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14 maio 2020

Santa Corona


Hesito em fazer esta revelação bombástica, porque temo as consequências que possa ter nas cabecinhas do pessoal que gosta de se sentir inteligente juntando alhos e bugalhos para fazer uma teoria da conspiração, mas como essas teorias raramente recorrem a factos para sequer começarem a germinar, cá vai:

Hoje é o dia de Santa Corona: padroeira do dinheiro, dos talhantes e dos caçadores de tesouros.

A jovem Corona, de 16 anos, seria uma cristã da Síria ou do Egipto, que em finais do século II foi vítima das perseguições aos cristãos. A tragédia começou com o soldado romano Vítor de Siena que estava em Alexandria, onde foi torturado por ser cristão. Corona (que não se sabe se era casada com ele ou com um colega dele) encorajou-o e consolou-o - de maneira tão aberta que também ela foi presa, interrogada, e condenada a morrer de uma forma horrível: agarraram-na a duas palmeiras dobradas, e quando as soltaram ela foi esquartejada. Nesse momento caíram do céu duas coroas - mas a história é omissa quanto à explicação do fenómeno de duas moedas do norte da Europa caírem no Egipto muitos séculos antes de terem sido criadas.

Também não sei como é que as relíquias de Santa Corona chegaram à Europa, mas a verdade é que cá chegaram, e a fama da santa se estabeleceu firmemente na Baviera, em Bremen e em Aachen - em cuja catedral o imperador Carlos Magno depositou as respectivas relíquias.

Em algumas aldeias alemãs que tinham Santa Corona como padroeira acreditava-se que ela protegia das epidemias no gado. Mas só mesmo a vontade de fazer notícias clickbait e a confusão cada vez mais corrente entre animais e seres humanos transformaram recentemente a Santa Corona em protectora das epidemias. Nada de ilusões: a padroeira que nos protege das epidemias é a Santa Vacina, mártir da seita dos Anti-vax.

Agora que falei dos factos, aproveito e vou já adiantando o trabalhinho do pessoal que gosta de apimentar o seu quotidiano com teorias da conspiração:

Reparem bem nas coincidências: a síria Santa Corona é a padroeira do dinheiro, dos talhantes (lá está: os que estavam a vender carne no mercado de Wuhan), e dos caçadores de tesouros. E é muito venerada na Alemanha. Não vos cheira a esturro? Será que a actual pandemia é uma estratégia dos alemães para ganhar dinheiro? Tudo indica que sim! E isso explicaria também porque é que na Alemanha há muito menos vítimas de covid... Será que os refugiados sírios (ou egípcios) trouxeram o vírus para a Alemanha, e o venderam à Merkel para ela dominar o mundo? Será que Merkel abriu as fronteiras aos sírios, em 2015, em troca do vírus? Tudo indica que sim, não sejam lorpas. E suspeito de mais ainda: provavelmente esperou até Obama já não ser presidente para largar esta arma biológica contra o Trump. Será? Tudo indica que sim. E também há aquele pormenor das duas coroas (as moedas nórdicas) que caíram do céu quando a santa morreu: será que a Dinamarca está envolvida nesta tramóia? Ou será que as tais coroas que caíram não eram moedas, mas autênticas coroas, e a culpa disto tudo é dos tradutores? Quem sabe, quem sabe?... Mas que dá que pensar, lá isso...

Portanto: partilhem este post antes que seja apagado pelo politicamente correcto da internet!


13 fevereiro 2020

faça-se então um desenho (1)



Julius Streicher, editor do semanário ferozmente anti-semita "Der Stürmer", publicou em 1938 o livro infantil "Der Giftpilz"/"O Cogumelo Venenoso". Este livro, muito lido nas escolas do III Reich, representava os judeus como pessoas fisicamente muito diferentes dos "arianos" e moralmente inferiores. As ilustrações eram do caricaturista mais importante daquele semanário anti-semita: Fips, pseudónimo de Philipp Rupprecht. A imagem que se vê acima ilustra o capítulo "como reconhecer um judeu": uma criança aponta as características do "corpo judeu", nomeadamente o "nariz curvo na ponta, fazendo lembrar um 6".
 
(Mais informações sobre o livro: aqui e aqui - o segundo link remete para um arquivo onde se encontram as traduções para inglês dos textos do editor Julius Streicher.)


Fips/Philipp Rupprecht não inventou este "corpo judeu" a partir do nada, antes aprofundou o estereótipo que viera a desenvolver-se ao longo de sete séculos. Segundo a medievalista Sara Lipton, no livro "What's in a nose?", „for many centuries Jews were indistinguishable in appearance from non-Jewish figures in western Christian art.” A alteração no modo de os representar, em desenhos religiosos de finais do séc. XIII, não terá tido a intenção de identificar os judeus como um grupo com características físicas diferentes, mas de chamar a atenção para a sua atitude junto ao Cristo agonizante na cruz „ostentatiously blind to Christ’s beauty and indifferent to Christ’s suffering, as bestial or evil“. O desenho de perfil, desviando o olhar da cruz, sublinhava o desprezo que lhes era atribuído. O nariz de tamanho exagerado não pretendia descrever uma diferença de fisionomia, mas simplesmente marcar as personagens malignas daquela cena. „The hook-nosed, pointy-bearded Jewish caricature was born“, e (ainda segundo Sara Lipton) a repetição da representação distorcida treinou nas pessoas a predisposição para ver uma diferença física nos judeus: „Viewers came to be trained to ‚see‘ significance in the noses of Jews.“

