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10 outubro 2024

a revolta do homem branco

 



Traduzir livros pode ser um prazer enorme (olá, Kaminer!) e pode ser um exercício penoso de perscruta de abismos. Foi o caso deste: à procura da palavra certa, frase a frase, tive de andar demasiado por dentro da cabeça de tipos que odeiam mulheres em particular, e o nosso mundo em geral.
Foi difícil fazer este trabalho, mas valeu a pena: por estes dias, quando o Trump diz uma das suas bacoradas, não fico chocada nem perplexa. Agora conheço a cartilha, sei o que quer atingir com frases que parecem tresloucadas mas, na realidade, são de enorme precisão estratégica: truques para ganhar eleições.
Curiosamente, depois de entregar a tradução, ouvi a investigadora Teresa Toldy falar do mesmo fenómeno. A princípio, pensei "hey! como é que ela leu o livro que ainda não foi para o prelo?!" Depois, percebi que tinha acabado de publicar um extenso trabalho sobre as ligações entre religião, questões de género e populismo no espaço mediterrânico. Falava com enorme preocupação, e repetia muito: "garanto que não se trata de teorias da conspiração - isto é mesmo o que está a acontecer no nosso mundo!"
(E nem vou dizer nada sobre o capítulo que descreve a responsabilidade da Igreja Católica na criação do monstro imaginário que dá pelo nome de "ideologia de género", que tão útil tem sido a Bolsonaros, Melonis, Le Pens e quejandos. Mas quase morri de vergonha enquanto traduzia essa parte do livro.)
Em suma: não é uma leitura leve, mas é um livro essencial para entender o mundo em que vivemos. Dá-nos ferramentas para observar com o recuo de quem sabe quais são os mecanismos por detrás do que acontece e parece incompreensível.
E: sosseguem, porque ler não é tão doloroso como traduzir. Vocês conseguem! 🙂
Já está em pré-venda na Zigurate. A sinopse do site da editora fala do ataque ao Capitólio, e eu acrescento o que se segue, só porque fazia ontem cinco anos que aconteceu: no dia de Yom Kippur, um incel alemão da extrema-direita meteu-se no carro, rumo à sinagoga de Halle, para massacrar todos os judeus ali reunidos. Tinha uma câmara a transmitir para a internet, queria que o pessoal da sua comunidade visse o massacre no próprio momento em que estava a acontecer. Pelo caminho, foi a ouvir o hino de louvor a Alek Minassian, o incel canadiano que usou uma carrinha para matar pessoas em cima de um passeio.
A letra é assim:
Runnin' through these hoes like I'm Alek Minassian
Hoppin' in the whip and I'm motherfuckin' crashin' it
Up over the curb like I'm Alek Minassian
Hoes suck my dick while I run over pedestrians
Este episódio alerta-nos para algo que temos vindo a ignorar: quando um tipo branco comete um acto de enorme violência contra alvos aleatórios, a tendência é dizer que é uma pessoa com problemas psiquiátricos. O que é só uma parte da questão. A outra, que o caso de Halle revela, é que essas "pessoas com problemas psiquiátricos" estão interconectadas na darknet mundial, trocam ideias e ressentimentos, e sonham tornar-se super-heróis daquela comunidade.
(E agora, só para verem o que sofre uma tradutora, peguem na letra daquela linda canção e tentem traduzir para português. Partilhem nos comentários, e depois veremos qual é a melhor versão. Mas entrem nisso por vossa conta e risco: não pago a sessão de psi de ninguém, aviso já!)

12 setembro 2023

se não sabiam, ficam a saber

 

Agora que o Rubiales se foi (vá pela sombra, que...), regresso ao filme (aqui).

Vi-o várias vezes, e é isto que lá vejo:

Hermoso avança para Rubiales e estende-lhe a mão. Ele recusa cumprimentá-la assim, em vez disso agarra-se a ela num abraço e a seguir salta-lhe para cima. Ela dobra os joelhos para ele voltar ao chão, quer soltar-se, mas ele agarra-lhe na cabeça e pespega-lhe um beijo na boca.

Como interpretar as pancadas laterais que ela lhe dá a seguir? Não sei como é com os leitores deste blogue, mas não me lembro de alguma vez ter batido assim em alguém depois de trocarmos um beijo na boca consentido.

Note-se ainda o gesto de Hermoso ao avançar para a mulher ao lado: levanta o braço direito, para se abraçarem, em vez de ir com a mão baixa, como fizera com Rubiales, para um mero aperto de mão. Depois de abraçar a mulher, avança para os homens seguintes de novo com o braço baixo, para um aperto de mão. A sua linguagem corporal mostra claramente se quer abraçar ou apenas um aperto de mão.


Sim, depois disso elas riram-se no autocarro e estavam na galhofa com ele. Mas:

-Tinham acabado de vencer o mundial, tinham a adrenalina a mil, e provavelmente ninguém queria estragar a alegria daquele momento.

- Nós, mulheres, temos em cima do lombo milénios a sermos educadas para não levantar ondas, não incomodar os homens, não fazermos cenas que ponham os homens numa posição embaraçosa. Aquela selecção tem um longo historial de abuso de poder por parte dos homens, e de humilhações engolidas em seco para conseguirem atingir o objectivo delas, que é jogar futebol (repararam bem nesta frase? peço um minuto de silêncio pelo caminho de martírio que obrigaram estas mulheres a percorrer para poderem chegar a campeãs do mundo). Em nome de quê exigimos daquela jogadora, para mais no auge da festa, que ao ser vítima de (mais um) abuso tenha a presença de espírito para dar um empurrão ou um estaladão ao homem, em frente às câmaras de tv do mundo inteiro?


Finalmente: estamos de tal maneira condicionados para ver conspirações e manipulações em tudo, que já não conseguimos ver as coisas simplesmente como elas são. No caso, há dois factos incontornáveis:

- ela ia estender-lhe a mão, e ele forçou mais contacto físico;

- um superior não pode, em momento algum, forçar contacto físico com uma pessoa que lhe está subordinada. Se não sabiam até hoje, depois da demissão do Rubiales ficam a saber.


03 setembro 2023

um verdadeiro saque moral


Andava há vários dias com vontade de falar da tristeza e da revolta que sinto ao ver que Rubiales, esse bronco destravado (estou a inventar eufemismos), fez o que podia para se inscrever na vitória histórica da equipa feminina espanhola - pior: para se pôr acima dela.

Como é possível que, depois de esta equipa ter ganho o campeonato mundial, em vez de nos focarmos na conquista daquelas mulheres andemos a falar do homem, e da greve da fome da mãe do homem, e do homem como vítima... Alguma vez seria possível imaginar que após a conquista de um título mundial por uma equipa masculina, o debate público se centrasse no presidente e não nos jogadores?

Graça Castanheira escreve sobre este assunto no P2 de hoje. Vale muito a pena ler toda a descrição da luta destas mulheres para poderem fazer bem o seu trabalho, mais concretamente: para poderem trabalhar bem apesar dos entraves que os homens lhes põem no caminho pelo simples motivo de serem mulheres. A descrição desta luta é simultaneamente uma lista das humilhações a que estas mulheres têm sido sujeitas para poderem jogar. Destaco a passagem que se segue, que ecoa a revolta que, por estes dias, tenho sentido: "Quando o presidente da federação aparece fora de campo - e fora de si - a celebrar a vitória da equipa a que preside com o treinador, rouba alegria e protagonismo ao que as jogadoras fizeram dentro de campo, e isso nem sequer é só machismo: é um verdadeiro saque moral. Rubiales coloca uma jogadora ao ombro, como um troféu seu, toca nos genitais apontando para Vilda e, como se não bastasse, beija Hermoso na boca. Que vencer o tenha literalmente excitado, percebe-se; que tenha tentado converter a vitória num feito de dois homens, é só muitíssimo reprovável."

