulbenkian), no qual ele refere que na família do seu avô, habitantes da Turquia em fins do séc. XIX, se falava cinco línguas. Depois do genocídio, houve um endurecimento e um empobrecimento cultural. A diversidade combinada com coexistência pacífica permite uma comunhão que é positiva para todos.

O exemplo do pintor Saryan, e também o do escritor Charents (que numa viagem a Itália convence um amigo, escritor arménio exilado, a ir viver para a Arménia, porque "o lugar dos escritores é junto do seu povo"), ou a de um grupo de músicos arménios que - na Moscovo soviética, numa época que luta contra as ideias nacionalistas - criam um quarteto que divulga a herança musical do seu povo, também me impressionaram: a Arte vivida como serviço.
Durante os anos do genocídio, e depois, durante o período soviético, o Saryan pintava flores, árvores floridas, e paisagens da cultura arménia para dar esperança ao seu povo e a coragem de resistir. Um dos seus quadros, pintado no período estalinista,  quase parecendo uma cena ingénua, é afinal uma grande provocação: uma aldeia, uma igreja com a porta aberta, e uma mulher a entrar nela.

(fonte)

Durante a II GM, quando o seu filho estava na frente de batalha onde morreram milhões de soldados soviéticos, pintou esta cena familiar, que tem no centro um damasco (o damasco, prunus armeniaca, é um dos símbolos dos arménios):


Outro quadro da mesma época, de um optimismo tal que chega a ser doloroso (1942, "Damasqueiro em flor"):



Sobre a música: a música inicial é do Requiem de Tigran Mansurian. Gostei muito do que Andrew Redmond, um dos cantores do coro, disse sobre este início do requiem: como se fosse o eco das vozes há muito extintas. E só depois começa o requiem "normal".
Aqui pode-se ouvir todo o requiem, gravado a partir da transmissão radiofónica da estreia mundial, em Berlim:



Uma das minhas passagens favoritas é a Lacrimosa (por volta de 23:00). O Tigran Mansurian disse que era a parte que lhe impunha mais respeito. Penso que passou a prova com distinção.

"Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música." - também gostei imenso do que o Jordi Savall disse sobre isso: ao tocar a música de um povo, de certo modo entra-se na alma e na História desse povo.

A propósito, o Tigran Mansurian refere em especial o Kyrie. Ele escreveu o Kyrie como uma dança aflitiva de um povo à volta do seu Deus. Um povo que vive permanentemente sob ocupação e é perseguido não canta "Senhor, tem piedade de nós" da mesma maneira que um povo que vive no seu território e em paz.

O que nos faz voltar aos livros medievais, e a um comentário da Meliné Pehlivanian, a senhora que nos apresentou alguns livros na biblioteca berlinense. Dizia ela que, ao ver o tamanho dos livros que há nos mosteiros medievais da Europa central, se deu conta da paz que havia nesta região. Aqueles livros enormes eram feitos para ficar onde estavam. Ninguém tinha de agarrar neles a correr e fugir para salvar a vida. Ao contrário dos livros arménios, feitos memória portátil.


28 abril 2015

ARtMENIANS - andar descalço


(fonte) (1)


Ainda a propósito da Cultura, havia uma passagem da entrevista da neta do Charents (o escritor que acabou por ser torturado e morto pelo estalinismo, porque não escrevia nos conformes), que também tivemos de deixar de fora (eu bem digo que o filme podia ter 5 horas), na qual ela contava que a família do Charents não tinha muito dinheiro. Apesar das dificuldades, ele estudava na universidade. Um dia o pai mandou-lhe dinheiro para comprar uns sapatos, e ele gastou-o em livros. O pai ralhou:
- Vais andar descalço!
- É melhor andar descalço nos pés que no cérebro, foi a resposta.


(1) Charents retratado por Saryan. Neste retrato, Saryan recupera uma das máscaras egípcias do quadro que pintou como reacção ao genocídio.

