14 janeiro 2016

o que é nacional é bom

(fonte: Frankfurter Rundschau: autocolantes deixados junto a um centro de refugiados na região de Frankfurt)


A mistura de medo, preconceito e arrogância cultural que a Maria João Marques exibe neste texto de opinião faz dela uma candidata ideal a chefe de propaganda do Pegida. Se quisesse, tinha carreira garantida entre os nacionalistas alemães, lá isso tinha. É certo que corria o risco de começar a ser discretamente vigiada pelo BND, mas convenhamos que até era uma linha positiva no currículo que ela gostaria de exibir: "sob vigilância da polícia de um Estado que está a dar cabo de si próprio com essas manias esquerdistas de ser politicamente correcto e mais amigo dos outros que do seu próprio povo".

Só não convinha defender com tanto afinco a banalização do piropo. Por aqui, o pessoal (mesmo no seu potencial empregador, o Pegida) está muito chocado com os ataques a mulheres indefesas na rua, e o papel que um dos atacantes de Colónia tinha consigo, com a tradução do árabe para alemão de galanteios como "mamas grandes" e "quero-te foder", não ajudou muito à causa do piropo. Nem mesmo se for um piropo proferido por um português, o qual - como os entusiásticos apoiantes deste tipo de texto da Maria João Marques sabem muito bem - pertence a uma raça de qualidade superior.

Às vezes dá jeito sair do plano ideológico e fazer uma pequena incursão na realidade. Para quem se interessar sobre a vida real, há aqui um relato do que acontece num centro católico berlinense que oferece formação a mulheres refugiadas.

Há dias contaram-me uma história muito curiosa, que se passou em Berlim: uma portuguesa loira ia a passar em frente a umas obras, quando ouviu um piropo dito em português. Pensaria o homem que podia dizer o que lhe apetece, já que a loira seria com certeza alemã e não entenderia nada, mas a vida correu-lhe mal. Em vez de avançar, por não ter percebido nada, ou de se encolher e atravessar para o outro lado da rua, por ter percebido bem demais, a portuguesa estacou, olhou para ele, e disse: "Olhem-me este trolhinha a mandar piropos! Cresce e amadurece, homem, que neste país isso não se usa."

Eis uma boa razão para os países nos quais o respeito pela mulher é um valor fundamental abrirem as portas a pessoas de culturas que oprimem a mulher: na Alemanha, uma portuguesa sentiu-se suficientemente forte para meter um piropeiro na ordem. Já em Portugal, alguém que levante a voz contra o assédio verbal de rua é atacada, até por outras mulheres.

Ataques por parte de outras mulheres, como faz na sua crónica a Maria João Marques que, curiosamente, padece do problema que tão bem explica: está formatada por uma cultura que tolera comportamentos de desrespeito da mulher, mas pensa que é assim mesmo que deve ser. Contudo, talvez haja esperança para o seu caso: se a Alemanha não se deixar influenciar por opiniões da linha ideológica do seu texto, ou seja, se não fechar as fronteiras a estrangeiros alegadamente pré-condicionados pela sua cultura de energúmenos, e se ela, ao vir para cá, em vez de se juntar ao Pegida estiver aberta para aprender neste país alguns valores básicos do Ocidente Cristão, talvez possa algum dia perceber tudo o que há de profundamente errado no texto que escreveu.

Para ser justa, convém notar que em Portugal também haveria muito quem lhe explicasse isso. De facto, sinto-me feliz por poder afirmar que há muito mundo em Portugal para além da Maria João Marques, e que os portugueses não são todos iguais a ela e ao seu luso Pegida. Pelo que seria realmente trágico se o centro da Europa tomasse a parte pelo todo, e fechasse as fronteiras a todos os portugueses, só porque entre eles há um grupo de considerável dimensão que não tem o menor pudor em trazer para o espaço público um discurso de xenofobia, de intolerância religiosa e de bagatelização do assédio verbal na rua.