--- Interrompi a escrita deste post para ir trocar dois dedos de conversa com a dona das colmeias que temos no nosso jardim. Ela, alemã, estava na Austrália a assistir aos jogos deste campeonato. Após a vitória, achou estranho o modo como Rubiales abraçava cada jogadora. Perguntou-se se em Espanha isso seria normal.

No filme cujo link partilhei acima (este), notamos que nem para Hermoso isso é normal: começa por estender a mão a Rubiales. Mas ele agarra-se a ela, salta-lhe para cima e beija-a na boca. Quando ela queria apenas dar um aperto de mão. Ah, e já agora, para as pessoas que dizem "ai, pois é, mas no autocarro ia a rir-se": esperavam o quê? Acham mesmo que uma equipa (e uma pessoa) que acabou de conquistar o mundial e está com a adrenalina no máximo vai conseguir ter o recuo suficiente para tomar a reacção adequada? E qual é a reacção adequada? Será porventura - no momento da maior euforia e alegria por terem conquistado o mundial - armar escândalo, e trazer a questão do abuso para o centro, destruindo aquele momento único da equipa? Finalmente, a perfídia do argumento: condicionam as mulheres desde tenra idade para não incomodarem os homens, para os desculparem sempre, para não levantarem ondas; condicionam as mulheres desta equipa para que se submetam às regras e ao poder dos homens (veja-se o texto de Graça Castanheira); e no fim, se a mulher não consegue reagir imediatamente como entendem que deveria, criticam-na por não ter reagido imediatamente como entendem que deveria. Em que ficamos? Queriam mesmo que Hermoso lhe desse uma bofetada e um pontapé nos genitais ali no estádio, perante as câmaras de televisão de todo o mundo? É mesmo isso que querem? Sendo assim, tanto melhor: penso que, para muitas mulheres, estas novas regras do jogo seriam uma libertação e uma catarse. Portanto: não vai acontecer.




18 maio 2023

wikimannia

 


Na Alemanha, criaram uma enciclopédia online parecida com a Wikipedia, mas antifeminista. Como explica a versão espanhola, trata-se de uma "Contraposición humanista en la edad de misandria". Porque os homens que andam por aí com os tomates entaladitos precisam de espaços seguros na internet, só para eles. E assim, criaram uma página que resiste à "progressiva doutrinação feminista que grassa na internet" e lhes explica o mundo tal como lhes dava jeito que fosse, sem manipulações dos media que estão vendidos aos governos que estão vendidos aos gays, às cadelas e aos judeus (estou a tentar sintetizar a ideia). 

Movida por uma curiosidade mórbida, fui espreitar essa wikimannia. No topo da página de entrada da versão alemã há vários apelos. Exige-se que a base aérea norte-americana em Ramstein seja fechada. Fala-se do escândalo de haver "tanques alemães a rolar contra a Rússia pela primeira vez desde há 80 anos", afirma-se que "a explosão do Nord Stream foi um acto de guerra contra a Alemanha e a Rússia. A soberania alemã jaz agora no fundo do Mar Báltico". Exige-se o fim da organização terrorista NATO. Também anunciam uma manifestação "pela vida", em Berlim. 

Pensava eu que era um site para a tomatada precária, que sofre muito por causa da hegemonia das mulheres. E será, será... mas reconheço que as versões noutras línguas (inglês, espanhol, francês, etc.) disfarçam muito melhor o dedinho da Rússia por trás disto tudo. 


13 maio 2021

o início do caminho



(autora: Helô D'Angelo, https://www.instagram.com/helodangeloarte/ )


"Uma história de violência" é um texto da Fernanda Câncio sobre o machismo estrutural no qual vivemos - tanto homens como mulheres - enterrados até ao pescoço. Um texto fundamental para entendermos o que nos está a acontecer e o caminho que temos pela frente. Recomendo muito a leitura (está aqui).

Só não concordo com o final ("Como disse Mandela em relação ao apartheid, estivemos anos a bater educadamente à porta, e a porta não abriu. É a altura da raiva."), pelos seguintes motivos:

1. Não "estivemos": o "nós" ainda não existe. As mulheres discordam sobre imensos pontos fundamentais. Basta lembrar o debate sobre o assédio de rua, em 2015: tantas mulheres a defender o direito de os homens "fazerem elogios" (se bem me lembro, até na plataforma feminista Capazes se ouviram vozes dessas), a dizer "mulher séria não tem ouvidos" ou "e não tens mãos para lhe dar uma bofetada?" Lembrar ainda a reacção de tantas mulheres portuguesas em defesa do Cristiano Ronaldo quando a revista Spiegel revelou o que ele terá feito numa noite em Las Vegas.

2. Além de não existir um "nós", não temos batido à porta. A maior parte das mulheres em Portugal tem vivido isto sozinha e em silêncio. Em vez de bater à porta, retira-se. Exceptuando uma ou outra que escolhe reagir quando é assediada (algumas vezes com terríveis consequências para ela) e, tanto quanto me lembre, algumas vozes na altura do debate sobre o piropo.

3. "É a altura da raiva" - se nos queremos libertar do machismo estrutural que vive comodamente instalado entre nós, penso que a raiva é o pior dos caminhos.

Em minha opinião, este não é o tempo da raiva, mas o de contarmos as nossas histórias. E de as contarmos sem nomes, porque o importante é darmo-nos conta dos mecanismos, em vez de nos perdermos em guerrilhas pessoais. A propósito: tem-me custado imenso assistir à mud fight que resulta das denúncias nominais. Na ânsia de proteger o acusado concreto, atiram a acusadora para o esterco - e por arrasto as outras mulheres, porque se repete e reforça no espaço público o tradicional chavão "o que tu queres sei eu, sua puta".

Este é o tempo de encontrarmos forma de abrir os olhos que estão cegos ao machismo estrutural. Tantos homens andam entre nós convencidos de serem pessoas muito decentes, mas riem de piadas como "esta até devia agradecer se lhe concedessem um piropo" ou fazem perguntas a familiares adolescentes sobre a sua vida sexual (para dar apenas dois exemplos corriqueiros); tantas mulheres que assistem a isto e se riem com eles.

Este é o tempo de sair da solidão com que cada uma de nós tem vivido estas situações, e criar finalmente um "nós" que exija a mudança estrutural. Um "nós" que tem de envolver homens e mulheres: só conseguiremos melhorar a situação se trabalharmos em conjunto para ganhar a empatia dos homens e das tantas mulheres para as quais isto não é problema. Temos também de conseguir sensibilizar as empresas e as instituições (a começar pela escola, pela polícia, pelos tribunais e pelas Igrejas) para a sua responsabilidade na mudança.


(Penso que a raiva é o pior caminho para este movimento, mas concedo-me o meu direito à raiva contra pessoas concretas: continuo a desejar uma morte muito longa e muito dolorosa a todos os cabrões que me segredaram indecências ou me tocaram na mão quando eu ia a caminho da escola. E só por respeitinho ao algoritmo e aos psis que andam por aqui à solta é que não digo o que desejo ao tarado que me tentou violar aos 11 anos, e apalpava a minha irmã de 6 anos quando "a ajudava" para ela ir buscar a roupa que caía do nosso estendal no pátio do café onde ele passava os dias. Revelo apenas que espero que o inferno exista, e que os seus demónios me ouçam.)



ecce mulier

 

Partilho um texto da Isabel Castro Silva, que está no seu mural do facebook. O testemunho mais pungente e certeiro que li nos últimos tempos.

Isto tem de acabar: o assédio na escola, o assédio na rua, o assédio no trabalho, o assédio na família.



