Ontem, à hora do jantar, bateram à nossa porta. Era o vizinho de baixo, a pedir para pormos uma protecção nos pés das nossas cadeiras, porque de cada vez que um de nós se mexia o barulho se ouvia no apartamento dele.
Pedimos desculpa, dissemos que íamos fazer, e ele então tirou do bolso uma embalagem de discos de feltro. Recusamos, porque já os tínhamos em casa, e só faltava mesmo pô-los nos pés dos móveis.
Depois perguntámos-lhe se havia mais alguma coisa que o incomodasse, ele disse que não, e despedimo-nos.
Fiquei a pensar na maneira pacífica como tudo decorreu. Geralmente as pessoas têm algum pudor em dizer aos vizinhos o que as está a incomodar, e esse silêncio embaraçado alimenta quotidianamente o desprezo e a raiva que envenenam as relações.
O tom pacífico do nosso vizinho lembrou-me um episódio que aconteceu há alguns anos, quando estava a entrar num parque de estacionamento de um supermercado numa ilha do mar Báltico: uma pessoa da terra veio ter comigo, pediu-me para abrir a janela do carro e disse com um sorriso encantador: "temo que esteja a entrar pelo lado errado de uma via de sentido único".
Há pessoas assim: que nos dão vontade de mudar tudo para nos tornarmos semelhantes a elas.
(Mas - infelizmente - nem sempre me lembro deste bom exemplo quando estou a corrigir erros alheios.)
No mesmo registo de comunicação não violenta, traduzo um comentário que li no mural de facebook de uma amiga, a propósito da violência doméstica em tempos de confinamento:
"Qualquer pessoa pode ajudar. Se têm a sensação de que há alguma coisa que não está a correr bem, arranjem uma desculpa para tocar à campainha desses vizinhos. É uma maneira simples de contribuir para acalmar um pouco a situação, e de dar uma oportunidade à vítima. Quando a cena se passa no espaço público, podemo-nos aproximar das pessoas em conflito e perguntar delicadamente pelas horas, ou por uma direcção. Tudo o que suspende por momentos determinada situação de conflito pode ser uma ajuda, e pode até salvar uma vida."
Este comentário resolveu-me uma dúvida que tenho há mais de quinze anos, quando vi na rua uma criança de três anos com uma mulher fora de si. A criança fazia uma birra, e a mulher gritava-lhe desalmadamente. Que devia eu ter feito? Confrontar a mulher não ajudaria nada, porque ela estava de cabeça perdida. Agora sei: devia ter-lhe perguntado onde é que havia uma boa loja de gelados, devia ter-me feito de burra para ela me levar lá, devia ter oferecido um gelado a cada uma delas. Talvez a criança parasse de chorar, talvez fosse até possível ouvir a mulher falar das suas dificuldades como educadora daquela criança.
1 comentário:
Lembro-me de uma vez que uma vizinha por baixo do meu andar mandou-me uma carta insultuosa sobre como eu fazia barulho a chegar a casa à noite. Inacreditável. Fui tocar na porta dela e claro que ela tratou-me com educação (um pouco como acontece hoje com o FB, que as pessoas transformam-se, ou como no trânsito). Tentei fazê-la ver que nunca imaginei que fazia barulho para o andar dela e que bastava ter tocado à porta e avisado. Correu bem, mas partiu de forma tão errada. Os seus vizinhos são excelentes, ou aquela minha é que teve uma atitude muito errada - verdade que nunca se repetiu com outros vizinhos, no mesmo andar.
www.takedireto.wordpress.com
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