ARtMENIANS - debate sobre o filme



Tenho recebido mensagens de pessoas que manifestam vontade de falar sobre o filme. Na impossibilidade de nos juntarmos numa sala a conversar, fica aqui a proposta: podemos usar a caixa de comentários deste post.

Para começo de conversa, copio para aqui uns excertos do facebook, da Ivete Mora, que transcreveu parte da entrevista do director do Cafesjian Center for the Arts, quando respondia à pergunta "porquê investir em cultura num país com dificuldades económicas tão grandes?" A resposta dele:

"A cultura é como um espelho onde as pessoas se podem ver. É um reflexo.... E a cultura, que unifica todas as formas de arte, é uma forma de moldar as pessoas. E quando as pessoas percebem o poder desse instrumento, e querem fazer uma mudança, começam a investir nessa área, para que essa mudança possa acontecer"

E o comentário no facebook: "O desinvestimento é, claro, a outra face da moeda, com resultados opostos: é a lógica..."

É por aí: um país bem mais pobre que o nosso, com dificuldades bem maiores, mas que desde sempre percebeu que a Cultura é um bem essencial.


24 abril 2015

a equipa que produziu, realizou e bla bla bla [ARtMENIANS, estreia hoje na RTP2, por volta das onze da noite]


Já contei que o nome do documentário é uma criação da Ana Vieira. A Ana, que vale o seu peso em ouro - e podia pesar o dobro. Também é dela um momento extraordinário do filme, quando se fala das crianças orfãs, e do trauma que é herdado pelas gerações seguintes. Gostava muito de saber o que é que a Ana toma no café da manhã, que lhe permite continuar criativa, calma e bem disposta 24 horas mais tarde. Ou 36. Ou 48, que eu vi.

Podia contar muito sobre o Pedro Magano, mas fico-me apenas por dois apontamentos: o ar tão contente dele quando, no fim da nossa primeira viagem à Arménia, me dizia que tinha ali material de que o Ricardo ia gostar muito. E o que lhe custou a segunda viagem, o trabalho intenso durante mais de quatro semanas, as saudades da filhinha, que nessa altura tinha meia dúzia de meses.

O Pedro Ferreira, a sua enorme competência e a sua ainda maior paciência. Os seus olhos brilhantes ao passar-me com orgulho o filme já quase terminado, avisando-me que depois do tratamento de cor e de som aí é que ia ser. O seu entusiasmo - talvez lhe possa até chamar amor - por alguns momentos do filme, a alegria que nem a maratona da montagem conseguiu abafar. 

E o José Pedro Rosado (mais um Pedro! será que o Ricardo escolhe pelo nome as pessoas com quem trabalha?) que fez algumas animações extraordinárias. Que me faz sorrir com a sua animação para ilustrar o mito da origem dos arménios (digam vocês: que vos ocorreria como animação para um texto como o que se segue? "A arca da Noé pousou no monte Ararat, Noé e os seus filhos desceram para o vale e começaram a fazer o primeiro vinho do mundo. Noé falava com Deus na mesma língua em que falava com os seus filhos."), e que, depois de me aturar muitas variações de "este mapa mais assim, aquele mapa mais assado", fez uma animação que sintetiza muito bem as andanças de quase três mil anos de História dos arménios. 

A Elke Hartmann, a historiadora que nos ajudou imenso com os textos históricos e aparece várias vezes ao longo do filme. Ela fala, para além dos corriqueiros alemão, inglês e francês, o arménio, o árabe e o turco (e russo, se bem me lembro). Fala e escreve. Mostrava-me fotografias de comícios dos Jovens Turcos, "olha para isto, os cartazes dizem o mesmo, só que o dos turcos está escrito com letras árabes e o dos arménios está escrito em turco com letras arménias", e logo a seguir comentava a actualidade, falava-me do IS e dos primeiros salafitas, que começaram por ser uma espécie de Martinho Lutero no contexto muçulmano, e eu a ouvir, pensando que adoraria ser sua aluna. A Elke, com quem gravámos uma entrevista de quase duas horas, que nos deixou fascinados e ao mesmo tempo preocupados, sem saber o que cortar de todos aqueles tesouros. 