#metoo

"Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Aconteceu vezes incontáveis tanto na escola como na rua. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Na altura surpreendeu-me e humilhou-me muito que não só as bestas mas também os rapazes que eram simpáticos e que gostavam de mim de um momento para o outro me apalpassem. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”.
É costume desvalorizar este tipo de assédio. Na verdade creio que nunca ouvi chamar-lhe assédio sexual, mas é disso que se trata. E penso que é na escola que os rapazes aprendem desta forma a pôr as raparigas no lugar subordinado, impotente e ao serviço dos homens que a sociedade lhes reserva. E que as raparigas aprendem que não podem contar com a ajuda de ninguém para combater este assédio e que por isso só lhes resta aprender a sobreviver-lhe o melhor possível. Por esta razão, é urgente acabar com a ideia de que esta forma de assédio é apenas uma brincadeira de rapazes com as hormonas aos saltos ou com o cérebro frito em testosterona.
Na rua comecei a ter homens de meia-idade ou mais velhos a perseguirem-me, muitas vezes à luz do dia e com gente por perto, tal não é o sentimento de impunidade, enquanto me descreviam detalhadamente o que para eles era uma fantasia pornográfica e para mim um potencial cenário de violação. Também aconteceu em autocarros cheios, onde aproveitavam para se roçarem contra mim ou para se sentarem ao meu lado e me porem a mão nas pernas e onde todos os passageiros que se apercebiam da situação, ao ver-me aflita a mudar de um sítio para o outro, fingiam que não viam nada. Passar por homens das obras também passou a ser um suplício. Foi assim a partir dos treze anos que passei a viver com o medo de ser violada. Não que esse medo surja de cada vez que saio à rua, longe disso. Mas basta estar sozinha à noite e ouvir passos atrás de mim a aproximar-se e ele está lá. Basta perceber que um homem de ar estranho e dúbio me está a seguir com o olhar e ele está lá. Basta estar na cama com um homem que ainda conheço mal e que tem uma reacção brusca ou inesperada e ele está lá. Não conheço nenhum medo dos homens que seja equivalente a este, e no entanto é um medo que todas as mulheres têm. E já só esta diferença, já só que os homens não tenham de viver com um medo crónico que condiciona tantas coisas, desde a roupa que se veste às horas a que se sai de casa e aos sítios que se frequenta, já só isso mostra que estamos longe de viver em igualdade.
Tinha dezasseis anos quando certo dia fui ler para as arcadas dos prédios da Av. Estados Unidos da América, enquanto fazia horas para ir para a escola de música que então frequentava. Apareceram 3 rapazes, mais velhos do que eu mas não muito mais, talvez entre os 17 e os 19. Assaltaram-me e eu dei o dinheiro sem oferecer resistência (600 escudos). Mas depois disso não se foram embora. Fizeram-me perguntas como se estivessem a fazer conversa mas sempre com um tom agressivo. A certa altura, quando já tinham começado a tocar-me, pedi ao mais velho (ou pelo menos mais alto), que parecia estar ali com relutância, se já me podia ir embora. O rapaz mais baixo e com uma cara daninha ficou talvez despeitado, disse que o outro não era o chefe e, talvez para me mostrar que quem mandava era ele, agarrou-me por trás, prendendo os meus braços com os dele, que fechou à volta da minha cintura, deixando-me imobilizada. Depois começou a fazer movimentos sexuais. O terceiro rapaz, à minha frente, a rir-se, levantou-me a camisola e fez menção de desabotoar o botão das minhas calças de ganga. Foi só nesse momento, com o zumbido agudo do perigo nos ouvidos, que consegui reagir. Dei um pontapé no peito do que estava à minha frente, o que estava por trás desequilibrou-se, abriu os braços soltando-me e eu larguei a fugir. Se tivesse sido violada nesse dia, teria perdido assim a virgindade.
Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não.
Já teria 26 ou 27 anos quando um dia, a caminho do metro, sou seguida durante dez minutos por um homem de ar nojento a dizer-me as coisas mais ordinárias, que ora se aproximava muito de mim até quase roçar a boca na minha nuca ora deixava que eu ganhasse distância quando estugava o passo, como um gato a brincar com um rato. Era de dia, umas quantas pessoas caminhavam no mesmo passeio. Quando entrei no metro ele não me seguiu. No dia seguinte, mal saio de casa, ele estava junto à porta e começou a seguir-me e a dizer o que faria comigo. De início fiquei em pânico, porque agora ele sabia onde eu morava, mas passados talvez cinquenta metros o que eu sentia era uma enorme raiva. E num pequeno largo cheio de gente desatei aos berros com ele, chamei-lhe de monte de esterco para baixo; com o indicador da mão direita quase colado ao nariz dele disse-lhe que lhe partia a cara se ele não se pusesse a andar. Ele continuou a balbuciar qualquer coisa, que eu pensei ser nova ordinarice, e já estava a levar a mão atrás para lhe assentar um soco quando percebi que o que ele estava a dizer era: Desculpe, desculpe. E foi-se embora. E nunca mais me perseguiu, ainda que tenhamos voltado a cruzar-nos porque vivíamos no mesmo bairro.
Foi então que percebi que o principal móbil destes homens é muito simplesmente a impunidade. A mais perfeita impunidade. Daí atacarem à luz do dia, com pessoas a passar e até em transportes sobrelotados. E percebi também que, quando uma mulher os ataca de volta, ficam tão siderados que nem têm capacidade de reacção. Desde então, e muitos anos depois de ter começado a ser assediada, comecei a gritar-lhes e a ameaçá-los sistematicamente, por uma questão de princípio, não apenas por mim - pois quando comecei a responder também deixei de ter tanto medo e de me sentir tão impotente - mas por todas as adolescentes e jovens mulheres que são o alvo mais frequente e que são menos capazes de se defenderem do que uma mulher adulta.
Tenho agora 43 anos e continuo a ser assediada. No ano passado, estava eu grávida e um dos meus cães tinha fugido, por isso eu ia muitas vezes à janela ver se o via passar. Numa dessas vezes reparo que do outro lado da rua, frente à porta do prédio, estava um homem a observar-me e a masturbar-se. Gritei-lhe, insultei-o, ameacei-o e ele foi-se embora e nunca mais o voltei a ver.
A última vez que fui assediada estava a dar de mamar num banco público perto da MAC e um homem de 20 e poucos anos ficou a olhar para o meu peito embasbacado. Perguntei-lhe qual era o problema dele. Disse que estava maldisposto e foi deitar-se de barriga para baixo no banco ao lado do meu e não despegou os olhos de mim. Desta vez não gritei nem o enxotei porque não queria assustar a bebé. Quando o meu namorado chegou, a “indisposição” passou-lhe como por magia e ele foi-se imediatamente embora.
Agora a minha bebé tem 5 meses, e quando penso que daqui a 11, 12 anos também a minha bebé, a minha luminosa bebé, será carne para canhão, mais uma menina, jovem, mulher a viver com o medo perene de ser violada, sinto uma revolta maior do que consigo dizer.
BASTA.
É já tempo de as mulheres todas se juntarem e lutarem contra isto. É já tempo de os homens que nunca se aperceberam desta enorme cultura de assédio e impunidade saírem finalmente da bolha onde têm vivido. É já tempo de os homens pararem de ser coniventes com situações de assédio a que assistem ou de que ouvem os amigos a gabar-se.
E é já tempo de os homens que assediam terem medo.
Na foto sou eu aos 13 anos, a idade com que comecei a ser assediada."


28 maio 2018

o museu do piropo




O piropo já tem um museu.
Boas notícias: os curadores não estavam a pensar em termos de protecção do património cultural.
Más notícias: é um museu fictício. 


27 novembro 2017

o abraço como forma de abuso


A propósito deste artigo no Expresso (de onde tirei a fotografia), sobre o fundador da Pixar, John Lasseter, ter metido um semestre sabático para repensar o seu comportamento, devido a ter-se começado a falar do seu hábito de abraçar a despropósito e a desprimor depois do segundo ou terceiro copito nas festas da empresa, alguém disse no facebook que já estamos a viver em distopia.

É um comentário curioso, porque em distopia já nós vivemos há séculos. Só que era no outro extremo desta questão - as suas vítimas eram outras, e sofriam em silêncio.