Na Alemanha do século XIX, durante o processo de emancipação dos judeus e consequente abandono dos sinais exteriores de diferenciação (como vestuário, corte de cabelo, etc.), a representação do "corpo judeu" com traços diferentes tornou-se ainda mais exagerada, com o objectivo de criar uma separação entre esse grupo e a restante população. O fosso escorava-se agora em factores biológicos imutáveis, no qual o tamanho e o desenho do nariz - muito mais do que a cor da pele - se tornou um elemento fundamental. A multiplicação destas caricaturas de judeu possibilitada pela intensa actividade editorial contribuiu para cimentar a ideia racista do "corpo judeu", reforçando simultaneamente o sentimento de superioridade estética dos "alemães".

Numa publicação de 1815, Johann Michael Volz apresenta uma série de tipos de judeu:


Em 1912, o hotel Kölner Hof de Frankfurt, que se orgulhava de não ter judeus entre os seus clientes, publicou uma série de etiquetas para fechar envelopes, nas quais o estereótipo anti-semita aparece mais acentuado:


O caricaturista nazi Philipp Rupprecht radicalizou essa imagem do "corpo judeu". Prescindindo inteiramente de detalhes de vestuário diferente, optou por simplificar e enfatizar o traço que distorce a fisionomia do "judeu" ao ponto de criar um estereótipo inconfundível: feições faciais repulsivas com nariz proeminente, testa baixa, lábios carnudos, orelhas grandes e salientes.


Estava criada a imagem standard do "corpo judeu", para usar como importante arma do anti-semitismo. E este estereótipo entrou com tal força no nosso imaginário cultural que ainda hoje é usado por caricaturistas menos atentos.

No entanto, e por saber bem que esta caricatura jogava ainda mais no campo da distorção que no do exagero, o autor do livro "O Cogumelo Venenoso" teve o cuidado de incluir o capítulo "como reconhecer um judeu" (aqui, em inglês), no qual o professor avisa os alunos de que esses traços distintivos não estão presentes de forma tão clara em todos os judeus, e que em alguns casos até é difícil perceber logo à primeira vista que se trata de um deles.

Simultaneamente, a imagem distorcida espalhava-se e ganhava um lugar estável no imaginário das pessoas. Alguns exemplos dessa economia de traço:

Philipp Rupprecht, "a verdade crua e nua":

Philipp Rupprecht, "O Judeu apresenta-se", 1943:


Vasco Gargalo, 2019:



Num artigo que analisa o anti-semitismo presente em caricaturas contemporâneas (do qual retirei algumas ideias e imagens de arquivo alemãs presentes neste post) Isabel Enzenbach conclui o seguinte:

Existe uma proximidade estrutural entre a caricatura e o anti-semitismo. O caricaturista e o anti-semita desenham - à excepção do tipo da "bela judia" - uma imagem de judeu repugnante. Ambos trabalham com imagens preconcebidas do corpo e com estereótipos. O "nariz judeu" tem um papel central na análise da motivação destas imagens, mas não é o único elemento. Em resumo: um nariz grande por si só não faz automaticamente de um judeu uma caricatura anti-semita (e nem todas as caricaturas sem nariz grande estão isentas de anti-semitismo). Mas: é um sinal de alarme. Tal como no caso de qualquer caricatura de um sujeito pertencente a um grupo vítima de discriminação, se o caricaturista não quiser cair na armadilha do estereótipo, ou reforçar intencionalmente uma imagem essencialista, tem de usar do máximo cuidado ao desenhar um judeu.

O caricaturista contemporâneo poderia alegar que a caricatura exagera naturalmente elementos que já estão presentes na pessoa representada. Mas:
- talvez esteja pré-condicionado para dar mais importância aos elementos fisionómicos do estereótipo, como notava Sara Lipton na frase citada no início deste post;
- tem obrigação de saber o risco que corre ao escolher aderir ao traço ideológico do semanário anti-semita "Der Stürmer";
- é possível fazer caricaturas de judeus sem se servir do estilo criado por Philipp Rupprecht, como se pode ver nas imagens abaixo de Woody Allen, Bob Dylan, Leonard Cohen, Nathalie Portmann, Mel Brooks.

Voltando ao artigo de Isabel Enzenbach, uma recomendação para os caricaturistas contemporâneos que não queiram ver o seu trabalho ser acusado de anti-semitismo:

Basicamente, existem algumas regras simples: ao desenhar políticos ou representantes israelitas é necessário evitar o exagero no tamanho do nariz, bem como outros traços corporais clássicos do desenho antissemita. O Estado de Israel deve ser simbolizado pela sua bandeira, e não pela estrela de David. Há muitas mais armadilhas para além destas, uma vez que o arsenal de elementos pictóricos anti-semítico é muito complexo e diferenciado. Por isso mesmo é necessário usar da máxima sensibilidade ao fazer estas caricaturas.


(William Medeiros)

 (The Simpsons)

 (Sajith Kumar)

 (Eno)

(Katie Miranda)