E, last because first, o Ricardo Espírito Santo. O ar emocionado com que me olhou em silêncio quando entrei na sala onde ele estava a ver pela primeira vez o filme completo.
O Ricardo, apanhado entre dois fogos terríveis: eu, e as Finanças.
Eu, que comecei a carburar demasiado tarde criando um stress terrível à equipa, eu que não conseguia cortar nada, e que dizia em tom tétrico "ai! despedaças-me o coração!" de cada vez que ele sugeria tirar uma ou outra coisa.
E as Finanças, que resolveram perseguir impiedosamente a Terra Líquida Filmes como se se tratasse de terríveis criminosos. Não sei como é que o Ricardo conseguiu a força para lutar tendo contra si a máquina poderosíssima e cega do Estado. Por trás do documentário sobre os arménios, que tentámos fazer o melhor que soubemos, há a história de um milagre de resistência quotidiana: um homem que encontra em si a força que lhe permite continuar a fazer o seu trabalho, aguentar a sua empresa viva e manter os empregos dos colaboradores, apesar de essa empresa estar a ser perseguida pelo Estado.


a cultura como estratégia de sobrevivência [ARtMENIANS, hoje, RTP2, por volta das onze da noite]



Quem inventou o nome ARtMENIANS foi a Ana Vieira, numa estrada em Nagorno-Karabakh. Andávamos há dias aflitos a tentar encontrar um nome realmente bom, a Gulbenkian pressionava para poder publicar os seus programas, eu hesitava. Quando ouvi ARtMENIANS pela primeira vez, também hesitei (ninguém sabe, mas o meu verdadeiro nome não é Helena, é Hesita Araújo). À segunda vez senti-me conquistada: é isso mesmo! Arte para designar cultura, e cultura como estratégia de sobrevivência.

Um dos elementos que mais me toca neste filme são os exemplos de intelectuais e artistas que se dão conta do seu poder para ajudar aquela gente profundamente traumatizada a reerguer-se de uma tragédia desta dimensão. Pessoas que decidem entregar o bem-estar, a carreira e - alguns - a própria vida ao serviço do seu povo. Durante a montagem do filme, chamámos-lhes "os resilientes". Entre outros, há o caso do pintor que, em vez de ir para França tornar-se um dos artistas mais famosos da sua época, fica na Arménia a pintar quadros de cores radiosas e cenas de resistência serena à ideologia soviética (se o filme pudesse ter cinco horas, incluía ainda o momento em que esse pintor, famosíssimo no espaço soviético, em vez de meter uma cunha para safar o filho na II GM decidiu mandá-lo para Estalinegrado, "porque era lá que se jogava o futuro do seu povo"). Há o caso do escritor que tinha uma mensagem para os arménios, e a disse, sabendo que lhe custaria a cabeça - como custou, literalmente (se o filme tivesse cinco horas também contaria das filhinhas dele, de 2 e 3 anos, perdidas na rua até que uns vizinhos repararam nelas, porque o pai foi levado para a cadeia e a tortura, e a mãe - pelo simples crime de ser casada com esse homem - foi levada para um campo de reeducação, onde ficou esquecida durante décadas. O charme discreto do estalinismo...). Mais recentemente, há o caso dos historiadores que, um século depois de a presença arménia ter sido apagada da Turquia, iniciam na internet um projecto de reinscrever os arménios na História e na Geografia da região que foi a sua durante milhares de anos.

Enquanto trabalhava no filme, sentia-me impressionada com o tanto que estes temas têm a ver connosco. Como, por exemplo, na entrevista ao director de um centro de arte moderna em Yerevan, lhe fiz uma pergunta provocatória: porquê gastar o dinheiro em arte, em vez de o gastar na economia de um país? A resposta dele deixou-me a sorrir, e com vontade de contar a toda a gente em Portugal e na nossa Europa de cega austeridade.