Os comentários nesse post eram muito semelhantes aos que defendem o piropo: que exagero / então agora já não se pode elogiar? / quem se sentir assediado que se defenda / daqui a nada proíbem tudo.

O meu contributo para esse debate:

Começo por um detalhe que me incomoda muito, e surgiu nesse conjunto de comentários: a sugestão de que as mulheres se devem defender do assédio com violência físi
ca. Reclamo para mim o direito a andar no espaço público sem ter de me defender com estaladas ou pontapés nos tomates. O caminho é em direcção a uma sociedade civilizada, e não ao far west.

E há uma questão de fundo que muitos dos comentadores parecia estarem a esquecer: a situação que temos tido até agora é degradante e indigna. Os abusadores agem com um sentimento de segurança que advém do silêncio da vítima. Este silêncio das vítimas torna-as inexistentes, permite à sociedade viver na ilusão de que tudo está bem, e leva muitos a reagir automaticamente a favor dos assediadores, porque nem se dão conta do que estes têm andado a fazer.
Quanto à defesa do abraço propriamente dito: convém não confundir as coisas. Há muitos tipos de abraço - o único permitido (e desejável) é aquele que não vai além do que a relação entre as pessoas justifica. (Desculpem estar aqui a dizer lapalissadas.)


Pergunto a quem está tão preocupado com a, digamos assim, “criminalização do abraço”: sendo certo que a fronteira entre um e outro é pouco nítida, entre ter um abraço a menos e ter um apalpão a mais, o que preferem? Preferem que uma pessoa só abrace se tiver a certeza de que esse contacto é bem-vindo, ou que, por sistema, seja a pessoa abraçada quem tem de gastar tempo e nervos a pensar se aquele abraço desagradável terá sido "normal" ou abuso, e como é que devia ter reagido?
Penso que é positivo ser claro para todos que um contacto físico desagradável pode ter consequências para quem passou os limites, e é muito positivo que o ónus esteja do lado que quem passa os limites, e não da sua vítima.

Concordo que de momento está a haver exageros de sentido contrário, e até que há algo de anacrónico nesta onda de repúdio, porque se baseia nos valores de hoje, mas incide também em muitos casos de assédio que ocorreram num tempo em que esse comportamento era considerado, quando muito, “delito de cavalheiro” (não sei se a expressão existe em português; neste contexto, em que os poderosos estavam habituados a abusar impunemente, acho-a muito apropriada). No entanto, mesmo com todos os exageros e relativas injustiças, parece-me fundamental denunciar, alertar e debater, e que se torne muito claro que, a partir de hoje, a sociedade não admite e não perdoa este comportamento.

No caso do artigo do Expresso, de que só li a parte que o jornal deixa aberta a todos: parece ser um caso em que o próprio reconhece que abraçou de forma abusadora. O barulho à volta dele pode até ser exagerado e injusto, mas o facto de se falar tanto disto abre a porta para que, quando alguém for abraçado de uma forma que sinta como desagradável, possa olhar o outro nos olhos com segurança, e perguntar: "que merda é esta?!" Depois da vaga actual de crítica e repúdio, a outra pessoa entenderá, e saberá os riscos que corre se continuar a insistir nesse comportamento. E sem esta vaga - às vezes exagerada - de repúdio, quem abusa podia continuar a rir-se e a virar o bico ao prego, envergonhando quem se queixa. Que é o que tem acontecido até agora.

Quanto aos temores sobre o plano inclinado em direcção ao puritanismo exacerbado, ou algo do género: concordo que neste momento estamos a passar do oito ao oitenta, mas esse oitenta é necessário para que estabelecer na cabecinha de toda a gente que os apalpões sub-reptícios não são admissíveis, e para que as/os apalpadas/os saibam que têm o direito de protestar e de envergonhar quem os pratica, em vez de engolir em seco e fazer de conta que não aconteceu. Uma vez conseguida esta plataforma de novas regras do jogo, podemos começar a falar do plano inclinado. Se for caso disso. 

 
O que não podemos permitir é a situação que tínhamos até agora em que os abusadores faziam impunemente os que lhes apetecia (e mais que impunemente: pensando que é essa a ordem natural das coisas - vide Trump a explicar em tom gabarolas que quando se é famoso/poderoso se pode grab them by the pussy), e em que a pessoa assediada tem de comer e calar, porque se falar é ela quem fica mal.


01 abril 2016

a carruagem para mulheres que afinal era doze lugares reservados perto da cabine do pessoal de bordo


A notícia em português diz que a empresa Mitteldeutsche Regiobahn vai criar duas carruagens para mulheres, para incentivar um ambiente mais seguro para todos os viajantes do sexo feminino.

Em alemão (Freie Welt, Süddeutsche, Freie Presse, MDR Sachsen, Die Freie Welt, Spiegel) leio que:

- A pedido de algumas mulheres, essa empresa vai reservar em cada comboio da ligação Leipzig-Chemnitz dois compartimentos (de seis lugares cada) perto da cabine do pessoal de bordo, para mulheres que viajam sozinhas ou com crianças.
- Na ligação Leipzig-Chemintz a companhia ainda usa carruagens da antiga RDA, divididas em inúmeros compartimentos que são espaços pequenos, fechados e com pouca visibilidade. À noite os corredores são bastante escuros, e ao entrar no compartimento é preciso procurar o interruptor de luz para a acender. Cada comboio tem quatro carruagens deste tipo, e ainda uma quinta, aberta e de construção mais moderna, que é sempre a primeira a encher. É compreensível que as mulheres se sintam inseguras: ao contrário do que se passa nas carruagens abertas, as hipóteses de saídas de emergência são muito reduzidas, e ninguém vê o que se passa dentro dos compartimentos.
- A companhia oferece este serviço para reforçar o sentimento de segurança das mulheres, mas insiste que a medida não tem nada a ver com os incidentes na passagem de ano em Colónia.
- A medida não é inédita. Na Suíça houve um projecto-piloto há 15 anos que, por falta de procura, foi substituído por outro sistema de segurança. Na República Checa houve uma associação de pais (homens) que protestou contra este regulamento semelhante ao apartheid. Na Grã-Bretanha debate-se uma sugestão semelhante do trabalhista Jeremy Corbyn, e há quem a critique por "poder ser sentida como ofensiva, humilhante e embaraçosa tanto por homens como por mulheres". Esta possibilidade já é posta em prática em diversos países (Japão, México, Indonésia, Egipto, Brasil, etc.). Nos comboios nocturnos, há muito que a Deutsche Bahn oferece compartimentos de cama só para mulheres.
- Há um estudo da Middlesex University sobre a segurança das mulheres nos transportes públicos que condena este tipo de solução, considerando-o um retrocesso. (O estudo parece-me muito bom: podem ler aqui. A parte relativa aos compartimentos só para mulheres começa na página 43.)

A medida deu azo a um enorme debate:
-- O Freie Welt pergunta: se se criam lugares especiais para mulheres, apesar da importância que damos à igualdade de género, o que se pode dizer da necessidade de segurança de outros grupos? Lugares especiais para pessoas com ar de estrangeiro (talvez separados por etnias inimigas), para homossexuais, para pessoas da extrema-direita e para pessoas da extrema-esquerda, por religiões? A lista de conflitos possíveis é infindável. A questão é: queremos responder a necessidades pontuais, ou discutir sobre os valores da nossa sociedade, e a melhor maneira de os proteger?
-- Os Verdes da Saxónia (o Estado onde esse comboio circula) não vêem mal nenhum nesta medida: as mulheres não são obrigadas a usar os lugares reservados; se não houver procura, pode-se desistir desta oferta. Os Linke têm oposição contrária. Um deputado deste partido afirma que já não estamos na Idade Média, nem no princípio do século passado, e pergunta se devemos esperar que se siga uma separação por género das salas de espera, das lojas e das piscinas. Enviou ao governo da Saxónia um pedido para se pronunciar sobre estas medidas, e também para dar informações sobre os ataques nos comboios e nas estações.
-- Frauke Petry, da AfD, afirma que a separação entre homens e mulheres é um retrocesso, e que o Estado tem de garantir a segurança das pessoas. "Mas a política está a falhar cada vez mais. Para melhorar esta situação, é preciso fazer mudanças urgentes na Polícia e na Justiça."
-- As redes sociais e as caixas de comentários dos sites informativos estão cheias de comentários sobre a ameaça islâmica, a invasão dos costumes islâmicos, as nossas mulheres terem de se sujeitar à sharia, os refugiados serem uns ingratos que não respeitam os nossos costumes, etc. - A medida, que não tem nada a ver com a chamada "ameaça islâmica", está a ser usada para alimentar a xenofobia e a islamofobia. Curiosamente, no Estado de Sachsen só 2,2% da população são emigrantes, e desses, os grupos maiores são vietnamitas e russos (ao contrário dos turcos, no total da Alemanha).

