31 março 2021

a cidade a bem-querer



1.
Entrei no autocarro, descobri que não tinha bilhetes e fui comprar um ao condutor.
- Minha senhora, há mais de um ano que não vendemos bilhetes no autocarro.
- Ai! Então deixa-me ir sem bilhete até à próxima paragem com automático?
- Com certeza.
Saí na tal paragem. O ecrã da máquina apanhava o sol em cheio, não dava para ver nada. Comecei a tentar fazer sombra com a mão para escolher o bilhete que queria, e às tantas ouvi uma voz:
- Se eu me puser assim aqui, tem a sombra de que precisa?
Era uma senhora que viu a minha atrapalhação e veio logo ajudar.
Depois não se admirem por eu andar de cara alegre nesta minha vida.

2.
Mais adiante, o autocarro que me interessava passou por mim, mas a paragem era demasiado longe para tentar apanhá-lo. Contudo, o autocarro ficou tanto tempo parado que ganhei ousadia e apressei-me ligeiramente nos últimos dez metros. Quando estava a chegar à porta de trás, ele arrancou. Não me chateei. Afinal de contas, já estava parado há demasiado tempo.
Logo a seguir o autocarro parou porque o semáforo estava vermelho, e o condutor abriu a porta para eu entrar.
(Será que tenho algo escrito na testa?)

3. Cheguei ao Consulado à hora a que estava quase a fechar. Toquei à campainha, e o funcionário avisou-me logo que não sabia se me ia poder atender. Daí a bocado veio buscar a senhora que estava antes de mim, e avisou de novo: "está a ficar tarde". A que entretanto tinha saído deu-me uma piscadela de olho, "não se preocupe, ele vai atendê-la". Atendeu. Voltei para casa com o meu CC novinho em folha (e a fotografia ficou muito melhor que a de há 10 anos - é uma sorte o CC não ser vitalício, não queria nada andar com a foto de há 10 anos agarrada a mim até que a morte nos separe).

4. Quase a chegar a casa, e por já estar com a mão na massa (quer dizer: com os sapatos da rua calçados) resolvi fazer um desvio pelo lago. Estava cheio de nudistas a gozar o belo dia de sol que se pôs hoje. Passaredo, isso é que quase nenhum. Dois cisnes, um galeirão. Mas no tronco onde habitualmente há uma garça encontrei três tartarugas (há quantos anos não as via neste lago!) a aproveitar o sol como os nudistas. Perto de mim, duas crianças esperavam que a sua acompanhante acabasse o telefonema. Disse-lhes: "viram ali as tartarugas?" O rapazinho respondeu: "vimos. E tu hoje escolheste uma roupa muito bonita!" (garanto que não, mas pronto)

Conclusão. Um dia que precisem de sentir que toda a cidade vos quer bem, apanhem o autocarro e vão ao consulado de Portugal. Eu, para falar verdade, não precisava. Mas foi muito bom na mesma.
🙂


mas a história não acaba aqui


Apesar de o Fox já não estar cá, tenho continuado a ir ao lago diariamente controlar o passaredo. Andam muito animados, de modo que eu, clic-clic-clic, sempre que lá vou regresso com centenas de fotografias para escolher. E deitar fora, depois? Parte-se-me o coração. 

De modo que: aturem-me. Vai sobrar para todos.









 


30 março 2021

manhã triste






Era domingo, o dia em que o Matthias vinha buscar o Fox. Demos um último passeio matinal até ao lago. 

O sol ainda ia baixo, e projectava longamente as sombras das árvores pela encosta acima. 

Tinha comigo a câmara fotográfica, mas não havia passaredo. Nem o nudista dos dias pares.
Estariam todos a dormir até tarde? 

No sítio onde habitualmente andam os cisnes estava sentada uma mulher sem-abrigo, embrulhada em cobertores. Por sorte estava um dia lindo - ao menos, isso. 


okupas



Era dia par: o nudista não apareceu. O lago parecia deserto - e eu aliviada, porque mais uma vez me esquecera da câmara fotográfica. 

Mas eis que do nada aparece uma garça, e se pespega em cima de hastes frágeis onde nunca costuma pespegar-se. Roída de fúria por não ter comigo a câmara, tirei as fotografias possíveis com o telemóvel-pós-jurássico-mas-mesmo-assim-pré-histórico.

No ninho que o galeirão tem andado a fazer com tanto esforço encontrei uma pata feita okupa. Ai ele também há disto entre os animais?

Piores okupas ainda foram os jovens finalistas que ali tinham estado a festejar no dia anterior: além da barulheira que fizeram, deixaram o parque num estado lastimável, com garrafas e cacos de vidro no chão, e lixo por toda a parte - inclusivamente na margem do lago junto ao ninho. 

Ia dizer "se é isto a futura elite da Alemanha..." mas calei-me a tempo, porque frases dessas nos põem vinte ou trinta anos em cima como por magia, e eu ainda sou demasiado nova para parecer uma velhota rezingona. 

Quando lá voltei à tarde encontrei três raparigas a juntar as garrafas de vidro para deixar junto do caixote do lixo.
As raparigas, sempre as raparigas... 
Em termos de elite, parece que é assim: elas mostram solidariedade ao cuidar dos rapazes que beberam demasiado, elas mostram consciência e responsabilidade ao corrigir os erros cometidos pelo grupo, mas o mais provável é que sejam eles - os que bebem mais do que aguentam, os que partem garrafas de cerveja num parque, os que urinam por ali em vez de irem à casa de banho pública que fica a 100 metros - que chegarão aos postos de chefia. 