E também há aquela miúda de cinco ou seis anos, aquela miúda amorosa e séria, que numa rua de Berlim recita para nós um poema enorme de Charents:

Vá onde for, não esquecerei nossos cantos de lamento
nem os livros de antigas letras, em oração convertidos;

quanto mais fundo o sofrimento me ferir o coração

mais te amarei, Arménia órfã, queimada de sangue, Arménia minha.


Essa criança passa os seus domingos na escola arménia de Berlim, a aprender o alfabeto, a História e as canções do seu povo. Ela, como tantas outras pessoas que transportam para o futuro uma herança cultural pela qual se sentem responsáveis. 

E nós, portugueses e europeus? Que valores da nossa cultura queremos levar conscientemente para o futuro?  


23 abril 2015

simbolismos [ARtMENIANS: RTP2, 24.04, 23:25]




Se me deixassem mandar, o filme ARtMENIANS tinha pelo menos cinco horas.
Passei várias semanas a olhar para o material que tínhamos e a sentir-me o Ali Babá na caverna dos tesouros: para onde quer que olhasse, só encontrava preciosidades. O Ricardo deitava as mãos à cabeça, dizia que o filme não podia ser tão longo. Eu sentia-me angustiada: como escolher que jóias deixar de fora?

Um dos segmentos que acabámos por ter de cortar foi a descrição do modo como fazem o crisma na Santa Sé de Etchmiadzin, que depois é levado para as comunidades arménias em todo o mundo.

Esse óleo é feito com azeite puro e uma mistura de quarenta ingredientes (ervas aromáticas, flores, raízes, folhas, etc.) segundo uma antiquíssima receita. A mistura coze durante três dias num caldeirão selado. Seguidamente, é levado para o altar-mor da catedral, onde fica quarenta dias a receber as orações e os cânticos quotidianos. Na cerimónia da consagração, que só pode ser presidida pelo Catholicus, usa-se também a lança que trespassou Cristo e uma relíquia que vem do princípio do cristianismo na Arménia: a mão direita de São Gregório, o iluminador. Finalmente, junta-se ao óleo novo o que resta ainda do antigo, num gesto sempre repetido desde o primeiro crisma.  

No filme Ararat, de Atom Egoyan, há uma cena em que um rapaz descendente de arménios fala com um polícia sobre a História do seu povo, e se refere à batalha de Avarair, que foi em 451 d.C.
O polícia, americano, espanta-se:
- Isso foi há muito tempo.
- We go way back, responde o rapaz.

É isso. They go way back: o crisma usado nas comunidades arménias em todo o mundo é tocado pela lança que vem do princípio do cristianismo e pela mão do fundador da Igreja Apostólica Arménia, e tem os restos de todos os crismas da História da Igreja Arménia. Mais simbolismo que isto é difícil.
É difícil, mas é possível: esta cerimónia ocorre de sete em sete anos. No cristianismo, o sete representa a unidade plena entre o divino e o terreno - 3 + 4 = a Trindade e os quatro pontos cardeais. O óleo com que ungem os baptizados simboliza a união perfeita do céu, da terra e do tempo.


22 abril 2015

ARtMENIANS - RTP2, 24.04.2015



O ARtMENIANS passa amanhã na TV pública arménia, às 23:00, e no sábado às 17:25.
Disseram-me que em Portugal passa na RTP2 na sexta-feira, dia que marca o centenário do genocídio dos arménios, e constou-me que será antecedido de um debate sobre esse tema. Mas ainda não vi nada disso anunciado no programa online. É muito estranho - será o meu google está avariado?

[ ADENDA: entretanto, já está anunciado aqui. Amanhã, dia 24, às 23:25. ]

No outro extremo da Europa, a empresa de TV dobrou o filme e fez este trailer para o anunciar.