No twitter há um novo hashtag, #ImZugPassiert (acontece no comboio), no qual as mulheres contam incidentes em viagens ferroviárias. Certas reacções de alguns homens mostram a tendência para ignorar que o sexismo é parte normal do quotidiano das mulheres na Alemanha. Em reacção à incredulidade e ao gozo, há quem comente que as mulheres só são levadas a sério quando o atacante é um refugiado.
Alguns relatos (imaginem-se as cenas num cubículo de seis lugares, com uma porta pesada que fecha automaticamente, e sem ninguém a passar no corredor):
"Quando tinha 15 anos, um homem pôs-se a apalpar os genitais por cima das calças e a olhar fixamente para mim"
"Um homem não me deixou em paz durante toda a viagem, saiu na mesma estação que eu, e tentou seguir-me até casa"
"Homens que se sentam reclinados e se masturbam à minha frente. Já me aconteceu várias vezes."
"Viajo com duas meninas de 13 anos. Está calor, ambas têm vestidos curtos. Um homem que passa no corredor mete o telemóvel dentro do compartimento e fotografa por baixo das saias"
"Um grupo de homens está a importunar-me. Peço ajuda ao revisor e ele, com uma piscadela de olhos, diz-lhes: 'rapazes, agora portem-se bem com esta senhora' "
" Homens sentados à frente de uma mulher com um bebé conversam sobre as suas fantasias de violação."
"Um homem apalpa-me, eu protesto em voz alta, as pessoas à minha volta olham para mim fixamente."

O estudo da Middlesex University sintetiza desta forma:

Sexual harassment and assault on public transport1 is an international daily occurrence. The behaviours involved may range from the relatively mild to the very serious. These include, but are not confined to, lewd comments, catcalls, ogling/leering, innuendos, sexual invitations, threats, displaying pornography, staring, being followed or photographed, masturbation, frotteurism, unwanted sexual touching, and rape. 
Specific public transport contexts may facilitate such activity. The environment is hard to control, being open to anyone, yet simultaneously predictable in terms of passengers, who are sedentary, unable to exit safely or quickly, and often unguarded. Overcrowding and isolation are also key features that may enable sexual offending. For example, crowded, enclosed rush hour conditions, may facilitate rubbing against a woman on an underground carriage. Conversely, women may be more vulnerable when public transport is largely deserted or stations are isolated.
(...)
Perhaps the most fundamental behavioural effect of experiencing unwanted sexual behaviours is the impact upon mobility. Such experiences, or the fear of them, may make women feel that they have to adopt self-protection strategies, such as altering what they wear, or positioning themselves in certain ways, such as leaning against walls so that nobody is behind them. Some women have also reported putting bags between themselves and other passengers, adopting ‘deadpan’ expressions, avoiding eye contact, travelling with a male companion, and/or travelling in groups. If acutely afraid of travelling on public transport women may simply not do so or may restrict themselves to times when they feel safer. Others may seek alternative, less convenient or more expensive ways to travel such as taxis or personal means of transportation instead. However women in areas of low income or high deprivation, or in countries with a wide income disparity, often do not have access to cars and are likely to become ‘transit captive’ if their options are restricted.


Nas redes sociais portuguesas também houve muita discussão. Infelizmente, foi muito condicionada pelo erro da notícia (não são "duas carruagens para as mulheres"), e revelou a impossibilidade de combinar a luta por uma situação ideal com a necessidade de resolver hoje um problema concreto. Concordo que é preciso educação cívica, muito trabalho nas escolas, campanhas de sensibilização, medidas de empowerment das mulheres, e coragem civil. Mas enquanto isso não é posto em prática e começa a dar abundantes frutos, há que dar algum recurso de segurança a uma mulher que viaja sozinha num comboio de compartimentos pequenos, fechados, e com péssima visibilidade.

Compreendo até certo ponto os argumentos contra esta medida. Até certo ponto:

- Uma medida que menoriza as mulheres, e reforça os preconceitos de género.
Pior menorização das mulheres é recusar-lhes o apoio que pedem para poderem andar com segurança em certos comboios. Mesmo correndo o risco de "reforçar preconceitos", não se pode ignorar a existência da violência de género.

- Uma ofensa para os homens.
É verdade. Para não melindrar os homens, devemos recusar às mulheres a possibilidade de terem acesso a lugares onde se podem proteger melhor da violência de género?

- Vamos agora criar lugares reservados para proteger os negros dos ataques de skinheads e os refugiados dos ataques de neonazis?
Melhor seria perguntar às potenciais vítimas. Na Saxónia, o Estado onde circulam estes comboios, há um problema gravíssimo de xenofobia e racismo. Devemos deixar os refugiados entregues à sua sorte, em nome de um ideal de não discriminação que está muito longe de ser realidade? Lembro uma amiga, responsável por um centro de refugiados, que levou os miúdos do centro para um campo de férias. No regresso, de comboio, um par de neonazis insultou e ameaçou as crianças e destruiu os seus pertences. Quanto não daria a responsável para poder viajar num compartimento que oferecesse mais segurança àquelas crianças?

- Esta medida é um atentado à igualdade de género.
Pois é. Mas favorece a equidade: permite às mulheres viajar sozinhas em transportes públicos, em vez de escolherem entre ficar em casa, andar de carro/táxi, ou correr o risco de uma experiência desagradável e traumatizante.

- Áreas reservadas a mulheres é um sinal de que o mundo é dos homens, e que as mulheres se devem confinar à área reservada para elas.
Boa questão, sem dúvida. Mas haver, num comboio para várias centenas de pessoas 12 lugares reservados a mulheres não é ainda um caso de apartheid.

- Se uma mulher não se sentar no lugar reservado para ela está a sinalizar que não se importa de ser alvo de abuso por parte dos homens.
Não vejo os homens como um bando de tarados à espera da primeira desculpa para me saltar para cima. Pode ser que me engane, hehehe, mas parto do princípio que a maior parte dos homens que anda nos transportes públicos são pessoas decentes, que nunca se lembrariam de usar tal argumento para me faltar ao respeito. Os que seriam capazes de recorrer a esse argumento são os que já têm uma predisposição para o abuso - e nesse caso, ainda bem que há os tais lugares onde eles não podem incomodar as mulheres.

- E porque não chamar a polícia e prender o abusador na paragem seguinte?
Pode ser, claro, mas lembra-me logo os argumentos dos adversários da criminalização do piropo: e a polícia está disponível para isso? e como é que provas? e vais incomodar o sistema de justiça por tão pouco?

- Lugares reservados a mulheres podem conter em parte os ataques sexistas nas viagens de comboio, mas não resolvem o problema de fundo.
A solução está muito longe de ser a ideal, mas enquanto a violência de género nos espaços públicos for uma realidade, e enquanto não se arranjar uma solução melhor, há que dar uma resposta concreta aos problemas concretos das mulheres que hoje querem andar naqueles comboios.