Entretanto, seja por culpa da pata, seja por culpa dos finalistas do liceu: nunca mais vi os galeirões de volta daquele ninho. 






sobre os dois feriados extra que estavam para acontecer na Páscoa alemã de 2021


Menos de dois dias depois de anunciar a proposta de fazer dois feriados extra na Páscoa, com a intenção de parar o país durante cinco dias seguidos, Angela Merkel deu-se conta de que essa medida não era exequível em tão curto espaço de tempo e recuou, pedindo desculpa à população pelo acréscimo de incerteza causado por estas reviravoltas.

A comunicação era sintética e clara, mas - já o sabemos o mais tardar desde que o nosso planeta sofreu um achatamento drástico na cabeça de alguns iluminados - a clareza da informação não impede as fake news de fazerem uma carreira de sucesso. À procura de #Merkel no twitter, descobri que no Brasil andavam a espalhar a "notícia" de que Angela Merkel tinha finalmente reconhecido a inutilidade do lockdown, e tinha pedido desculpa ao povo alemão. E que, portanto, quem tem razão é o Bolsonaro blablabla.

Aqui deixo a comunicação da Angela Merkel, com legendas em português. Não é que o tema seja realmente actual (de momento, o tema é um duríssimo braço de ferro entre a chanceler e os ministros-presidentes, algo que não fazia falta nenhuma a esta democracia) mas este vídeo da semana passada é um bom exemplo de como se deve fazer comunicação em tempo de crise e também uma prova da esperteza política da Angela Merkel ("por inerência do cargo, a culpa é minha" - hehehe).

 

covid party



Começo a suspeitar que o meu nudista só aparece nas manhãs dos dias ímpares. Ao quinto dia, lá estava de novo a limpar o chão junto às margens. Desta vez sem calções (ou seja: literalmente nudista), mas fiz de conta que não vi, e não fotografei.
(Felizes os que acreditam sem ver.)

No passeio da tarde tive de me desviar de um grupo de jovens que vinham a sair do caminho que tomo habitualmente para chegar ao lago. Um dos rapazes estava tão embriagado que nem se aguentava nas pernas. As raparigas - sempre as raparigas - ajudaram-no a pousar no passeio.

Atrás desses havia um grupo ainda maior, parado numa parte mais larga do caminho. Covid party? Mudei a minha rota para não ter de me cruzar com eles. Embora, pensando bem, provavelmente houvesse pouco risco: com a quantidade de vapor de álcool que saía daquelas bocas, o ar devia estar muito bem desinfectado...

O tempo estava feioso. Num tronco sobre a água, encontrei dois patos à espera de dias melhores: um caso de pato escondido com a sombra de fora.

Também encontrei o marido daquela vizinha que no dia anterior me tinha contado a história interminável. Vinha com o cão, e parou para meter conversa com três miúdas que estavam sentadas na relva. Pensei "então que é isto?!" mas depois reparei que uma delas era a sua filha. 

Disse-me que era uma festa de finalistas do liceu. Estava a decorrer a semana temática (bem me lembro quando no dia dos "cartoons" a minha filha foi de metro para a escola com o cabelo armado como se fosse a Marge Simpson), e nesse dia o tema era "red light/blue light". Os rapazes vinham vestidos de chulo, as raparigas vinham despidas de prostituta, e pelos vistos estavam a beber o mais que podiam para atrair a luz azul da ambulância. Embora o mais provável fosse atraírem a luz azul do carro da polícia, dado que estavam em flagrante desrespeito pelas regras de contenção da pandemia.

Também não fotografei - porque os adolescentes têm o direito de asnear sem deixar registo fotográfico que os envergonhe nos setenta anos subsequentes. E a tolerância em relação aos adolescentes finalistas de 2020 e 2021 tem de ser ainda maior, uma vez que este grupo etário está a pagar um preço altíssimo para proteger a saúde de todos nós. Embora tivesse sido simpático da parte deles se andassem de máscara...
("lembram-se na semana dos finalistas, quando bebemos cervejas com palhinhas por baixo das máscaras?" / "hahahahaha" / "hehehehe" / "palhinhas?! isso deixou de existir pouco depois"

A polícia não veio. Bem vistas as coisas, não há motivo para perseguir filhos de boas famílias em Charlottenburg quando toda a gente sabe que o problema são as covid parties que têm lugar nos bairros de imigrantes turcos e árabes...

Para evitar o ajuntamento no meio do caminho subimos umas escadas feitas de troncos na encosta abrupta. O meu vizinho - que tem a minha idade - tropeçou duas vezes. Disse que era por serem degraus irregulares, mas eu fiquei a pensar se não será também consequência da covid que teve há um ano. Ainda não recuperou o olfacto e o paladar, e pergunto-me se a doença não terá afectado também a sua capacidade de reagir rapidamente a situações inesperadas, como por exemplo degraus de alturas diferentes.  

Ao passar por um talhão cheio de silvas no meio das casas vendidas por vários milhões (devem estar à espera que o valor do terreno duplique) (e não vão ter de esperar muito) apontou para o meio da vegetação, onde - segundo consta - há um covil de raposas. E mostrou-me um pintarroxo sentado num ramo em primaverança feliz. O passarinho desapareceu logo que tirei a primeira fotografia. Com tamanha velocidade de reacção, este não deve ter tido covid. 


29 março 2021

oportunidade perdida


No quarto dia saí bem cedinho com o Fox, e por ser parva - e achar que já tinha fotografado todos os pássaros do lago em todas as situações possíveis e imaginárias - decidi sair sem câmara fotográfica. 

Marcar "parva" com bold: foi justamente no dia em que um bando de patos apareceu a voar na minha direcção e aterrou na água a 3 metros de distância. Se tivesse uma máquina fotográfica como deve ser tinha apanhado aquele momento em que, por serem tantos, podia registar simultaneamente todas as fases da aterragem. Mas estava tão estupefacta que nem me ocorreu sacar rapidamente do telemóvel. Desde então, não me sai da cabeça a imagem daquelas patas estendidas como trem de aterragem sobre a água. 