(Bem sei o que está no filme, até assisti às filmagens e tudo. Bem sei quem arranjámos para substituir a Angelina Jolie, que infelizmente não tinha tempo nessa altura porque andava a tratar do casamento. Mesmo assim, ver-me agora dentro de um filme anunciado em arménio é um bocadinho estranho. Quase me sinto como aquele miúdo ao sair do dentista: "is this real?")


02 dezembro 2014

Arménia minha.



Vá onde for, não esquecerei nossos cantos de lamento
nem os livros de antigas letras, em oração convertidos;

quanto mais fundo o sofrimento me ferir o coração

mais te amarei, Arménia órfã, queimada de sangue, Arménia minha.


Yegische Charents

A revisitar as fotografias da Arménia enquanto ouço o concerto para violino de Tchaikovski, os meus olhos encheram-se de água doce ao ver a fotografia desta miúda, que em Berlim recitou para nós um poema de amor e saudade escrito por Yegische Charents. 

Também deve ser culpa do Tchaikovski essa súbita tristeza, essa vontade de regressar a Nagorno-Karabakh e aos seus estendais, roupa lançada para o vazio como o próprio povo que lá vive.





...Mais te amarei, Arménia órfã, queimada de sangue, Arménia minha. 

 Olho para as fotografias, e vejo uma Arménia que me acolheu - e que acolhi com alegria.

***

Em Novembro começa a minha aflição de preparar o álbum de recordações do ano, memória da nossa família e presente de Natal para familiares e alguns amigos. É um caderno A4, com umas 30 páginas de imagens e texto. Em 2008 fiz o primeiro, e só lamento ter começado esta tradição tão tarde. Os filhos gostam imenso (quando foi para a Bolívia, a Christina levou consigo os álbuns de todos os anos), os amigos perguntam "então, como vamos aparecer este ano no livro da vossa vida?", os sobrinhos em Lisboa esperam-no cheios de curiosidade, como se fosse o presente mais apetecido. São muitos dias de trabalho intenso, atravessados pela doçura do regresso a muitos momentos felizes do ano e do prazer de me fazer cronista da nossa história. 
E assim vai a vida. 

16 outubro 2014

Luís Filipe Sarmento sobre o ARtMÉNIA

(Desculpem o momento de fraqueza que faz sucumbir a falsa modéstia, mas tem de ser. Nem é por mim, é mesmo só para efeitos de arquivo...)




«Arménia» de Ricardo Espírito Santo e Helena Araújo
Assisti, anteontem, ao documentário «Arménia» de Ricardo Espírito Santo (realização) e Helena Araújo (guião), projetado no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian.
Dizer simplesmente que se gosta de uma obra desta dimensão artística e humanista é curto. O Ricardo (de quem sou amigo) e a Helena (que não conheço pessoalmente) mostraram que o documentário é uma disciplina superior do cinema. Ao estabelecerem um protocolo de afetos abrem as portas da percepção do espectador a um admirável mundo antigo. Um universo de um povo esmagado por genocídios, quase aniquilado por todos aqueles que não acreditam que a História de uma nação é mais poderosa que um qualquer intento de apagá-la com sangue assassino. Mas também um universo que guarda em si a mais antiga tradição cristã com as suas crenças, com os seus rituais, com a sua magia. Diria que se trata de um encantamento da distância.
Documentário de texto. Um texto brilhante que transportou o espectador ao longo de 110 minutos por uma história que devia ser património da humanidade e não alvo da cobiça dos ignorantes. Um texto que faz história no documentarismo português, europeu, universal. Um texto que nos ensina a ler a paisagem com a cumplicidade de uma fotografia de excelência de Pedro Magano, a subtileza dos movimentos de câmara, o olhar poético de Ricardo Espírito Santo. Um texto que nos ensina a ver imagens.
«Arménia» não é só um excelente documentário, é uma peça rara no cinema europeu, uma obra de arte a preservar. Mas é também uma exigência aos seus criadores que o caminho mal começou e muito têm para nos oferecer.
Por último, quero destacar o mérito da produção (que não é fácil) e de toda a equipa de Terra Líquida pela paixão que depositaram neste sonho de fazer cinema, neste cinema que nos faz sonhar! A todos, o meu agradecimento, como espectador! LFS

relatório de actividades

Ao fim de mais de três semanas em Portugal, comecei a visitar as fotos da minha cozinha como se fosse uma miragem daquelas que só há na internet. Regresso no dia 20, dia 19 ainda vou trabalhar um bom bocado, e no entretanto gozo a vida, que também mereço.