18 janeiro 2016

"faça de conta que não ouve"




(foto de uma notícia sobre acusações de xenofobia no SZ e na revista Focus, devido a estas imagens)


A informação de que o piropo (melhor dizendo: a importunação com propostas de teor sexual) já pode dar pena de prisão provocou uma onda de protestos, que iam desde "até parece que em Portugal não há problemas mais urgentes e importantes para resolver" até "não vamos começar a legislar sobre tudo e mais um par de botas! isso é totalitarismo!", passando por "como é que vão conseguir fazer prova disso em tribunal?" - sendo o debate acompanhado pelo baixo contínuo da atitude expressa pela frase lapidar: "mulher honesta não tem ouvidos".

Portanto: se um homem disser a outro, na rua, "seu gatuno! se te apanho a jeito, nem a alma se te aproveita!", o interpelado pode ir fazer queixa à polícia, pôr um processo por difamação, e eventualmente até pedir protecção policial. Mas se um homem disser a uma mulher, na rua, "sua boazona! se te apanho a jeito, dou-te três sem tirar!", é disparatado ir-se queixar à polícia. Não dá para provar seja o que for, os tribunais têm mais que fazer que perder tempo com ninharias, e toda a gente sabe que uma mulher honesta não tem ouvidos, aliás: ninguém a mandou ir por aquela rua, e muito menos vestida daquela maneira, quando sabia muito bem que tipo de homens costuma andar por ali.

No debate sobre a criminalização do piropo surge repetidamente a afirmação de que não há ligação nenhuma entre o "piropo" e a violência sexual física, e que o "piropo", mesmo se ordinário, é inócuo. Deixando de lado o facto de que não é isso que muitas mulheres relatam (muitas vezes o "piropo" vem acompanhado por um apalpão), gostava que me explicassem então porque é que um dos atacantes de Colónia se deu ao trabalho de traduzir "piropos" para a língua das vítimas, e gostava que me ajudassem a interpretar esta gracinha publicada no facebook por alguém que se diz humorista:




A nossa cultura habituou-se a bagatelizar o assédio de rua, culpabilizou a vítima (se fosse honesta, não tinha ouvidos; se fosse prudente - na roupa que veste, nas ruas que frequenta, nas horas a que anda sozinha na rua - não tinha que ouvir), e deixou cada mulher isolada num limbo de silêncio. Pelo que as mulheres se habituaram, elas próprias, a não chatear. Aprendem desde o início da puberdade a fazer de conta que não ouviram, a atravessar para o outro passeio, a evitar certas ruas, a "manter um braço de distância". Automaticamente, e em silêncio.

Penso que este acordo tácito social para bagatelizar o problema do assédio teve um papel muito importante nos acontecimentos em Colónia. A polícia não se terá apercebido do que estava a acontecer, porque apalpões a mulheres em eventos deste género são, digamos, azares que acontecem, mas não são algo com que os agentes da autoridade tenham de se preocupar. Lá está: ninguém as mandou ir para o meio de desconhecidos, já se sabe que há sempre algum que se aproveita, agora escusam de se armar em histéricas e hipersensíveis, afinal foi só um apalpão, claro que é desagradável, mas convenhamos que ninguém lhes tirou um bocado. Como respondeu um polícia a duas jovens que lhe foram pedir ajuda nessa noite, nessa praça, depois de terem sido atacadas por um grupo de cinco homens que as apalpou como quis, se riu dos pedidos de ajuda delas, e a seguir lhes tentou roubar um telemóvel: "não podemos fazer nada - acautelem os vossos objectos de valor".

No dia seguinte, no relatório policial sobre os acontecimentos da passagem de ano, dizia-se que tinha corrido com relativa normalidade. Acredito que a polícia não estaria a esconder os factos - estava simplesmente a fazer o que a sociedade acha normal: ignorar o que acontece às mulheres. Porquê sobressaltar-se com uma dúzia de queixas de mulheres que alegadamente teriam sido alvo de homens que as trataram sem respeito?

As próprias mulheres demoraram alguns dias a entender o que lhes aconteceu, e a dar-se conta de que, desta vez (!), tinham o direito de se queixar. Só isso explica que as queixas tenham entrado a conta-gotas. Até ao dia 4 de Janeiro ainda só havia 15 queixas por violência sexual; duas semanas depois dos incidentes, o número de queixas por violência sexual já ia em 330 (num total de 650 queixas, e 739 vítimas).

Perguntarão: então as mulheres não perceberam logo no dia 31 de Dezembro que foram apalpadas?
Essa parte não tem dúvida. Mas foi preciso terem sentido, por parte da sociedade, uma enorme onda de empatia, para terem a certeza de que desta vez seriam olhadas como vítima, e não como culpada, ou como histérica.

De certo modo foi uma sorte os atacantes serem árabes ou do norte de África: ao estilizar-se na cabeça de todos a imagem de mãos pretas em corpos femininos brancos, o crime em si desenhou-se com clareza, sem se deixar turvar pelo reflexo de tolerar os nossos hábitos culturais e de proteger os nossos homens. Neste caso, a xenofobia jogou a favor da causa das mulheres, porque ao ser cometido pelo "outro", pelo bárbaro indesejado, deu ao crime concreto uma visibilidade imune a qualquer máscara ou desculpa.



Também os gritos que da rua se ergueram para expulsar esses criminosos jogam a favor das mulheres. Para serem expulsos, têm de ser acusados de um crime grave. Pelo que o assédio de rua passará a ser considerado crime grave, seja cometido por "um desses energúmenos" ou por um dos "nossos". Se temos motivo para ficar muito incomodados por um refugiado árabe/muçulmano ter consigo um papel onde escreveu a tradução para a nossa língua de frases como "mamas grandes" e "quero-te foder", temos de ficar igualmente incomodados quando essas frases brotam da boquinha de um compatriota nosso. Não há como penalizar duramente no caso de uns, e tolerar no caso dos outros.

A polícia aprendeu depressa. Na semana passada, prenderam dois paquistaneses que andavam a abraçar mulheres junto à Porta de Brandeburgo, em Berlim. Os media também aprenderam depressa: em vez de passar em silêncio, essa notícia vinha na primeira página do suplemento regional do meu diário berlinense. Se há algo de positivo nos acontecimentos de Colónia, na passagem de ano, é este novo olhar, atento e crítico, ao assédio verbal e físico na rua. A sociedade já não faz de conta que não vê.

Por seu turno, as feministas alemãs lançaram nova campanha. Chama-se #ausnahmslos, ("sem excepção" - aqui, em inglês) e está a ser muito bem recebida pela sociedade alemã.

Os tempos estão a mudar. Nunca mais se vai poder dizer a uma mulher "faça de conta que não ouve".


14 janeiro 2016

o que é nacional é bom

(fonte: Frankfurter Rundschau: autocolantes deixados junto a um centro de refugiados na região de Frankfurt)


A mistura de medo, preconceito e arrogância cultural que a Maria João Marques exibe neste texto de opinião faz dela uma candidata ideal a chefe de propaganda do Pegida. Se quisesse, tinha carreira garantida entre os nacionalistas alemães, lá isso tinha. É certo que corria o risco de começar a ser discretamente vigiada pelo BND, mas convenhamos que até era uma linha positiva no currículo que ela gostaria de exibir: "sob vigilância da polícia de um Estado que está a dar cabo de si próprio com essas manias esquerdistas de ser politicamente correcto e mais amigo dos outros que do seu próprio povo".

Só não convinha defender com tanto afinco a banalização do piropo. Por aqui, o pessoal (mesmo no seu potencial empregador, o Pegida) está muito chocado com os ataques a mulheres indefesas na rua, e o papel que um dos atacantes de Colónia tinha consigo, com a tradução do árabe para alemão de galanteios como "mamas grandes" e "quero-te foder", não ajudou muito à causa do piropo. Nem mesmo se for um piropo proferido por um português, o qual - como os entusiásticos apoiantes deste tipo de texto da Maria João Marques sabem muito bem - pertence a uma raça de qualidade superior.

