"Este filme levou-me a vários pensamentos.
Lembrei-me da preocupação de Ratzinger quanto à homogeneização e suas consequências. Afirmava ele que o que enriquecia a humanidade era precisamente a diversidade de culturas e não o contrário.
Impressionou-me o empenho do povo arménio na preservação da sua cultura. A consistência, a fidelidade. Perguntei-me quantos artistas abdicariam de uma carreira promissora para ficarem com os seus, porque são necessários aos seus.
Chamou-me a atenção todos os pormenores a bem da memória: o escrever no livro, o livro que teve que ser rasgado por ser demasiado pesado, a menina que declama o poema de Charent ( e simultaneamente penso que a maior parte dos jovens não sabe o hino nacional), o memorial.
Não pude deixar de sorrir pela felicidade estampada no rosto daquela mulher que tem uma janela virada para o Monte Ararat e a esperança que não morre.
O director que sabe que a cultura é a coluna vertebral de um povo.
E como não poderia deixar de mencionar, a música de uma belíssima melodia. A melodia da peça de entrada, cujo nome infelizmente não fixei, cantada pelo coro, transmitia serenidade, assim como que um reencontro do homem com a sua essência. (Desculpe esta divagação!)
Disseram-me um dia: "Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música."
Está tudo dito."
Palavra puxa palavra, vamos por partes:
Homogeneização e diversidade: há um apontamento muito interessante no livro "The Armenians: From Kings and Priests to Merchants and Commissars", de Razmik Panossian (que é o director do Departamento das Comunidades Arménias na Fundação Gulbenkian), no qual ele refere que na família do seu avô, habitantes da Turquia em fins do séc. XIX, se falava cinco línguas. Depois do genocídio, houve um endurecimento e um empobrecimento cultural. A diversidade combinada com coexistência pacífica permite uma comunhão que é positiva para todos.
O exemplo do pintor Saryan, e também o do escritor Charents (que numa viagem a Itália convence um amigo, escritor arménio exilado, a ir viver para a Arménia, porque "o lugar dos escritores é junto do seu povo"), ou a de um grupo de músicos arménios que - na Moscovo soviética, numa época que luta contra as ideias nacionalistas - criam um quarteto que divulga a herança musical do seu povo, também me impressionaram: a Arte vivida como serviço.
Durante os anos do genocídio, e depois, durante o período soviético, o Saryan pintava flores, árvores floridas, e paisagens da cultura arménia para dar esperança ao seu povo e a coragem de resistir. Um dos seus quadros, pintado no período estalinista, quase parecendo uma cena ingénua, é afinal uma grande provocação: uma aldeia, uma igreja com a porta aberta, e uma mulher a entrar nela.
Durante a II GM, quando o seu filho estava na frente de batalha onde morreram milhões de soldados soviéticos, pintou esta cena familiar, que tem no centro um damasco (o damasco, prunus armeniaca, é um dos símbolos dos arménios):
Outro quadro da mesma época, de um optimismo tal que chega a ser doloroso (1942, "Damasqueiro em flor"):
Aqui pode-se ouvir todo o requiem, gravado a partir da transmissão radiofónica da estreia mundial, em Berlim:
Uma das minhas passagens favoritas é a Lacrimosa (por volta de 23:00). O Tigran Mansurian disse que era a parte que lhe impunha mais respeito. Penso que passou a prova com distinção.
"Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música." - também gostei imenso do que o Jordi Savall disse sobre isso: ao tocar a música de um povo, de certo modo entra-se na alma e na História desse povo.
A propósito, o Tigran Mansurian refere em especial o Kyrie. Ele escreveu o Kyrie como uma dança aflitiva de um povo à volta do seu Deus. Um povo que vive permanentemente sob ocupação e é perseguido não canta "Senhor, tem piedade de nós" da mesma maneira que um povo que vive no seu território e em paz.
O que nos faz voltar aos livros medievais, e a um comentário da Meliné Pehlivanian, a senhora que nos apresentou alguns livros na biblioteca berlinense. Dizia ela que, ao ver o tamanho dos livros que há nos mosteiros medievais da Europa central, se deu conta da paz que havia nesta região. Aqueles livros enormes eram feitos para ficar onde estavam. Ninguém tinha de agarrar neles a correr e fugir para salvar a vida. Ao contrário dos livros arménios, feitos memória portátil.
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