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Quatro detalhes à margem:

1. Gostei muito desta passagem: "E a propósito, esta forma que os muçulmanos têm de olhar para as mulheres como gado, mesmo quando não dizem nada, é muito mais agressiva do que qualquer piropo, ordinários incluídos, que tenha ouvido por cá."
Até parece que nas ruas portuguesas não há homens a olhar para as mulheres como se elas fossem gado. Até parece que esse olhar de devassa não está directamente ligado aos piropos, nem é o que geralmente os precede. E o que mais espanta é a ingenuidade da afirmação de que o olhar de um português permanece puro e respeitoso mesmo quando o seu piropo é ordinário.
Mais uma vez, concluo que a mim só me saem é duques. Como aquele desconhecido que em Lisboa, no verão passado, me fitou de rosto congestionado e olhos quase fora das órbitas, enquanto lambia lascivamente os beiços. Na altura tive pena de não lhe ter perguntado a religião, mas a Maria João Marques já me esclareceu: só pode ser muçulmano.

2. A parte da crónica sobre as feministas silenciarem os ataques de Colónia para protegerem os estrangeiros é pura desonestidade intelectual. Ninguém pode fazer uma afirmação dessas em relação às feministas alemãs depois de ter lido os textos que eu traduzi. E eu sei que a Maria João Marques os leu, porque até os criticou em público. Entretanto também se podia informar um pouco sobre a campanha #ausnahmslos. (Significa: sem excepções, e critica toda a violência sexual, venha de onde vier. O que só prova que as feministas alemãs estão cada vez mais loucas: agora até têm o desplante de não responder ao retrato que a Maria João Marques quer fazer delas.)

3. A frase "Só agora se viu a necessidade de informar refugiados das regras de conduta europeias entre os sexos ou alargar possibilidade de deportação de criminosos" denota tal ignorância que nem sei por onde começar a informar sobre a realidade trágica deste êxodo (só na Alemanha foi mais de um milhão em menos de um ano), do esgotamento dos serviços responsáveis por identificar e registar quem chega e dar meios para subsistirem enquanto esperam, da impossibilidade de deportar seja quem for por muito grande que seja o crime, do intenso e generoso trabalho de integração levado a cabo por inúmeros grupos de voluntários. Mas talvez não valha a pena dar informações sobre a realidade a quem precisa muito de acreditar que o mundo é tal e qual como o vê, para poder continuar a escrever textos inflamados.  

4. Finalmente, sugiro um momento de silêncio para apreciar esta frase em todo o seu esplendor: "Claro que nem todos os muçulmanos são energúmenos."


2 comentários:

Izzie disse...

Hoje, à hora de almoço, no hipermercado, um sujeito olhou para mim como se fosse gado. Posso estar enganada, que posso, mas estou capaz de jurar que era bem portuguesinho. Curiosamente, vivo numa zona onde vivem e há muitas lojas de imigrantes, todos eles do médio oriente (bengalis, paquistaneses, é só escolher). Passo por eles diariamente. Nadinha de nada. Que estranho, não é? Ou não. O preconceito turva mais que lentes desajustadas.

Helena Araújo disse...

Ora bem:
1. Se olhou para ti como se fosses gado, é muçulmano.
2. Tu fazes questão de afirmar que é portuguesinho porque és uma feminista que só sabe pôr defeitos nos seus, e acha que os outros é que são bons
3. Ou então, tens a mania de comparar os portugueses aos energúmenos muçulmanos (ooops, parece-me que "energúmeno muçulmano" agora é um pleonasmo) e não percebes que há uma diferença fundamental entre os nossos homens e os homens delas, mesmo quando fazem a mesma coisa.
2. Se não vês os outros muçulmanos do teu bairro a olhar para ti como se fosses gado, és uma feminista cega, daquelas que faz mesmo mesmo questão de não ver.

Em todo o caso: um homem português olhou para ti?!
Bem feita, ninguém te mandou ser feminista. Se fosses xenófoba pró-piropo, garanto-te que não olhavam. Lê o que a Maria João Marques escreve, e ficas a saber que a ela nenhum homem português incomoda com assédio.