Berlim está a reabrir a Cultura com experiências piloto no teatro, nas salas de concerto e na ópera. A Filarmonia, por exemplo, pôs em venda online 1000 bilhetes para um concerto com o Petrenko, que esgotaram em três minutos, apesar de cada pessoa só poder comprar dois bilhetes.
Foi ontem, e nós estávamos entre esses mil berlinenses sortudos.
A última vez que tinha estado naquela casa foi na véspera do confinamento light, que começou no dia 2 de Novembro, foi reforçado a 15 de Dezembro, e só neste Março começou a ser aliviado (veremos por quanto tempo). Depois da estadia na Bretanha demorei algum tempo a voltar a entrar na rotina cultural de Berlim. Enquanto hesitava, o vírus reconquistava território. Optimista, em meados de Novembro comprei bilhetes para 3 concertos, assisti ao primeiro desses e logo a seguir... "vai ficar tudo bem" em casa. Ofereci os bilhetes restantes à Filarmonia, só para poder dizer que sou mecenas deles.
Devia contar sobre o concerto de ontem, mas não resisto a fazer uma pequena incursão down memory lane até ao de 1 de Novembro, com a Nina Hoss a dizer (com tanta graça!) um texto de Loriot, e os músicos da Filarmónica a tocar o Carnaval dos Animais numa sala cheia de lindas esculturas de papel. Tudo perfeito - até nós, o público, com o rosto alegremente coberto por máscaras artesanais cheias de colorido, essas que agora são proibidas nos supermercados, nos transportes públicos e neste tipo de eventos. E um sabor especial a fim do mundo, porque bem sabíamos que no dia seguinte iam fechar novamente todas as actividades culturais, inclusivamente museus e exposições. Tudo.
O concerto de ontem era também por isso muito importante para nós. Fechar o hiato, retomar a normalidade possível, deixar para trás aqueles quase cinco meses em que fomos existindo fora do tempo.
Dirigi-me para a Filarmonia numa mistura de ansiedade e alegria - e não era a única nesse estado de exaltação. Estávamos a viver um marco importante para a cultura neste tempo de pandemia. Não por acaso, chamaram ao evento "concerto piloto": tratava-se de definir os moldes em que podem ser reiniciadas as actividades culturais apesar da pandemia.
Tudo decorreu em condições muito controladas: o portador de cada bilhete estava identificado, e no dia do concerto tinha de fazer um teste rápido num dos centros indicados pela Filarmonia. O teste foi pago pela cidade. A hora foi marcada com antecedência, para reduzir ao máximo o tempo de espera. Só deixavam entrar as pessoas que mostravam o resultado desse teste no telemóvel, juntamente com um documento de identificação e o bilhete nominal.
Mil bilhetes é menos de metade da lotação da sala, as pessoas ficaram todas separadas umas das outras por um lugar vazio e mantiveram as máscaras durante todo o tempo que estiveram dentro do edifício. Não houve intervalo e muito menos serviço de bar. Mas estavam a oferecer garrafas de água à entrada.
Como tínhamos teste marcado na Filarmonia, entrámos para o foyer da Kammermusiksaal. Em menos de dez minutos tínhamos o teste feito, e fomos esperar para as traseiras do edifício, onde havia uma roulotte de street food e café. Quinze minutos mais tarde recebemos no telemóvel a mensagem com o resultado (para os mais cuscos dos leitores: negativo, yey!), e pudemos entrar na sala grande da Filarmonia - onde um grupo de metais dava um concerto para a sala que se ia enchendo.
Antes do concerto, dois pequenos discursos: Andrea Zietzschmann, a directora da casa, deu-nos as boas-vindas, agradeceu muito a nossa presença, e disse que os músicos estavam fartos de tocar para as cadeiras vazias e se sentiam felicíssimos por nos verem. Seguiu-se o Senador da Cultura, Klaus Lederer, que falou em tom de resistência e luta. Estava muito satisfeito por tudo ter corrido tão bem e sem atrasos. Lembrou que a Cultura foi o primeiro sector a fechar quando começou a crise da covid, apesar de ser vital para o nosso equilíbrio. Mencionou a importância de reabrir as salas nos moldes agora experimentados: se um dos elementos centrais para o combate ao vírus é a realização de testes, estes eventos culturais que exigem testar tantas centenas de pessoas contribuem de forma muito positiva para o esforço de saúde pública. Também agradeceu a nossa presença, tal como a directora antes dele - todos se sentiam muito felizes pelo modo como o público aderiu. O que me fez imediatamente pensar que se continuarem a oferecer os bilhetes por 20 euros e o teste de graça, terei imenso gosto em fazê-los felizes todas as semanas.
Por fim, os músicos entraram na sala (sem máscara, e sem separadores) e o público aplaudiu com um entusiasmo que - confesso - me comoveu. A vantagem da máscara é que uma pessoa pode largar uma ou outra lagrimita e até soluçar levemente sem que os outros reparem (disse-me uma amiga).
No final, a sala inteira ergueu-se para aplaudir, e o maestro teve de regressar meia dúzia de vezes ao palco. Às tantas os músicos perderam a paciência e foram-se embora. E nós também - embora tenhamos ficado a aplaudir até o último sair, até o Petrenko voltar ao palco vazio e fazer um gesto de nos abraçar a todos.
Resta ainda comentar que esta maldita pandemia tem uma pequena vantagem colateral: não se ouviu uma única tosse, um único catarro, durante o concerto todo. Por um lado, pediam às pessoas que não fossem ao concerto se se sentissem doentes, por muito leves que fossem os sintomas. Por outro lado, a rapidez com que os bilhetes esgotaram na venda online, e a complexidade de ter de receber um email no smartphone para mostrar à entrada devem ter funcionado como factor impeditivo para os mais velhos virem a este concerto. O público era francamente mais novo do que o habitual. Além disso, como é óbvio, nos tempos que correm ninguém se atreve a tossicar em público.
Partilho dois vídeos só para dar a ideia dos aplausos: a entrada dos músicos, e o final do concerto. Note-se que a sala não tinha nem sequer metade do público habitual, mas os aplausos tiveram o entusiasmo e o volume dos melhores momentos da casa cheia.
1 comentário:
Grata pela partilha!
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