"Uma história de violência" é um texto da Fernanda Câncio sobre o machismo estrutural no qual vivemos - tanto homens como mulheres - enterrados até ao pescoço. Um texto fundamental para entendermos o que nos está a acontecer e o caminho que temos pela frente.
Recomendo muito a leitura (está aqui).
Só não concordo com o final ("Como disse Mandela em relação ao apartheid, estivemos anos a bater educadamente à porta, e a porta não abriu. É a altura da raiva."), pelos seguintes motivos:
1. Não "estivemos": o "nós" ainda não existe. As mulheres discordam sobre imensos pontos fundamentais. Basta lembrar o debate sobre o assédio de rua, em 2015: tantas mulheres a defender o direito de os homens "fazerem elogios" (se bem me lembro, até na plataforma feminista Capazes se ouviram vozes dessas), a dizer "mulher séria não tem ouvidos" ou "e não tens mãos para lhe dar uma bofetada?"
Lembrar ainda a reacção de tantas mulheres portuguesas em defesa do Cristiano Ronaldo quando a revista Spiegel revelou o que ele terá feito numa noite em Las Vegas.
2. Além de não existir um "nós", não temos batido à porta. A maior parte das mulheres em Portugal tem vivido isto sozinha e em silêncio. Em vez de bater à porta, retira-se. Exceptuando uma ou outra que escolhe reagir quando é assediada (algumas vezes com terríveis consequências para ela) e, tanto quanto me lembre, algumas vozes na altura do debate sobre o piropo.
3. "É a altura da raiva" - se nos queremos libertar do machismo estrutural que vive comodamente instalado entre nós, penso que a raiva é o pior dos caminhos.
Em minha opinião, este não é o tempo da raiva, mas o de contarmos as nossas histórias. E de as contarmos sem nomes, porque o importante é darmo-nos conta dos mecanismos, em vez de nos perdermos em guerrilhas pessoais. A propósito: tem-me custado imenso assistir à mud fight que resulta das denúncias nominais. Na ânsia de proteger o acusado concreto, atiram a acusadora para o esterco - e por arrasto as outras mulheres, porque se repete e reforça no espaço público o tradicional chavão "o que tu queres sei eu, sua puta".
Este é o tempo de encontrarmos forma de abrir os olhos que estão cegos ao machismo estrutural. Tantos homens andam entre nós convencidos de serem pessoas muito decentes, mas riem de piadas como "esta até devia agradecer se lhe concedessem um piropo" ou fazem perguntas a familiares adolescentes sobre a sua vida sexual (para dar apenas dois exemplos corriqueiros); tantas mulheres que assistem a isto e se riem com eles.
Este é o tempo de sair da solidão com que cada uma de nós tem vivido estas situações, e criar finalmente um "nós" que exija a mudança estrutural. Um "nós" que tem de envolver homens e mulheres: só conseguiremos melhorar a situação se trabalharmos em conjunto para ganhar a empatia dos homens e das tantas mulheres para as quais isto não é problema. Temos também de conseguir sensibilizar as empresas e as instituições (a começar pela escola, pela polícia, pelos tribunais e pelas Igrejas) para a sua responsabilidade na mudança.
(Penso que a raiva é o pior caminho para este movimento, mas concedo-me o meu direito à raiva contra pessoas concretas: continuo a desejar uma morte muito longa e muito dolorosa a todos os cabrões que me segredaram indecências ou me tocaram na mão quando eu ia a caminho da escola. E só por respeitinho ao algoritmo e aos psis que andam por aqui à solta é que não digo o que desejo ao tarado que me tentou violar aos 11 anos, e apalpava a minha irmã de 6 anos quando "a ajudava" para ela ir buscar a roupa que caía do nosso estendal no pátio do café onde ele passava os dias. Revelo apenas que espero que o inferno exista, e que os seus demónios me ouçam.)
4 comentários:
É tempo das mulheres contarem as suas histórias e lá virá o tempo de nós homens sermos capazes de pedir desculpa às mulheres (refiro-me a pessoas em particular, não a uma espécie de eterno feminino) pelas inúmeras vezes em que fomos machistas para com elas, quando ganharmos coragem para isso.
Mas esse tempo também ainda não chegou porque esse ruído abafaria as vozes femininas e este é o tempo delas.
E refiro-me aqui apenas ao machismo larvar ilustrado pela caricatura deliciosa da Helô D'Angelo e não a comportamentos que hoje cairiam na alçada da lei penal.
Um homem não tem que ser um cabrão para se comportar de tal maneira... E esse também é parte do problema...
Sim. Há ainda tanto para comunicar e para aprender!
E desde logo perdoe-me o comentário. A melhor homenagem ao seu belo texto teria sido de facto o silêncio (um homem tem sempre que mandar um bitaite :) ), mas esse também seria indistinguível da desatenção...
Jaime, estamos aqui para conversar, aprender e avançar juntos.
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