Às vezes dá jeito sair do plano ideológico e fazer uma pequena incursão na realidade. Para quem se interessar sobre a vida real, há aqui um relato do que acontece num centro católico berlinense que oferece formação a mulheres refugiadas.

Há dias contaram-me uma história muito curiosa, que se passou em Berlim: uma portuguesa loira ia a passar em frente a umas obras, quando ouviu um piropo dito em português. Pensaria o homem que podia dizer o que lhe apetece, já que a loira seria com certeza alemã e não entenderia nada, mas a vida correu-lhe mal. Em vez de avançar, por não ter percebido nada, ou de se encolher e atravessar para o outro lado da rua, por ter percebido bem demais, a portuguesa estacou, olhou para ele, e disse: "Olhem-me este trolhinha a mandar piropos! Cresce e amadurece, homem, que neste país isso não se usa."

Eis uma boa razão para os países nos quais o respeito pela mulher é um valor fundamental abrirem as portas a pessoas de culturas que oprimem a mulher: na Alemanha, uma portuguesa sentiu-se suficientemente forte para meter um piropeiro na ordem. Já em Portugal, alguém que levante a voz contra o assédio verbal de rua é atacada, até por outras mulheres.

Ataques por parte de outras mulheres, como faz na sua crónica a Maria João Marques que, curiosamente, padece do problema que tão bem explica: está formatada por uma cultura que tolera comportamentos de desrespeito da mulher, mas pensa que é assim mesmo que deve ser. Contudo, talvez haja esperança para o seu caso: se a Alemanha não se deixar influenciar por opiniões da linha ideológica do seu texto, ou seja, se não fechar as fronteiras a estrangeiros alegadamente pré-condicionados pela sua cultura de energúmenos, e se ela, ao vir para cá, em vez de se juntar ao Pegida estiver aberta para aprender neste país alguns valores básicos do Ocidente Cristão, talvez possa algum dia perceber tudo o que há de profundamente errado no texto que escreveu.

Para ser justa, convém notar que em Portugal também haveria muito quem lhe explicasse isso. De facto, sinto-me feliz por poder afirmar que há muito mundo em Portugal para além da Maria João Marques, e que os portugueses não são todos iguais a ela e ao seu luso Pegida. Pelo que seria realmente trágico se o centro da Europa tomasse a parte pelo todo, e fechasse as fronteiras a todos os portugueses, só porque entre eles há um grupo de considerável dimensão que não tem o menor pudor em trazer para o espaço público um discurso de xenofobia, de intolerância religiosa e de bagatelização do assédio verbal na rua.

--

Quatro detalhes à margem:

1. Gostei muito desta passagem: "E a propósito, esta forma que os muçulmanos têm de olhar para as mulheres como gado, mesmo quando não dizem nada, é muito mais agressiva do que qualquer piropo, ordinários incluídos, que tenha ouvido por cá."
Até parece que nas ruas portuguesas não há homens a olhar para as mulheres como se elas fossem gado. Até parece que esse olhar de devassa não está directamente ligado aos piropos, nem é o que geralmente os precede. E o que mais espanta é a ingenuidade da afirmação de que o olhar de um português permanece puro e respeitoso mesmo quando o seu piropo é ordinário.
Mais uma vez, concluo que a mim só me saem é duques. Como aquele desconhecido que em Lisboa, no verão passado, me fitou de rosto congestionado e olhos quase fora das órbitas, enquanto lambia lascivamente os beiços. Na altura tive pena de não lhe ter perguntado a religião, mas a Maria João Marques já me esclareceu: só pode ser muçulmano.

2. A parte da crónica sobre as feministas silenciarem os ataques de Colónia para protegerem os estrangeiros é pura desonestidade intelectual. Ninguém pode fazer uma afirmação dessas em relação às feministas alemãs depois de ter lido os textos que eu traduzi. E eu sei que a Maria João Marques os leu, porque até os criticou em público. Entretanto também se podia informar um pouco sobre a campanha #ausnahmslos. (Significa: sem excepções, e critica toda a violência sexual, venha de onde vier. O que só prova que as feministas alemãs estão cada vez mais loucas: agora até têm o desplante de não responder ao retrato que a Maria João Marques quer fazer delas.)

3. A frase "Só agora se viu a necessidade de informar refugiados das regras de conduta europeias entre os sexos ou alargar possibilidade de deportação de criminosos" denota tal ignorância que nem sei por onde começar a informar sobre a realidade trágica deste êxodo (só na Alemanha foi mais de um milhão em menos de um ano), do esgotamento dos serviços responsáveis por identificar e registar quem chega e dar meios para subsistirem enquanto esperam, da impossibilidade de deportar seja quem for por muito grande que seja o crime, do intenso e generoso trabalho de integração levado a cabo por inúmeros grupos de voluntários. Mas talvez não valha a pena dar informações sobre a realidade a quem precisa muito de acreditar que o mundo é tal e qual como o vê, para poder continuar a escrever textos inflamados.  

4. Finalmente, sugiro um momento de silêncio para apreciar esta frase em todo o seu esplendor: "Claro que nem todos os muçulmanos são energúmenos."


11 janeiro 2016

"mamas grandes"

Mais um artigo do Spiegel (era bom que viesse rapidamente um novo escândalo, mas desta vez passado em Portugal, para eu não atrasar mais a minha vida real com tantas traduções...)




(fonte: Spiegel)

O artigo começa assim:

Trata-se de uma folha de papel pequena e amarrotada, que se tornou um símbolo da crua violência sexual e da misoginia. Nele pode ler-se "quero foder", "mamas grandes" e "quero-te morta beijar". A seguir, as frases correspondentes em árabe. O papel foi encontrado ao deter Issam D., um jovem marroquino, e outro suspeito, na quinta-feira passada, perto da Estação Central de Colónia.

O canal Spiegel TV falou com esse suspeito, que vive num centro de refugiados perto de Colónia. Além do papel, os investigadores também encontraram, num telemóvel em sua posse, vídeos com cenas dos ataques às mulheres na noite da passagem de ano. Ela terá apenas 16 anos, e diz que encontrou o papel no chão. Também diz que nessa noite nem sequer estava em Colónia, e que às dez da noite já estava a dormir a sono solto. É verdade que os vídeos estavam no telemóvel que ele trazia consigo, mas o aparelho nem sequer é dele. "Eu não faço dessas coisas", diz.
A polícia já o conhece há algum tempo. A primeira vez foi em Julho de 2015, como carteirista. Outro refugiado residente nesse centro relatou que o Issam D. e os seus amigos são desagradavelmente conhecidos no centro por beberem, fumarem, tomarem drogas e não quererem ir para a escola.
Issam D. faz parte de um grupo de mais de 20 homens do norte de África que a polícia está a investigar devido ao que aconteceu em Colónia na passagem de ano.

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E agora vou mudar de assunto: "mamas grandes", "quero-te beijar" e "quero-te foder" (está tudo naquela folhinha) são alguns dos galanteios com que as mulheres são mimadas por desconhecidos nas ruas portuguesas. Para o Spiegel, isto é sinal da "crua violência sexual e da misoginia". 

- Oh, pá, Spiegel, por amor de Deus! "Mamas grandes"?! Isso é motivo para escândalo?! Só significa que os homens têm olhos para ver as maravilhas da Criação. E qual é o problema de se querer foder uma mulher bonita? Afinal de contas, os homens são como são, e esse impulso natural inscreve-se no instinto de preservação da espécie. Além disso, mulher honesta não tem ouvidos. Vá, juízo nessa cabecinha, e vamos tratar de problemas mais importantes e urgentes que estas tentativas um pouco desajeitadas de flirt.

