Há pouco mais de um ano, a Alemanha escandalizou-se ao saber de uma reunião de pessoas ligadas ao partido AfD e outros grupos grupos da extrema direita, com o objectivo de definir uma estratégia em relação aos estrangeiros que vivem neste país. Talvez não seja por acaso que tenham marcado essa reunião para um cenário semelhante ao palacete da Conferência de Wannsee, e bastante perto deste.
"Remigração" foi a palavra que chocou a sociedade alemã: repatriação em larga escala de imigrantes, inclusivamente os seus descendentes nascidos na Alemanha e com nacionalidade alemã.
Esta revelação provocou a maior onda de manifestações desde a criação da República Federal Alemã. Não obstante, um ano depois, a AfD usa a palavra "remigração" com a maior naturalidade no espaço público, e tudo aponta para que venha a ser o segundo partido mais votado nas eleições de amanhã.
Pior ainda: também no discurso eleitoral dos partidos democráticos, os "estrangeiros" passaram a ser vistos como uma "ameaça" e um problema que a sociedade tem de resolver. A sociedade alemã regressou sem peias ao "nós" contra "eles".
Recentemente, num talk show, uma jornalista especializada na problemática dos refugiados, que conversa com eles nos campos, nas rotas de fuga e nos países de chegada, chamou a atenção aos outros participantes: "Estamos a falar de seres humanos como se fossem cadeiras desdobráveis". E lembrou os 25% da população alemã que tem uma história de migração, falou nesse "nós" contra "eles" que envenena o "nós todos" e provoca insegurança numa boa parte da população. Mas os políticos não aceitaram o repto, e voltaram ao chavão: "a migração é um problema, e tem de ser resolvido".
Podia resolver-se com reforço dos serviços administrativos, com mais aulas de alemão, mais programas de integração, mais creches, mais habitação, mais programas de formação profissional (o país precisa desesperadamente de mais pessoas no mercado de trabalho, e de dar uma volta à pirâmide etária). Mas não: no espaço do discurso público, a única maneira de resolver o "problema da migração" é com repatriamento, regras ainda mais apertadas e desumanas, e controle nas fronteiras.
Esta sociedade consegue fazer melhor, e já o mostrou em 2015. Quando Angela Merkel abriu as fronteiras aos desesperados que fugiam à guerra da Síria, os alemães viveram um momento alto da sua humanidade: o número de voluntários que queriam ajudar era superior ao dos refugiados. Muitas famílias abriram as suas casas a desconhecidos. Muitas pessoas assumiram o cargo de tutor de menores não acompanhados. Comunidades locais uniram-se para acolher essas pessoas e criar pontes. Lembro-me, por exemplo, de jovens de uma pequena cidade que organizaram grupos de skating com jovens refugiados.
2015 foi também o ano em que a AfD, que começara por apostar, sem êxito, no tema da saída do euro, viu finalmente a sua oportunidade para começar a ganhar algum poder: a instigação à xenofobia e ao ódio como ferramenta política. Foi introduzindo o seu discurso insidioso na sociedade, e o discurso foi corroendo os valores humanitários que as pessoas até então se esforçavam por assumir como seus. Merz, da CDU (o partido que ainda tem "cristão" no nome), que será provavelmente o próximo chanceler alemão, já chegou ao ponto de se referir aos filhos dos imigrantes muçulmanos como "pequenos paxás que não respeitam nada na escola primária". E também se queixou que os refugiados tiram o lugar aos alemães nas listas de espera dos dentistas. É o nível a que chegámos.
Com as eleições à vista, pouco antes do encerramento do Parlamento, Merz decidiu chantagear os outros partidos democráticos, provavelmente para aparecer aos olhos do eleitorado xenófobo como o homem forte que defende convictamente os seus interesses nacionalistas. Levou ao Parlamento uma proposta para serem tomadas medidas mais drásticas contra os imigrantes, incluindo medidas ilegais. Como era de esperar, os partidos democráticos votaram contra, e a proposta de Merz passou com os votos da AfD. Foi um momento muito estranho no Parlamento Federal: todos os deputados dos partidos democráticos com cara de enterro, inclusivamente o próprio autor da proposta, e os deputados da AfD aos vivas e aos abraços no plenário.
A classe política e grande parte da população ficaram em choque por Merz ter quebrado um tabu até agora consensual: não se leva a Parlamento nada que ofereça à AfD o papel de decisor. Merz veio para a comunicação social explicar o seu ponto de vista, repetindo por todo o lado que "uma coisa que é certa não deixa de ser certa por ser aprovada pelos errados". A mensagem é apelativa - mas um parlamento democrático não é lugar para desvarios quixotescos, e a Democracia não funciona assim. Um político que impõe aquilo que entende ser o certo, contra a realidade e contra todos, não é um democrata. A Democracia é um jogo de diálogo, atenção às diferentes perspectivas, negociação e concessão. "Eu é que sei o que é o certo, e imponho a minha vontade" é mais o estilo do Trump. De facto, se olharmos com atenção, vemos que já há muitos políticos europeus com traços de trumpismo - e não apenas o Merz, e não apenas na Alemanha.
A quebra daquele tabu provocou nova onda de manifestações com centenas de milhares de pessoas nas ruas. Duas amigas minhas, de 85 e 87 anos, estiveram numa manifestação várias horas em pé e no frio do inverno berlinense, porque estavam revoltadas. Uma delas comentou: "pela primeira vez na vida não vou votar CDU".
Mas as sondagens mostram que esta deriva autoritarista de Merz lhe rendeu um pequeno aumento das intenções de voto. E a AfD continua firme no seu lugar de segundo partido mais votado.
Amanhã a Alemanha vai votar. Longe vão os tempos em que o resultado das eleições não era realmente importante: um pouco mais à esquerda ou um pouco mais à direita, mas sempre com estabilidade democrática. Hoje em dia, a questão começa logo com a dúvida sobre a possibilidade de formar um governo estável. A extrema-direita populista paira sobre a Democracia como uma espada de Dâmocles. Assisto a tudo isto incrédula. Agora sei como foi possível que Hitler tomasse o poder. Como foi impossível impedir que Hitler tomasse o poder.
Uma amiga minha anda a ler o livro "Dança Sobre o Vulcão", sobre o ambiente nos loucos anos vinte na Berlim do século XX. E lamentou-se: "cem anos depois, temos o vulcão mas nem ao menos dançamos!"