Ontem fui com duas amigas ver Os Maias, a versão de 3 horas, no Cinema Ideal. No intervalo encontrámos o João Botelho à porta, que me apresentou aos amigos como "uma cineasta". Não há dúvida: gente grande é outra coisa. Até me lembrei de um dia em que, recém-licenciada, cumprimentei um antigo professor com um "olá, colega!", e ele respondeu "alto lá! a antiguidade é um posto!" Claro que era uma piadinha, mas graça por graça, prefiro o humor do João Botelho. O qual acrescentou logo a seguir: "mas eu estou interessado é no marido dela". Estão a planear umas aventuras noutro continente no próximo Verão, e eu em Berlim a fazer o Cinemagosto. Triste vida. A minha sorte é que Portugal tem um Presidente da República muito atento e actuante, pelo que o meu abnegado sacrifício em prol da cultura portuguesa será devidamente recompensado com uma medalhinha no próximo 10 de Junho. É desta!

E os Maias? Adorei o Ega, e gostei muito do Dâmaso, do avô, daquele asqueroso da Corneta (está bem, vou contar tudo: também estava no cinema, e conheci-o como pessoa tão simpática que só pode ser um excelente actor para poder compor tão bem aquele "chouricinho de pus"). Gostei deste olhar sobre o livro. Os cenários são uma invenção fenomenal (não há como os portugueses para fazerem omoletes sem ovos).

Já a Maria Eduarda, não sei que diga: eu imaginava-a mais ampla, mais roliça, muito mais sensual. Mais Nigella Lawson. Não me parece que as mocinhas de hoje em dia, esses paus de virar tripas, sejam uma boa escolha para encarnar os livros do Eça. É que trata-se de encarnar, e não de desossar. 

Em suma: quando o João Botelho resolver filmar a Tragédia da Rua das Flores, havia era de se lembrar de mim para o papel da Genoveva.

(Este é o momento em que o Ricardo Espírito Santo mete a cabeça nas mãos e diz "ó Helena, então e aquele plano que me obrigaste a tirar do ARtMÉNIA, porque estavas demasiado ampla, roliça e sensual? e então aquela conversa de sim, queremos contar a História dos Arménios mas não é preciso começar por esta vénus pré-histórica, heinhe?")

(la donna è mobile, é o que é)

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Que estranho, já escrevi um post inteiro e ainda não falei do tempo em Lisboa. Pois tem sido assim: todos os dias saio de guarda-chuva, e nunca chove. O meu guarda-chuva tem poderes mágicos. Pelo que seria boa ideia a Câmara de Lisboa pagar-me para passear todos os dias o guarda-chuva por aí - mesmo que me pagassem um salário do escalão "remediado" sempre lhes saía mais barato que limparem as sarjetas, soltarem as ribeiras, e tal.


15 outubro 2014

selfie interview




- Como foi a  reacção do público ao filme ARtMENIA?
- Das duas, uma: ou o Ricardo e eu temos muitos amigos, e todos excelentes, ou o ARtMENIA não nos saiu muito mal. As pessoas protestaram por não ter havido debate no final (e se eu estava preparada! até me penteei e tudo!), queriam saber onde é que o filme vai passar, queriam a banda sonora, queriam falar.

- E como é que se sente?
- Obviamente (estou a citar o meu sobrinho mais famoso deste blogue) muito feliz por o público se ter deixado tocar por este povo. Sinto que conseguimos traduzir para o filme algum do fascínio que nós próprios sentimos enquanto andávamos na fase da descoberta.
E sinto-me especialmente aliviada pela reacção de alguns dos arménios que viram o filme. É um risco enorme falar do país e da cultura dos outros, e durante estes dois anos a minha maior preocupação era ficar aquém daquilo que os arménios merecem.

