10 outubro 2024

a revolta do homem branco

 



Traduzir livros pode ser um prazer enorme (olá, Kaminer!) e pode ser um exercício penoso de perscruta de abismos. Foi o caso deste: à procura da palavra certa, frase a frase, tive de andar demasiado por dentro da cabeça de tipos que odeiam mulheres em particular, e o nosso mundo em geral.
Foi difícil fazer este trabalho, mas valeu a pena: por estes dias, quando o Trump diz uma das suas bacoradas, não fico chocada nem perplexa. Agora conheço a cartilha, sei o que quer atingir com frases que parecem tresloucadas mas, na realidade, são de enorme precisão estratégica: truques para ganhar eleições.
Curiosamente, depois de entregar a tradução, ouvi a investigadora Teresa Toldy falar do mesmo fenómeno. A princípio, pensei "hey! como é que ela leu o livro que ainda não foi para o prelo?!" Depois, percebi que tinha acabado de publicar um extenso trabalho sobre as ligações entre religião, questões de género e populismo no espaço mediterrânico. Falava com enorme preocupação, e repetia muito: "garanto que não se trata de teorias da conspiração - isto é mesmo o que está a acontecer no nosso mundo!"
(E nem vou dizer nada sobre o capítulo que descreve a responsabilidade da Igreja Católica na criação do monstro imaginário que dá pelo nome de "ideologia de género", que tão útil tem sido a Bolsonaros, Melonis, Le Pens e quejandos. Mas quase morri de vergonha enquanto traduzia essa parte do livro.)
Em suma: não é uma leitura leve, mas é um livro essencial para entender o mundo em que vivemos. Dá-nos ferramentas para observar com o recuo de quem sabe quais são os mecanismos por detrás do que acontece e parece incompreensível.
E: sosseguem, porque ler não é tão doloroso como traduzir. Vocês conseguem! 🙂
Já está em pré-venda na Zigurate. A sinopse do site da editora fala do ataque ao Capitólio, e eu acrescento o que se segue, só porque fazia ontem cinco anos que aconteceu: no dia de Yom Kippur, um incel alemão da extrema-direita meteu-se no carro, rumo à sinagoga de Halle, para massacrar todos os judeus ali reunidos. Tinha uma câmara a transmitir para a internet, queria que o pessoal da sua comunidade visse o massacre no próprio momento em que estava a acontecer. Pelo caminho, foi a ouvir o hino de louvor a Alek Minassian, o incel canadiano que usou uma carrinha para matar pessoas em cima de um passeio.
A letra é assim:
Runnin' through these hoes like I'm Alek Minassian
Hoppin' in the whip and I'm motherfuckin' crashin' it
Up over the curb like I'm Alek Minassian
Hoes suck my dick while I run over pedestrians
Este episódio alerta-nos para algo que temos vindo a ignorar: quando um tipo branco comete um acto de enorme violência contra alvos aleatórios, a tendência é dizer que é uma pessoa com problemas psiquiátricos. O que é só uma parte da questão. A outra, que o caso de Halle revela, é que essas "pessoas com problemas psiquiátricos" estão interconectadas na darknet mundial, trocam ideias e ressentimentos, e sonham tornar-se super-heróis daquela comunidade.
(E agora, só para verem o que sofre uma tradutora, peguem na letra daquela linda canção e tentem traduzir para português. Partilhem nos comentários, e depois veremos qual é a melhor versão. Mas entrem nisso por vossa conta e risco: não pago a sessão de psi de ninguém, aviso já!)

Sem comentários: