03 setembro 2023

um verdadeiro saque moral


Andava há vários dias com vontade de falar da tristeza e da revolta que sinto ao ver que Rubiales, esse bronco destravado (estou a inventar eufemismos), fez o que podia para se inscrever na vitória histórica da equipa feminina espanhola - pior: para se pôr acima dela.

Como é possível que, depois de esta equipa ter ganho o campeonato mundial, em vez de nos focarmos na conquista daquelas mulheres andemos a falar do homem, e da greve da fome da mãe do homem, e do homem como vítima... Alguma vez seria possível imaginar que após a conquista de um título mundial por uma equipa masculina, o debate público se centrasse no presidente e não nos jogadores?

Graça Castanheira escreve sobre este assunto no P2 de hoje. Vale muito a pena ler toda a descrição da luta destas mulheres para poderem fazer bem o seu trabalho, mais concretamente: para poderem trabalhar bem apesar dos entraves que os homens lhes põem no caminho pelo simples motivo de serem mulheres. A descrição desta luta é simultaneamente uma lista das humilhações a que estas mulheres têm sido sujeitas para poderem jogar. Destaco a passagem que se segue, que ecoa a revolta que, por estes dias, tenho sentido: "Quando o presidente da federação aparece fora de campo - e fora de si - a celebrar a vitória da equipa a que preside com o treinador, rouba alegria e protagonismo ao que as jogadoras fizeram dentro de campo, e isso nem sequer é só machismo: é um verdadeiro saque moral. Rubiales coloca uma jogadora ao ombro, como um troféu seu, toca nos genitais apontando para Vilda e, como se não bastasse, beija Hermoso na boca. Que vencer o tenha literalmente excitado, percebe-se; que tenha tentado converter a vitória num feito de dois homens, é só muitíssimo reprovável."

--- Interrompi a escrita deste post para ir trocar dois dedos de conversa com a dona das colmeias que temos no nosso jardim. Ela, alemã, estava na Austrália a assistir aos jogos deste campeonato. Após a vitória, achou estranho o modo como Rubiales abraçava cada jogadora. Perguntou-se se em Espanha isso seria normal.

No filme cujo link partilhei acima (este), notamos que nem para Hermoso isso é normal: começa por estender a mão a Rubiales. Mas ele agarra-se a ela, salta-lhe para cima e beija-a na boca. Quando ela queria apenas dar um aperto de mão. Ah, e já agora, para as pessoas que dizem "ai, pois é, mas no autocarro ia a rir-se": esperavam o quê? Acham mesmo que uma equipa (e uma pessoa) que acabou de conquistar o mundial e está com a adrenalina no máximo vai conseguir ter o recuo suficiente para tomar a reacção adequada? E qual é a reacção adequada? Será porventura - no momento da maior euforia e alegria por terem conquistado o mundial - armar escândalo, e trazer a questão do abuso para o centro, destruindo aquele momento único da equipa? Finalmente, a perfídia do argumento: condicionam as mulheres desde tenra idade para não incomodarem os homens, para os desculparem sempre, para não levantarem ondas; condicionam as mulheres desta equipa para que se submetam às regras e ao poder dos homens (veja-se o texto de Graça Castanheira); e no fim, se a mulher não consegue reagir imediatamente como entendem que deveria, criticam-na por não ter reagido imediatamente como entendem que deveria. Em que ficamos? Queriam mesmo que Hermoso lhe desse uma bofetada e um pontapé nos genitais ali no estádio, perante as câmaras de televisão de todo o mundo? É mesmo isso que querem? Sendo assim, tanto melhor: penso que, para muitas mulheres, estas novas regras do jogo seriam uma libertação e uma catarse. Portanto: não vai acontecer.




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