Fica a informação para os portugueses que acham que o piropo é um elemento da nossa cultura que deve ser preservado, quiçá inscrito no património da UNESCO: para a sociedade alemã, este tipo de frases é um sinal de violência sexual e de misoginia. Portanto, peço aos portugueses residentes na Alemanha que tenham cuidado com esses impulsos culturais, porque do comportamento de alguns de vocês depende ficarmos todos com má fama. E não me apetecia nada ter de ir para uma manif de repúdio com um cartaz a pedir desculpa pelo comportamento dos meus compatriotas e a tentar provar que nós, os portugueses, não somos todos assim.

Bem sei que as minhas orações e os meus pensamentos deviam estar com as mulheres brancas que foram vítimas dessas hordas de bárbaros de pele escura, e que devia estar a fazer petições para fechar as fronteiras e expulsar toda essa gente para fora da Europa, em nome da segurança das nossas mulheres e da defesa do Ocidente cristão, nomeadamente dos seus valores (isto é puro cinismo, não façam uma leitura literal), mas não resisto a fazer mais um comentário: em Portugal há muito boa gente, inclusivamente mulheres (bom dia, Marias Ann Coulter, está tudo bem aí na coutada dos bons costumes?), que diz que as pessoas que querem criminalizar o piropo são histéricas feias, esganiçadas e/ou mal fodidas. 


07 outubro 2015

"manteiga"

"Manteiga" era a palavra de ontem na enciclopédia divertida do facebook onde ultimamente tenho andado a gastar o tempo que tenho e que não tenho.

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Que pena a palavra mágica já não ser manteiga. Queria ter escrito ontem, mas a vida real meteu-se-me de permeio, e ao fim do dia já estava demasiado cansada para vir cá contar daquela vez que comi cinco pães com manteiga ao lanche, e a empregada me proibiu de comer mais um que seja, mas eu estava com fome e estava-me a saber tão bem, e além disso já tinha acontecido o 25 de Abril e não havia motivo para ter respeitinho pela autoridade, pelo que comi o sexto, e ela ficou tão furiosa que atirou o meu copo de leite pela cozinha fora (muitos anos depois uma psicóloga havia de explicar ao meu filho "quando os teus pais fazem coisas que te parecem patetas, é porque não sabem como lidar com aquela situação" - e eu vi o olhar dele a iluminar-se, finalmente o mundo fazia sentido, e podia continuar a gostar dos pais). Ui, a nossa empregada era uma mulher, ui!, daquelas cuidado com ela. Eu tinha 11 anos, e todas as semanas tinha de limpar as janelas da casa inteira. Em compensação, os rapazes tinham uma vidinha descansada. A minha irmã, aos 7 anos, era conhecida no talho porque pedia assim: "queria 1 kg de carne de estufar mas não me engane senão a minha empregada bate-me". Trazia a carne para casa, e ia limpar as casas de banho. Um dia era preciso falarmos muito a sério desta violência quotidiana contra as crianças, que provavelmente fez parte da história de nós todos. Ou quase todos.

Mas queria falar de manteiga, e dos scones dos Cinco a sair do forno, barrados com manteiga. Lá em casa descobrimos a receita de scones no livro do Pantagruel, e aos sábados e domingos, quando o pão se acabava (pudera, com gente a comer cinco e seis pães num lanche só...) era o que fazíamos. Adaptávamos a receita aos ingredientes que havia em casa, variava sempre. Talvez por isso tenha agora a mania de açambarcar, para que nunca me faltem em casa os ingredientes para todas as receitas do Pantagruel. O Joachim protesta: "achas que a guerra começa amanhã?", mas o meu inconsciente lá sabe como se arranjar com os traumas de não ter ovos para fazer uns scones ao domingo à tarde. Os nossos scones ficavam como pedras, mas quentes e barrados com manteiga (quando a havia), hummmm. Além disso, a fome é boa cozinheira, como dizem os alemães. Muitos anos mais tarde, convidei uma amiga para um brunch, e fiz esses scones. Depois ela convidou-me para um lanche, e fê-los à maneira dela, fofos como bicos de pato (ui, don't get me started on bicos de pato!). Comi-os com muito prazer e alguma vergonha, lembrando o ar discreto dela enquanto ia roendo os da minha infância. Já tenho um teste infalível para ver se os amigos são bons: observar a cara que fazem ao comer os meus scones.

Mas pronto, a palavra de hoje já não é manteiga, pelo que nem conto isso, nem falo de short bread, nem de fudge, nem deixo aqui uma receita de brownies que tem tanto de manteiga como de chocolate. Ainda anteontem fui dar desses brownies aos trolhas de uma obra aqui perto, nem queiram saber porquê, e eles agradeceram muito. Eu também lhes agradeço muito poder passar pela obra e cumprimentarmo-nos mutuamente como pessoas civilizadas, mas a palavra de hoje não é piropo.


05 outubro 2015

a República ultrajada




Usando a linguagem que os machos ibéricos compreendem: para a RTP, a República portuguesa não merece o respeito devido a uma mãe, uma filha, uma irmã. Então está bem.

Usando a linguagem que as pessoas civilizadas compreendem: para a RTP, a dignidade da República portuguesa não é inviolável. Pelo contrário, qualquer rufia de meia tigela em qualquer esquina pode reduzi-la a um objecto passível de posse e manipulação. Então está bem.

Pensando melhor, talvez isto seja um aviso ao estado da nossa Democracia. Mas confesso que é preciso pensar muito para atingir o sarcasmo...

(Já agora, alguém me explica porque motivo é que o Presidente da República não assiste às comemorações oficiais? Foi operado de urgência a um tumor galopante, ou quê?)

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Adenda, devido ao facto de terem retirado o vídeo: era um spot sobre o dia da República, com uma voz masculina a mandar piropos à imagem da República, "acreditas em amor à primeira vista, ou tenho de passar aqui outra vez?", "se cair já tenho aonde me agarrar", e coisas assim. Depois vinha  uma frase sobre a República estar velhinha mas ainda boa para as curvas (não me lembro da frase exacta) e terminava com um gajo a mandar uma assobiadela à estátua.

Segunda adenda: há aqui uma cópia do vídeo.
Deixo a transcrição:
"- Acreditas em amor à primeira vista, ou tenho de passar aqui outra vez?
- Os teus pais devem ser piratas. És cá um tesouro..."
- Ó anjo, doeu-te muito quando caíste do céu?
- Se cair, já sei onde me agarrar!

Apesar dos seus 105 anos, a República continua muuuiiito bem conservada.
Transmissão das comemorações oficiais da implantação da República, hoje de manhã na RTP1.

Fiuuu, fiuuuuu!"

05 novembro 2014

a diferença entre comunicação e assédio verbal



A propósito deste vídeo, que uma actriz de Nova Iorque pôs na net, mostrando o modo como é assediada na rua, e dos comentários do género «desde quando é que "bom dia" é assédio?», a Luna explica a diferença:


Eu explico

Uma das grandes confusões generalizadas à cerca da questão do "piropo" passa pela dificuldade em distinguir cortesia de assédio. De como uma simples e inocente interacção pode ser compreendida de um modo ou outro, de como um simples "bom dia" pode ser tanto uma coisa ou outra dependendo da forma como é dito. A distinção é simples, e mesmo sem a racionalizarmos, sabemos reconhecê-la. E ela está entre falar com alguém ou falar para alguém. Falar com alguém implica uma intenção de comunicação de igual para igual, de olhos nos olhos, com o outro. Alguém que numa paragem de autocarro ou consultório de dentista nos olhe e se nos dirija dizendo "olá" ou "bom dia", é completamente diferente de nos arremessarem as mesmas palavras gritando enquanto passamos na rua já de costas voltadas, onde não estão a falar connosco, estão a falar para nós sem pretender estabelecer comunicação, com o tom de ambas completamente distinto. Num caso vê-se o outro como alguém com quem nos podemos relacionar civilizadamente enquanto pessoas, no outro há objectivização e desrespeito pela vontade própria e individualidade, porque não se lhe dá escolha. E é nesta subtileza que reside toda a diferença.