À tarde regressei ao lago com o equipamento completo. Só encontrei uma garça meio escondida por trás da ramagem, e mais um passarão com roupa de mergulhador. 



o nudista que afinal não




E ao terceiro dia... o nudista voltou ao lago! Esqueci-me da boa educação, e fotografei-o ao longe, só para não dizerem que sou mentirosa. Depois, ao perto, percebi que estava a ser mentirosa: desta vez estava vestido, com calções em tom nude. 

Continuava a trabalhar com afinco. Os cisnes passaram por ele com as asas levantadas, sinal de estarem um bocadinho à beira de um ataque de nervos, mas como ele não lhe ligou fizeram uma pequena inflexão de rumo e vogaram na direcção dos gansos bravos. O homem tirou do lago uma caixa de metal pesadíssima que não se percebe o que terá sido na vida real, mais umas quantas garrafas, e depois foi nadar. 

Apesar de estarmos no centro de Berlim, deixou a bicicleta, a roupa e os sapatos por ali - à mão de serem roubados. Deve ter uma confiança inabalável no karma. 

O karma tinha de ser muito ingrato para deixar que lhe roubassem as coisas depois de tudo o que ele faz por aquele lago. Trabalho de Sísifo: para onde quer que se olhe, há uma garrafa de cerveja, um caco de vidro, uma barra de ferro na água. 



Quando estava para me vir embora começou a acontecer tudo muito depressa. Primeiro apareceu uma vizinha que andava a passear o cão, depois apareceu um corvo-marinho no poiso habitual das garças, depois a vizinha começou a contar uma história interminável que tinha acontecido ao cão dela, e eu a ouvir e a dizer que sim e clic-clic-clic (mais 50 fotografias). No regresso a casa apareceu uma garça que meteu conversa com o corvo-marinho, e eu clic-clic-clic e a vizinha "e então o outro cão, aquele amarelo, veio ter com o meu e percebi logo que a coisa ia correr mal, o meu fugiu na minha direcção, os outros dois, os que são bem-educados, vieram também..." e eu "desculpa, deixa-me só fotografar mais este ganso", o maldito ganso a meter-se na parte das canas, eu a querer esperar até ele ir para uma zona aberta, e a vizinha a continuar a andar e a falar "o cão amarelo começou a brincar com os outros, e o meu também, mas a determinado momento..."

Agora sei como é que o Fox se sente quando quer ir à sua vidinha no parque mas é obrigado a andar ao meu ritmo para que não haja dúvidas sobre quem é que manda na nossa relação. Ora bem: a autêntica alfa é a minha vizinha.   



Ao fim da tarde fui dar uma série de voltas na zona comercial do nosso Kiez, e de repente o Joachim e o Fox apareceram-me à frente. Iam fazer jogging na floresta. Foram e voltaram enquanto eu estava nas minhas andanças, de modo que me cruzei duas vezes com eles. Senti-me como se estivéssemos numa aldeia, e a vida acontecesse toda à volta da praça central. 

Ao chegar a casa fotografei os crocus do nosso jardim de muito perto, para se poder ver como estão lindos mas ninguém reparar no estado em que está o que já foi relva e agora é vegetação espontânea. 
Ando cá com uma ideia de pôr abóboras nessa parte do terreno. Dá flores para as abelhas, dá com que fazer umas boas sopinhas, e tem folhas enormes para cobrir aquela tragédia no jardim da frente. Digo que é permacultura, e pronto: na praceta da nossa aldeia não hão-de ter nada que dizer.  


quase Edward Hopper, quase aguarelas, quase dueto


Retomando o relatório da semana passada: no segundo dia com o Fox fomos de manhã ao lago pelos motivos habituais, e também com alguma curiosidade para ver se o nudista estava lá de novo. Não estava. 

Quando regressámos à tarde continuava a não haver nudistas. 
Havia uma mulher jovem sozinha a olhar para o lago - nua, de certo modo - mas o Hopper faltou ao encontro. 

Chovia um pouco, e dei com três patos alinhados num tronco caído, reflectidos na água. Três vezes dois, seis. Quem me dera que o dia estivesse de sol, ia ser uma fotografia bem gira. O problema é que se o dia estivesse de sol, eles não se abrigavam naquele sítio.
(Nunca se pode ter tudo.) 

Por causa da má luz, as fotos ficaram pouco nítidas. O que não faz mal: faz de conta que eu sei muito, e consigo tirar fotografias como se fossem aguarelas. 



À noite tive ensaio do meu coro. O Fox estava bastante intrigado com as figuras que eu fazia em frente ao computador. Mas vá lá que não se pôs a cantar a vozes comigo. 




férias em tempo de covid - três tristes histórias

Informa o Spiegel que nos EUA o aluguer de carros está por um preço insuportável. Algo como 300 ou até 500 dólares por dia. 

Deve-se isto à covid: quando os aviões ficaram em terra, as frotas de carros de aluguer ficaram paradas. Como as companhias de aluguer estavam desesperadas para realizar algum dinheiro, venderam boa parte dos carros no mercado de usados. Agora que a população recomeçou a voar e quer ir fazer férias aqui e ali, faltam os carros. E como as empresas de aluguer estão com as reservas financeiras abaixo da subcave, não têm como comprar novos carros para responder à procura. 

Nota mental: da próxima vez que me acontecer de querer alugar um carro e custar os olhos da cara, devo dar uma espreitadela no mercado de carros usados com garantia. Às tantas consigo um negócio mais barato que alugar um carro a 500 euros por dia. E no fim das férias vendo.
O dou a alguém que precise, que é assim que se conquista o céu e ainda se poupa dinheiro. 

