01 fevereiro 2025

*espalhar-se ao comprido*

Na semana passada aconteceu um pequeno milagre, e poucos repararam: juntou-se um grupo de resistentes do tempo dos blogues, com o projecto de escrever todas as semanas sobre um tema predefinido - os mais cuscos, que gostam histórias de bastidores, podem espreitar aqui.
Ainda não temos casa nem nada, mas já começámos a escrever. 

O tema desta semana era “espalhar-se ao comprido”, e eu, que devia ter publicado ontem, só hoje comecei a escrever. Vou-lhes sugerir que um dos próximos temas seja “atraso de vida”, sobre esse assunto posso escrever vários compêndios.

Espalhar ao comprido não é bem a minha especialidade. Eu sou mais meter o pé na poça. Em termos de quedas, sobretudo metafóricas, na maior parte dos casos salva-me um estranho reflexo condicionado que me mantém sempre em pé. Tenho andado a pensar neste fenómeno (na verdade, foi esta manhã, no duche), e parece-me que começa por isto: não fazer planos sérios para nada. Deixar que a vida vá decidindo. Se o rumo muda, olha, tanto melhor. Estava a caminho de Munique quando descobri que o comboio ia para Hamburgo? Ainda bem: sempre quis ir conhecer Hamburgo, e vai ser hoje!

É por isso que, nas entrevistas para emprego, a pergunta que mais odeio é “onde se vê daqui a cinco anos?” Uma vez, quando estava a concorrer a um trabalho na Lufthansa, respondi: “aonde as minhas capacidades me levarem, sem perder de vista o risco do princípio de Peter”. O entrevistador riu-se, e deixou-me passar à segunda fase. Nessa, meti o pé na poça e espalhei-me ao comprido: não consegui aquele emprego. Mas não se perdeu tudo porque na entrevista seguinte, para a Bosch, quando me perguntaram quanto queria ganhar (outro tópico que adoro...) respondi desajeitadamente “não sei, mas na Lufthansa ia receber x”. Os entrevistadores entreolharam-se, surpreendidos, e acabei a receber esse montante. Para fazer um trabalho desagradável num lugar horroroso. E ainda bem, porque tornou mais fácil a decisão de ir à minha vida, e o emprego que encontrei a seguir me pagou tão bem que ao fim de alguns anos me despedi e fui gastar o superavit em San Francisco com a família toda. Nunca sonhara viver dois anos em San Francisco, mas fui, e adorei.

Talvez a imagem do sempre-em-pé não seja a adequada: é mais um saltitar, aceitando alegre e irresponsavelmente os convites da vida, e servindo-me das contrariedades para mudar de direcção. Mais uma frase deste género, e vai tornar-se evidente que, neste grupo de escrita sobre um tema semanal, fiquei com a pasta de life coach. Para o que uma pessoa está guardada! Mais duas frases do género, e dou comigo no Extremamente Desagradável, “Helena Araújo: quanto pior, melhor!”

Como ia dizendo: nunca tive medo de me espalhar ao comprido. Vamos indo e vamos vendo, já dizia o meu instrutor da escola de condução. Mas ultimamente dou comigo a concentrar-me quando desço escadas. Um olho nos degraus e outro no corrimão, atenta, tomada por um medo inédito de cair e de me partir toda e de nunca mais nada voltar a ser o que era. Envelhecer deve ser isto: temer que o nosso corpo, em crescente parvoeira para se emancipar de nós, nos ataque à traição.

Se este tema vos interessa, não percam os escritos da próxima semana. E mais não digo.

E se quiserem ler outras abordagens a este “espalhar-se ao comprido”, senhoras e senhores, aqui vos deixo: a Maria João, a Carla, a Calita, a Mariana, a Joana.   

Enjoy.

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