29 junho 2023

um milionário, um refugiado, um jornalista e um activista das redes sociais entram num bar...

Bem sei que o assunto actual é o fumo do Canadá, mas queria ainda falar do submarino da semana passada e do alvoroço por causa da atenção que lhe foi dada, e da indiferença em relação à tragédia do naufrágio com centenas de mortos no Mediterrâneo que aconteceu na mesma altura. É que calhou de fazer férias longe da internet justamente quando tudo estava a acontecer...


Num primeiro momento, entendo a crítica ao modo como a comunicação social tratou os dois casos. Mas a seguir dou-me conta de que há muito que as mortes no Mediterrâneo deixaram de ser um tema realmente importante. Por mais que protestemos, a tendência é para os órgãos de comunicação social tentarem agradar ao mercado, oferecendo-lhe prioritariamente aquilo de que ele mais gosta. Aquilo que vende.


E o mercado gosta de sensações fortes, como, por exemplo, cinco multimilionários fechados numa (pseudo-)maravilha da técnica, no fundo do mar, sem sabermos se vão escapar à morte. Como um grupo de mineiros fechados nas profundezas do solo, sem sabermos se vão escapar à morte. Ou uma dúzia de miúdos encurralados numa gruta tailandesa, sem sabermos se vão escapar à morte. E se um dia destes o Elon Musk for a Marte, e a nave tiver uma avaria séria, mesmo que nesse dia naufraguem cinco navios no Mediterrâneo, é mais que certo: os noticiários abrirão com Musk e a sua aventura marciana. “Sem sabermos se vão escapar à morte”: o suspense é um ingrediente fundamental para prender a atenção e aumentar as vendas.


Outro elemento importante é o glamour. Multimilionários, oh!, é outro frisson. E não é de hoje. Basta olhar para o outro veículo (involuntariamente) envolvido nesta triste aventura, o Titanic: apesar de ser um imenso cemitério de pobres, entrou para a História como um barco de luxo, como o barco dos milionários. Num total de 2224 passageiros e empregados, só 325 pessoas (14%) iam na primeira classe. Morreram 123 passageiros da primeira classe, e quase 1400 empregados e passageiros das classes mais baratas (mais grave ainda: quanto mais rico, maior foi a percentagem de sobreviventes desse grupo - 62% na primeira classe, 41% na segunda, 25% na terceira e 23% no grupo dos empregados). Mas sem esses 123 milionários num total de 1514 vítimas mortais, e sem os elementos luxuosos e inovadores do navio, o desastre do Titanic seria apenas uma linha igual às outras na “lista de desastres marítimos” da Wikipédia. Lista essa que, curiosamente, na página portuguesa não inclui nenhum dos barcos que nos últimos anos naufragaram no Mediterrâneo. Ou seja: não são apenas os meios de comunicação social que se esquecem dos que morrem no Mediterrâneo – a Wikipédia é feita por todos, e até agora ninguém se lembrou de incluir naquela página os desastres com barcos de refugiados.


Voltando aos critérios editoriais dos órgãos de comunicação social: temos, por um lado, o suspense e os famosos, que vendem; por outro lado, as questões que nos incomodam, e por isso vendem menos. Cinco milionários que pagam uma fortuna para se meterem voluntariamente numa cápsula de lazer perigosíssima são um assunto que capta o nosso interesse, mas não nos desinstala. Já as tragédias do Mediterrâneo têm directamente a ver connosco: porque é “no nosso interesse” que os países da Europa permitem (em certos casos até dão uma ajudinha, como parece ter acontecido com este navio) que no Mediterrâneo continuem a morrer tantos seres humanos.


Penso que a questão central não passa por exigir à comunicação social que dê o devido realce a cada uma das tragédias que acontecem no Mediterrâneo. No fundo, não precisamos de conhecer o caso mais recente para saber que naquele mar estão a morrer milhares de pessoas. A questão central é muito mais complexa, e dá-nos muito mais trabalho: exige de nós a certeza de querer realmente abrir as fronteiras a essas pessoas, exige que conversemos com o tio, a prima, o colega de trabalho ou o amigo que têm medo “dessa gente que não é da nossa cultura e vem para cá viver à nossa custa”, exige conseguir criar um ambiente francamente positivo em relação a essas pessoas. Implica que façamos realmente pressão para que a União Europeia lhes permita chegar ao nosso continente por vias seguras, e faça também o que está ao seu alcance para criar nos países de onde elas vêm condições para não terem de fugir.


Em última análise, as pessoas continuam a morrer desta maneira no Mediterrâneo porque as nossas convicções não são fortes a ponto de se transformarem em ondas de solidariedade com força suficiente para influenciarem as políticas europeias. Enquanto não o conseguirmos, e por muito ou pouco que os órgãos de comunicação social falem do assunto, o Mare Nostrum vai continuar a ser um fosso de separação e indiferença, e um lugar de tragédias repetidas.  



1 comentário:

Lucy disse...

como li algures: Sin palabras pero con demasiados interrogantes...