(Esta nota mental é absolutamente escusada. Se me acontecesse de ir para um sítio onde o carro custava 500 euros por dia, o mais provável era ficar em casa.)

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Nesta maneira alemã de ir gerindo a crise covid como quem navega à vista da costa, alguém com a necessária autoridade declarou Maiorca como zona sem risco, e não pensou nas consequências dessa declaração. O resultado é que a Alemanha está praticamente a mudar-se em peso para Maiorca (exagerei ligeiramente), os números de infecções na ilha já começaram a aumentar, o ressentimento faz-se sentir em quem decidiu ficar em casa por uma questão de responsabilidade individual (afinal de contas alguém tem de fazer o esforço para manter pandemia em níveis relativamente controláveis).
Há dias uma amiga minha comentava que não pode ir a Colónia visitar a mãe, mas podem-se encontrar em Palma. 

As pessoas lá foram para as suas ricas férias e agora, quando já estão de papo para o ar na praia, o presidente da Câmara de Tübingen lembrou-se que seria boa ideia obrigar toda a gente que regressa de férias a fazer a quarentena obrigatória num desses milhares de hotéis que estão vazios. 

Isto leva para um nível muito superior de inesperado aquela ideia de "pôr roupa interior decente e arrumar a casa antes de sair, porque uma pessoa sabe como sai, mas nunca sabe como regressa".

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Entretanto, os números de pessoas que querem fazer o teste PCR antes de irem de férias explodiu. Como as capacidades não são ilimitadas, os laboratórios começaram a não garantir a entrega do teste em menos de 48 horas. Excepto alguns que custam o dobro, e fazem em 24 horas. Ou até em 3 horas, mas custam o quádruplo. Quer ir com a  família de férias para Maiorca? Null problemo - só tem de pagar em testes o equivalente a um carrinho em segunda mão, ou a alugar um carro para o fim-de-semana na Flórida... 

  

nos arredores dos famosos (2)


Voltando ao tema dos famosos: uma vez fui convidada para contracenar com o Bruno Granz numa encenação caseira que recuperava a tradição dos salões culturais na Weimar do classicismo. Era uma peça Dada, eu faria de nariz e ele era a boca ou sei lá o quê. Mas pensei que me ia envergonhar à grande, logo eu com o meu alemão de sotaque francês, e preferi ir passar o fim-de-semana fora da cidade. Nem sequer assisti à peça, que - segundo me disseram - foi um êxito.
E vocês? Quantas oportunidades únicas perderam estrondosamente?


27 março 2021

mas os ciganos, Senhor...

Partilho um texto da Leah Pimentel.
Dilacerante. 
A Laurinha morreu faz hoje 3 anos. 