- E qual foi o momento mais emocionante?
- Foram dois:  o final, com o Arto, quando eu me dei conta que desta vez ia conseguir ouvi-lo até ao fim sem largar uma única lagrimita, e depois, cá fora, quando uma arménia me quis agradecer e desatou a chorar. Parece que a equipa que fez este filme conseguiu entender e transmitir alguma coisa importante.



14 outubro 2014

making-of: a dura vida de um realizador

O filme ARtMENIA vai ser apresentado hoje, às nove da noite, na Gulbenkian, e já sinto saudades destes dias em que andámos a sonhar e a trabalhar duramente para concretizar os sonhos. A Terra Líquida Filmes tem uma equipa mais-ou-menos (eu ia dizer fabulosa e todos os superlativos que conheco, e todos ficariam aquém da realidade, mas depois iam lá uns espertalhöes roubar o pessoal ao Ricardo Espírito Santo (ao Ricardo Espírito Santo bom, acrescente-se, que nos tempos que correm certos nomes parecem armadilhados), e eu arranjava um sarilho. Portanto: jeitosinhos, jeitosinhos).
Foi um enorme prazer trabalhar com eles. 

Näo sei se eles diräo o mesmo. O Ricardo, por exemplo. Dizia-me "aqui falta uma frase", e eu respondia "espera pela minha próxima insónia matinal". Näo é bem insónia, é mais acordar cedo, mas nos tempos que correm é de bom tom dar uma cor de patologia a tudo o que foge ao normal, pelo que, portanto. Ia para casa, dormia, acordava, ficava deitada a pensar na frase, e zimbas. De caminho, comecei a achar que as anedotas dos alentejanos que trabalham deitados säo parvas. Mas uma frase por dia, convenhamos que já vi melhores produtividades. O Miguel Angelo, por exemplo, que também trabalhava deitado, se só conseguisse dar uma pincelada por dia ainda agora estava ali a pintar a capela Sistina. 

Em todo o caso, o Ricardo esperava pacientemente pelo dia seguite, e assim se foi fazendo o filme. Até que no dia seguinte ao filme ficar pronto eu anunciei cheia de entusiasmo que a insónia dessa manhä tinha dado a melhor ideia de todas: cozinheiras arménias a fazer um cozido à portuguesa. Na realidade  näo tinha sido insónia, tinha sido um belo sonho, as cozinheiras arménias muito sorridentes a arrumar nas travessas os bocados de carne com o desvelo daquele grupo de mulheres míticas da Cidade e as Serras. Mas o Ricardo acreditou que eu estava a falar a sério, e por uns momentos pensou como acomodar esta maluquice no filme. Depois percebi que ele estava prestes a dar-lhe uma coisa má, e apressei-me a desfazer o equívoco. Mas penso que nos próximos tempos melhor  será evitar mencionar a gastronomia portuguesa. Dura vida, a de um realizador. 

Só para dizer que  gostei muito de trabalhar com o Ricardo Espírito Santo, o bom, e toda a sua equipa. Sinto-me muito grata por esta experiencia. E prometo que, se me quiserem dar uma próxima vez, produzo duas frases por insónia e näo mencionarei nunca  o malfadado cozido à portuguesa.  

A näo ser que seja um documentário sobre a Maria de Lourdes Modesto.


09 outubro 2014

making-of: "mais te amarei, Arménia órfã, queimada de sangue, minha."


Esta miúda é uma delícia.
Nasceu na Arménia, agora vive em Berlim, e passa os domingos na escola arménia.
Recitou para nós um poema de Charents, "my sweet Armenia", um poema de amor à sua terra.