"Chegou a hora de contar a história
Há 5 anos morava em Vila Real de Santo António. A cinquenta metros de mim, uma comunidade cigana, daquelas com burros, luto carregado e um ou outro carro a cair de podre. Em tudo diferentes dos ciganos que vendem roupa nos mercados. Bom dia, vizinha, olá boa tarde, laranja para cá, iogurte para lá, até um deles se assomar para ter uma conversa. Que gostava muito do meu falar e que me queria convidar a ser madrinha do bebé que aí vinha. Jovem, olhar aberto, verde, frontal. Aceitei. No dia seguinte fui convidada pela matriarca para beber café. A barraca muito limpa, e já tinham duas meninas. A Miriam e a Naíde. Expliquei que madrinha não sabia bem, já que não tenho nenhum credo. Não, comadre, é da lei dos ciganos, não é preciso igreja.
Assim conheci a Daniela e o David. 24 e 26 anos. Aquele bebé era um acidente, não queriam ter mais, mas o planeamento familiar tinha falhado. Recebiam o Rendimento Mínimo e a Naíde estava a ser seguida em Faro por um estrabismo grave. Era bebé de colo. A minha comadre é danada para a limpeza, e à custa de tanto esforço, de carregar tantas bilhas de água, começou com contracções. No regresso de Faro, vinha o David a guerrear com ela, que lhe podia pedir ajuda, e bate no carro da frente. 1 500€ de arranjo, que emprestei, porque no momento podia e eles precisavam da carrinha para o ferro velho. A cada dia 11, antes de passarem para casa vindos de levantar o vale paravam à minha porta para o pagamento dos 150€ combinados. Nunca falharam. O David é convocado para uma formação profissional, das que servem para enganar estatísticas e encher os bolsos a uns quantos. Era em Tavira, contas feitas era mais barato ir de comboio, 2,70€ para cada lado, 5,40€ por dia, 129,60€ ao fim do mês. Não dava para tudo, decidem ir dormir na carrinha para Tavira, estacionados à frente do Centro de Formação. A Miriam ficava a cargo de uma cunhada, para não faltar à escola. Foram corridos de todo o lado, e por mais que explicassem, não conseguiram. Nem ao lado das caravanas dos holandeses que passam admiráveis férias debaixo do viaduto, com vista para os caixotes de lixo do mercado. Não desistiram e voltaram as viagens de comboio. A Naíde tem que ser levada a Lisboa, ao Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto, por três vezes, para consultas, testes e afinação de óculos de correcção. De cada vez o David pedia o justificativo para apresentar no curso. O dito mencionava o período em que estiveram presentes no local, sem mencionar o tempo de viagem, mais de 3 horas em cada sentido. O David é expulso do curso por faltas injustificadas, e sem direito a qualquer subsídio durante 2 anos. Tentei, claro que tentei explicar, mas foi batalha perdida. Os papéis falavam mais alto.
Nasceu a Violeta, a minha primeira afilhada, em Dezembro de 2013 e a barraca onde viviam estava a cair. O presidente da Câmara deu-lhes um apartamento na Vila e quando se quiseram mudar, os outros ciganos (Rom), que os meus são Kalderash, juntaram-se e não os deixaram tomar posse da casa. Eram mais de 300, meteu polícia, e o Presidente nada pode fazer. Voltaram para a barraca com a promessa de reconstruírem uma ruína que havia mesmo ali ao lado. O implante da Daniela falhou e fica grávida da Laura, que nasceu com as obras paradas. Que não havia verba. Mas havia pedreiros. Rapidamente peço uma lista do material em falta, e com a ajuda de muitos de vós, em menos de 3 semanas havia paletes de tijolos e de sacas de cimento, tijoleira para o chão e paredes, portas, janelas, loiça de casa de banho, material eléctrico, electricista pro bono, fotos e contas aqui apresentadas. Estamos ainda no período em que o David não recebe qualquer apoio, devido às faltas “injustificadas”. Os pedreiros são transferidos para outras obras da Câmara, o meu interlocutor mostrou-se um homem sem carácter, mentiroso e sempre a jurar por deus e a gabar-se do quanto rezava por aquela família nos encontros semanais do grupo de reflexão ultra católico a que pertence.
A barraca cai com a chuva, a Laura nasce, e vão todos dormir para dentro da carrinha. O David mal se tapa, para que a mulher e as quatro filhas possam ter todos os cobertores. Apanha uma pneumonia, que passa à Laura, então com dois meses.
No meio disto tudo, nem um dia a Miriam falta à escola, o pai está presente em cada reunião, é estimada por todos, boa aluna, e a Naíde entra para a creche. Querem que as filhas estudem, sonham com universidades, e não há casamentos combinados para nenhuma delas.
A Laura nunca recupera, não deixa de ter dificuldades respiratórias, é transferida para Lisboa, para uma bateria de testes, entra em coma a primeira vez, e passa mais tempo no hospital que em casa. O David encarrega-se das outras três meninas, comida, banhos, escola, enquanto se divide entre Vila Real de Santo António e o Hospital de Faro.
Muito tempo passado, lá acabam a reconstrução da ruína. Dois meses depois, a bancada da cozinha em alvenaria, construída pela Câmara, cai em cima do pé da Daniela. É a 2ª vez que as assistentes sociais se dão ao prazer sádico de assustar a Daniela com ameaças de que lhe retiram as filhas porque a cozinha não tem condições. Se falaram com a Câmara, se pressionaram para que lá fossem reparar o erro? Claro que não. Dá mais gozo apavorar.
A Daniela pede laqueação de trompas e a médica recusa alegando que é muito jovem.
Chega finalmente o dia em que pode voltar a receber o Rendimento Social de Inserção e falta à reunião, por, mais uma vez, ter que levar a Laura de urgência para Faro. De cabeça perdida, não entrega o justificativo, nem precisava, porque não é aceite, e está outra vez suspenso durante 6 meses de qualquer apoio, para além dos abonos das crianças.
São gente boa, de confiança, têm a chave da minha casa, são respeitados na Vila. Respeitados ao ponto de terem crédito nas bombas de gasolina de cada vez que têm que vir para Faro ou ir para Lisboa.
A Miriam tem onze anos, está no 3º F, que não sei o que é no novo sistema escolar, a Naíde tem cinco e anda na pré, e a Violeta anda na creche.
Não preciso dizer que ninguém dá trabalho a um cigano. E mesmo que dessem, quanto ganharia? Quanto custa ir trabalhar? É fácil fazer as contas. 500 euritos no máximo, tirem o combustível e uma bucha para enganar a fome, quanto leva um homem para casa? E quem leva as filhas à escola, que ainda é longe e não há transportes? E quem leva a Laura ao hospital? E quem trata das meninas quando a Daniela está internada com ela?
Só falta apontarem uma pistola à cabeça do David e dizerem-lhe VAI ROUBAR!. Mas eu sei que não vai. Para além de não ter jeito e de para isso não ter sido educado, gosta demais daquela mulher e daquelas quatro filhas para arriscar fazer má figura ou perder a honra. Assim são os meus compadres.
Obrigada aos que confiam, obrigada mil vezes a quem me tem ajudado a que eles não passem ainda pior." Leah Pimentel

24 março 2021

it's the virus, stupid


No princípio da semana a Angela Merkel reuniu com os ministros-presidentes dos estados alemães para tomar decisões sobre o que fazer perante o actual descontrolo da situação na Alemanha. As hesitações dos políticos e os truques que alguns responsáveis regionais arranjaram para iludir as regras combinadas por todos foram fatais para a luta contra a mutação inglesa. Esta terceira vaga está a ser ainda mais rápida e avassaladora do que já se temia. 

Os governantes decidiram que o lockdown vai continuar pelo menos até meados de Abril, e que em alguns casos será até necessário accionar o travão de segurança (ou seja: medidas ainda mais rígidas) se a evolução do número de infecções em alguma região assim o exigir. O que dá quase meio ano em confinamento, a contar desde o verão passado. Começou no dia 2 de Novembro com um conjunto de restrições de alcance relativamente limitado: cultura, restaurantes, cafés. Em meados de Dezembro deram-se conta de que estávamos a caminhar para um trágico "Natal dos hospitais" e fecharam tudo, ignorando a necessidade existencial dos comerciantes de venderem nessa época para conseguirem sobreviver à crise. Abriram leves excepções para os encontros familiares natalícios, e proibiram tudo na passagem de ano. O país continuou em lockdown até à segunda semana de Março, quando recomeçaram a facilitar um pouco. Logo a seguir foram obrigados a retroceder. Pela segunda vez consecutiva não poderemos festejar a Páscoa com a alegria e despreocupação de outros anos.  

Da parte da Ciência vem a crítica de que tudo isto já devia ter acontecido muito antes, e com mais determinação, quando o número de infectados era muito reduzido e portanto mais facilmente controlável. Quanto mais o governo espera antes de tomar a decisão de reduzir drasticamente os contactos entre as pessoas, mais o vírus se expande, obrigando depois a tomar medidas muito mais duras, por muito mais tempo e com custos maiores do que se se tivesse feito um esforço sério de contenção na fase inicial. Elementar, mas muito difícil de pôr em prática, devido ao coro de lamentações, críticas e exigências - "mas as crianças", "mas a economia", "mas as pessoas que querem a sua vida". Um coro especialmente ruidoso e difícil de acalmar quando os números de infectados são muito baixos. A "inteligência do enxame" no seu melhor...   

O lockdown alemão continuará, portanto. O período da Páscoa, que já é uma ponte de feriados de sexta-feira santa até segunda-feira, vai ser alargado à quinta-feira.
[Coisas da crise covid: enquanto escrevia o post, esta medida foi cancelada, devido a inúmeras críticas, e a Angela Merkel pediu desculpa. Agora há quem grite que ela se deve demitir. Em plena terceira vaga...]
Na Páscoa abre-se uma ligeira excepção: permitem-se encontros de pessoas de duas casas diferentes, até cinco adultos no máximo. Os hotéis, restaurantes e cafés permanecem fechados.
Não ouvi nada sobre o que vai acontecer com o sector da cultura, mas temo que os museus sejam de novo encerrados e não haja espectáculos nos moldes do concerto piloto a que assisti na semana passada, com testes à porta e medidas de segurança muito apertadas.

Uma das propostas do governo é manter abertas apenas as escolas que testarem todos os alunos duas vezes por semana. Os professores estão muito interessados nisso. Mas já há famílias a dizer que não querem que testem os seus filhos, "porque se der positivo, a família toda tem de ficar de quarentena".
(E acontece isto no país que deu ao mundo tantos filósofos e matemáticos...)

Fiz com uma amiga uma aposta: até ao dia 22 de Agosto estaremos ambas vacinadas. Champanhe e ostras. De cada vez que há notícias sobre mais um atraso no processo de vacinação, ela diz-me que mais vale eu comprar já o champanhe e bebermos para aguentar a frustração. Eu insisto: calma, que a esperança é a última a morrer.  

Outra amiga dizia-me que suspeita que isto ainda dure uns cinco anos. Porque nós podemos ter vacinas, mas os países pobres não têm. E enquanto o vírus andar à solta pelo mundo, sabe-se lá que mutações continuará a sofrer, e que novas vacinas será necessário desenvolver. Deste ponto de vista, estamos realmente todos no mesmo barco: enquanto os mais pobres dos países mais longínquos não estiverem seguros, nós - as populações dos países ricos - também não estaremos. Às tantas, e no nosso próprio interesse, já se fazia um programa mundial para garantir vacinas a todos os países?

Nas redes sociais há quem critique imenso a Angela Merkel. Uns dizem que exige demasiado e se comporta como ditadora, outros dizem que falhou e está a deixar descarrilar o país por não conseguir impor as medidas necessárias. Também há quem a louve como um dos poucos políticos alemães em que se pode confiar. Um comentário em especial chamou a minha atenção: dado que a Merkel se vai retirar da política no fim deste mandato, tem a liberdade de tomar medidas a pensar no bem da população, inteiramente à margem de cálculos eleitorais.  

À minha volta - mas a uma distância de segurança - repetem o lamento: "já não aguento mais o lockdown!" 

Ontem, por exemplo. O meu coro continua a ensaiar por zoom, e no intervalo conversamos uns com os outros em pequenos grupos. A amiga com quem fiz a aposta sobre as vacinas perguntou aos outros como se sentiam, e todos respondiam o habitual: "vamos andando, estamos relativamente bem". Ela insistia: "não acredito que vocês estejam bem apesar desta prisão domiciliária em que estamos a viver há um ano! Esta situação é insuportável, e a incompetência dos nossos políticos torna tudo ainda mais frustrante. Só fazem asneiras, não se aguenta! Agora, por exemplo: fecham as lojas na quinta-feira da semana de Páscoa, para ir ainda mais gente encher os supermercados no sábado."

Quando ela insiste assim, as pessoas começam a baixar as guardas e a reconhecer que de facto estão muito cansadas disto tudo. Mas acrescentam logo que conhecem bem a sua posição de relativo privilégio no panorama mundial.  

Ontem foi a minha vez de fazer variações desse discurso. Falei de uma família que conheci recentemente - mãe e dois filhos adolescentes - que são cristãos sírios. Fugiram de Damasco para o "Vale dos Cristãos", e daí para a Alemanha. Não se sentem seguros no seu país. Temem que um dos filhos seja raptado na rua, como tem acontecido tantas vezes. O pai continua na Síria, a trabalhar para garantir o sustento dos três que estão na Alemaha. A mãe tem de aprender alemão, arranjar casa e escola para os filhos, arranjar trabalho. Só então o pai poderá vir.  

Entre estar na situação desta família, e passar mais cinco anos nestes lockdown que temos tido, nem hesito. E esta família é ela própria muito privilegiada, se comparada com os refugiados que passam anos com a vida e a dignidade suspensa nos milhentos campos dos dois lados da fronteira da Europa.

Ia eu lançada nesta conversa de chover no molhado, quando a minha amiga - que se está a afundar cada vez mais no seu próprio pessimismo - me interrompeu, oferecendo-se para dar aulas gratuitas de alemão à família síria. Por zoom, para já, e presencial quando o tempo melhorar e se puderem encontrar ao ar livre. O que me lembrou imediatamente a canção do Adriano Correia de Oliveria: mas há sempre uma candeia / Dentro da própria desgraça. A minha amiga acendeu uma candeia para a família síria, e com esse gesto generoso e impulsivo vai iluminar também a sua própria escuridão.   