Aventuras de fazer um filme sobre os arménios: como traduzir um poema arménio para português, tirando a média ponderada, digamos assim, da tradução literal e mais umas cinco versões poéticas em línguas diferentes? Não sei se o Charents terá dado algumas voltas na sepultura (*), mas eu gostei de ter corrido este risco, e do resultado. O pessoal aqui da Terra Líquida Filmes é que deve pensar que sou um bocadinho maluca - eles a trabalhar a toda a brida, e eu parada, a olhar para o vazio, a murmurar fragmentos de frases.


**


(*) Pobre Charents, morto na prisão e enterrado em local desconhecido. Ao fim de muitas décadas encontraram ossadas do seu corpo com sinais de torturas brutais, e sem cabeça.
Na União Soviética estalinista, podia-se morrer de poesia e amor ao seu povo.  


06 outubro 2014

making-of: o dia em que fui entrevistar Orhan Pamuk



Ao saber que Orhan Pamuk vinha a Lisboa tivemos um ataque de "já agora" - apesar de o filme estar praticamente concluído, seria muito interessante acrescentar a perspectiva de um turco como este escritor sobre a necessidade do confronto com o passado, e a possibilidade da coexistência, num mesmo espaço geográfico, de povos com diferentes culturas, religiões e línguas.

À parte termos tido um acidente no caminho para a Gulbenkian, tudo correu tão bem que eu comecei a desconfiar que Deus, lá do seu assento etéreo, estava a mexer furiosamente os cordelinhos. De repente demos connosco a meia dúzia de metros do Orhan Pamuk, alguém se dirigia a ele para perguntar discretamente se estaria disposto a responder às nossas duas perguntas, o Pedro já o estava a filmar e eu - esta foi a parte em que Deus se distraiu um bocadinho - preparava-me para entrevistar um simpático cavalheiro bastante parecido com os turcos que eu conheço de Berlim, e que não era o Pamuk. Maldita memória visual, que só me envergonha, e malditas fotografias da net, que não avisam que este escritor é um belo pedaço de homem, alto e bem parecido.

Ele não quis. Abanou a cabeça, "no! no! no!"
Pensei nas dificuldades por que já passou por causa deste assunto, e compreendi. Tanto mais que nós aparecíamos do nada, sem lhe dar tempo para se preparar convenientemente. No lugar dele, teria feito o mesmo.

Em suma:
Alá 1, Jeová 0

(Ou Jeová 1, mas foi um daqueles golos que ele marca por balizas tortas: agora, ao ler os livros do Pamuk, vou ter uma motivação extra. Mais estética, digamos assim.)


12 agosto 2014

Ararat

Este músico, Arto Tuncboyaciyan, é uma pessoa extraordinária. Cresceu como arménio em Istambul, e a partir da experiência da condição de pária no seu próprio país encontrou um sentido para a sua vida.
Nos dias da Arménia, o seu "Ararat" foi-nos companhia fiel. Tão fiel como a montanha, sempre lá. 

Ararat-jan.
Arto-jan. 




(a canção "Ararat" começa por volta do segundo 35)

(Para quem está na Alemanha, e tem de aturar a GEMA, aqui vai, enquanto for possível: Ararat)



Ararat


You're beautiful, beautiful
You Ararat hey jane
Your sight is different
From Armenia's side
Your soul's smell comes to me
Here's to you
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
le-lou-lou-jan
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah ararat

Now I understand you
And what you mean for the Armenian
You are the basis of our soul
You are the King for us
I'm drinking for you
Here's to you
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
le-lou-lou-jan
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah ararat

Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name

It's five years I'm looking to you
From Armenia's side 
Every day you're different
Come and take me jan
I don't want to return
Here's to you
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
le-lou-lou-jan
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah ararat

That day has come
To separate with you
But I'm not separating with heart
And I promise to you
One day we'll stay together 
Here's to you
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
le-lou-lou-jan
Hey-li-lay-le-lou-lou-jan
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah
Ah Ararat ah ararat

Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name
Ararat, our nice Ararat
Ararat, my heart with your name