Entretanto: para já temos mais um mês de lockdown, e depois se verá. Mas não me queixo, porque tenho consciência dos riscos que corremos actualmente:

Os maiores de 80 anos já estão praticamente todos vacinados, o que é um alívio. No entanto, devido ao actual aumento exponencial de infectados, dado que a variante britânica é muito mais infecciosa, os hospitais têm cada vez mais doentes de covid das gerações mais novas. Há dias, num noticiário televisivo, informaram que a nova distribuição etária coloca um problema aos hospitais porque (cito) "dito com toda a brutalidade, os doentes mais jovens demoram mais tempo a morrer". Ou seja: nesta vaga, os doentes de covid em estado grave permanecem mais tempo nos cuidados intensivos. Mesmo que o número absoluto de doentes graves não ultrapasse o das vagas anteriores, os hospitais terão menos capacidade para dar uma oportunidade a todas as pessoas que precisem. Dito de outra forma: a tragédia da triagem poderá voltar a colocar-se. 

Também se fala cada vez mais das sequelas de longa duração que o vírus tem deixado em 10% das pessoas que foram infectadas. É assustador o número de pessoas jovens que tiveram covid com sintomas leves e mais tarde desenvolveram sintomas graves que não se sabe se e quando vão desaparecer: dificuldades de concentração, de memória e de raciocínio; dores musculares e de articulações; dores de cabeça; perda parcial de visão, olfacto e paladar; cansaço extremo; problemas de coração, rins, pulmões e intestinos, ansiedade, depressão. 

Sabendo isto, acato as medidas impostas pelo governo com um enorme sentimento de gratidão: a sociedade está a fazer colectivamente todos estes sacrifícios para me proteger, e aos meus. 



22 março 2021

passarinho e passarões


Esta semana o Fox está connosco, porque o Matthias está a fazer exames online e dá pouco jeito ter o cão ao lado a ladrar. Portanto, preparem-se: vai haver relatórios quotidianos das pocinhas cá da zona.

O primeiro passeio de hoje já nos deu bastantes surpresas.

Ao chegar ao lago, fomos testemunhas de mais uma daquelas típicas cenas primaveris de paz e amor: um cisne perseguia um ganso-bravo. O ganso-bravo deu uma leve agitadela de asas, elevou-se um pouco acima da água, e ganhou distância de segurança. O cisne perdeu o interesse neste inimigo, e deslizou majestosamente para o seu canto habitual - que por acaso é no extremo oposto do lago. Anda muito territorial, o bicho.





Nós fomos atrás dele, mas por terra. De caminho descobri uma garça escondida com o rabo de fora. Enquanto a filmava, ela deve ter visto algo com aparência comestível na água, mas deixou ir. Já eu, deixei-a ficar - porque se tentasse filmá-la até ela finalmente atacar o seu pequeno-almoço, arriscava-me a ganhar o concurso da mulher estátua de Berlim. O que estes bichos demoram antes de decidirem o que vão comer!



Mais à frente cruzei-me com homens que andavam a limpar o parque. Suponho que sejam medidas de ocupação para desempregados de longa duração, e que ninguém leve isso muito a sério. Nunca vi algum deles realmente preocupado com o trabalho e a produtividade. 

Ao chegar ao canto onde costumam estar os cisnes encontrei um homem nu. Não tem que admirar: fazia 5 ou 6 graus centígrados, e um solzinho que era um luxo. O homem andava dentro da água com luvas de borracha a apanhar as garrafas que tinham atirado para o lago, e ia-as pondo no murete da margem. Muito bem alinhadas, com o azul do lago por trás e em contraluz, teriam dado uma fotografia engraçada. Mas também apanhava o garboso jovem em pelota, e tive um certo pudor. 

Enquanto estava por ali a decidir se fotografava ou tudo ou nada, o palerma do Fox foi a correr ter com dois cães que vinham à trela, enrolou-se com um deles, eu fui o mais depressa que pude tentar desenrolá-los, a dona dos cães tentou afastar-se da cena puxando-os pela trela - e acabou a cair por cima deles. Ai! Por sorte ninguém se magoou, só o meu amor-próprio de responsável/irresponsável por um cão maluco. Pus-lhe a trela, e vim a ralhar com ele durante metade do caminho para casa. Parecia a parábola do homem a quem perdoaram uma dívida: a senhora que caiu não ralhou comigo, mas eu, em compensação...
Começa bem, a nossa semana.

O rapaz, entretanto, tinha posto as garrafas junto a uma árvore, e já ia a nadar a meio do lago. Fiquei a pensar porque será que os cisnes não atacam os humanos que se atrevem a invadir o seu território. Ainda bem que não atacam, como é óbvio, mas já várias vezes os vi armados em pacifistas quando passam perto dos humanos que lhes invadem o território.

Regressei a casa. Cruzei-me de novo com os apanhadores de lixo, que estavam agora sentados num banco de jardim a gozar o sol matinal e a controlar o que se passava nos seus telemóveis. Resisti à tentação de os informar que se quisessem podiam apanhar as garrafas partidas que o nudista juntara. 

Ao chegar a casa, o Matthias telefonou. O primeiro exame correu bem, e está cheio de saudades do Fox. Resisti à tentação de o informar que eu cá já não tenho saudades nenhumas... 


21 março 2021

concerto piloto



Berlim está a reabrir a Cultura com experiências piloto no teatro, nas salas de concerto e na ópera. A Filarmonia, por exemplo, pôs em venda online 1000 bilhetes para um concerto com o Petrenko, que esgotaram em três minutos, apesar de cada pessoa só poder comprar dois bilhetes.

Foi ontem, e nós estávamos entre esses mil berlinenses sortudos. 

A última vez que tinha estado naquela casa foi na véspera do confinamento light, que começou no dia 2 de Novembro, foi reforçado a 15 de Dezembro, e só neste Março começou a ser aliviado (veremos por quanto tempo). Depois da estadia na Bretanha demorei algum tempo a voltar a entrar na rotina cultural de Berlim. Enquanto hesitava, o vírus reconquistava território. Optimista, em meados de Novembro comprei bilhetes para 3 concertos, assisti ao primeiro desses e logo a seguir... "vai ficar tudo bem" em casa. Ofereci os bilhetes restantes à Filarmonia, só para poder dizer que sou mecenas deles. 

Devia contar sobre o concerto de ontem, mas não resisto a fazer uma pequena incursão down memory lane até ao de 1 de Novembro, com a Nina Hoss a dizer (com tanta graça!) um texto de Loriot, e os músicos da Filarmónica a tocar o Carnaval dos Animais numa sala cheia de lindas esculturas de papel. Tudo perfeito - até nós, o público, com o rosto alegremente coberto por máscaras artesanais cheias de colorido, essas que agora são proibidas nos supermercados, nos transportes públicos e neste tipo de eventos. E um sabor especial a fim do mundo, porque bem sabíamos que no dia seguinte iam fechar novamente todas as actividades culturais, inclusivamente museus e exposições. Tudo. 





O concerto de ontem era também por isso muito importante para nós. Fechar o hiato, retomar a normalidade possível, deixar para trás aqueles quase cinco meses em que fomos existindo fora do tempo. 

Dirigi-me para a Filarmonia numa mistura de ansiedade e alegria - e não era a única nesse estado de exaltação. Estávamos a viver um marco importante para a cultura neste tempo de pandemia. Não por acaso, chamaram ao evento "concerto piloto": tratava-se de definir os moldes em que podem ser reiniciadas as actividades culturais apesar da pandemia. 

Tudo decorreu em condições muito controladas: o portador de cada bilhete estava identificado, e no dia do concerto tinha de fazer um teste rápido num dos centros indicados pela Filarmonia. O teste foi pago pela cidade. A hora foi marcada com antecedência, para reduzir ao máximo o tempo de espera. Só deixavam entrar as pessoas que mostravam o resultado desse teste no telemóvel, juntamente com um documento de identificação e o bilhete nominal. 

Mil bilhetes é menos de metade da lotação da sala, as pessoas ficaram todas separadas umas das outras por um lugar vazio e mantiveram as máscaras durante todo o tempo que estiveram dentro do edifício. Não houve intervalo e muito menos serviço de bar. Mas estavam a oferecer garrafas de água à entrada. 

Como tínhamos teste marcado na Filarmonia, entrámos para o foyer da Kammermusiksaal. Em menos de dez minutos tínhamos o teste feito, e fomos esperar para as traseiras do edifício, onde havia uma roulotte de street food e café. Quinze minutos mais tarde recebemos no telemóvel a mensagem com o resultado (para os mais cuscos dos leitores: negativo, yey!), e pudemos entrar na sala grande da Filarmonia - onde um grupo de metais dava um concerto para a sala que se ia enchendo. 

Antes do concerto, dois pequenos discursos: Andrea Zietzschmann, a directora da casa, deu-nos as boas-vindas, agradeceu muito a nossa presença, e disse que os músicos estavam fartos de tocar para as cadeiras vazias e se sentiam felicíssimos por nos verem. Seguiu-se o Senador da Cultura, Klaus Lederer, que falou em tom de resistência e luta. Estava muito satisfeito por tudo ter corrido tão bem e sem atrasos. Lembrou que a Cultura foi o primeiro sector a fechar quando começou a crise da covid, apesar de ser vital para o nosso equilíbrio. Mencionou a importância de reabrir as salas nos moldes agora experimentados: se um dos elementos centrais para o combate ao vírus é a realização de testes, estes eventos culturais que exigem testar tantas centenas de pessoas contribuem de forma muito positiva para o esforço de saúde pública. Também agradeceu a nossa presença, tal como a directora antes dele - todos se sentiam muito felizes pelo modo como o público aderiu. O que me fez imediatamente pensar que se continuarem a oferecer os bilhetes por 20 euros e o teste de graça, terei imenso gosto em fazê-los felizes todas as semanas.    

Por fim, os músicos entraram na sala (sem máscara, e sem separadores) e o público aplaudiu com um entusiasmo que - confesso - me comoveu. A vantagem da máscara é que uma pessoa pode largar uma ou outra lagrimita e até soluçar levemente sem que os outros reparem (disse-me uma amiga). 

No final, a sala inteira ergueu-se para aplaudir, e o maestro teve de regressar meia dúzia de vezes ao palco. Às tantas os músicos perderam a paciência e foram-se embora. E nós também - embora tenhamos ficado a aplaudir até o último sair, até o Petrenko voltar ao palco vazio e fazer um gesto de nos abraçar a todos. 

Resta ainda comentar que esta maldita pandemia tem uma pequena vantagem colateral: não se ouviu uma única tosse, um único catarro, durante o concerto todo. Por um lado, pediam às pessoas que não fossem ao concerto se se sentissem doentes, por muito leves que fossem os sintomas. Por outro lado, a rapidez com que os bilhetes esgotaram na venda online, e a complexidade de ter de receber um email no smartphone para mostrar à entrada devem ter funcionado como factor impeditivo para os mais velhos virem a este concerto. O público era francamente mais novo do que o habitual. Além disso, como é óbvio, nos tempos que correm ninguém se atreve a tossicar em público. 

Partilho dois vídeos só para dar a ideia dos aplausos: a entrada dos músicos, e o final do concerto. Note-se que a sala não tinha nem sequer metade do público habitual, mas os aplausos tiveram o entusiasmo e o volume dos melhores momentos da casa cheia.