30 abril 2010

de Utrecht a Barca de Alva


Quando, há cerca de um quarto de século, constou que iam fechar o troço ferroviário Pocinho/Barca de Alva, fiz com os meus irmãos uma viagem de despedida: a linha do Douro completa, do Porto até à fronteira.
Um belo Sábado saímos bem cedinho, e passámos a manhã num comboio que vagarosamente atravessava paisagens míticas. Procurámos vestígios de Jacinto e Zé Fernandes nas casas e nos caminhos, vestígios da Ferreirinha a boiar nas águas turvas.
Ao princípio da tarde chegámos finalmente ao nosso destino, Barca de Alva no fim do mundo.
Almoçámos no restaurante da estação, onde galinhas e cães passeavam pelo meio das mesas vazias.

(era muita antes do tempo da ASAE)

Que será feito desse troço? Que será feito das suas estações? Haverá ainda, junto à fronteira de sítio nenhum, um restaurante cheio de galinhas que pacatamente debicam a tijoleira do chão?

Nada como a internet para responder a estas e outras questões. Este site faz um levantamento da situação actual. Uma tristeza.

***

No fim de semana passado, quando estava em Utrecht, lembrei-me muito destas estações abandonadas, porque seriam um óptimo lugar para organizar festas como aquela em que estávamos. Explico melhor: nessa festa, um casal alemão, residente na Holanda, comemorava 10 anos de casamento e mais 40 anos de vida cada um. Noventa não é um número muito redondo, mas qualquer motivo é bom para comemorar com amigos e família. Para albergar toda aquela gente vinda da Alemanha, encontraram uns antigos barracões convertidos em albergue. O lugar não é muito bonito, convenhamos: um forte feioso, com uns cem ou duzentos anos mas a imitar os quinhentistas, convertido em brasserie; dois barracões arranjados de forma muito bonita; vários barracões militares não arranjados de todo. Tudo espalhado por um terreno fresco de relva e imensas árvores.
Num dos barracões fizeram quartos; no outro, uma grande sala de festas e, sob o telhado, um amplo dormitório, simples e com camas muito confortáveis.
Os aniversariantes e a família levaram toda a comida, as pessoas ajudaram a cozinhar e a lavar a louça, os convidados fizeram eles próprios as camas com a roupa posta à disposição pelo albergue, a brasserie serviu a comida para o lanche com os amigos holandeses, que apareceram na tarde de sábado (lembrem-me depois para vos dar umas receitas de sanduiches de pão com pão).
Gosto desta maneira muito alemã de não pôr a comida no centro das festas, mas a própria festa.

Perguntei-me se em Berlim haverá lugares destes, não muito caros, para nos encontrarmos durante dois ou três dias com os amigos. E há, há: albergues de juventude, junto a lagos (com barquinhos e imensas outras actividades de recreio e desporto), onde pedem uns 27 euros por diária, pensão completa. Já comecei a fazer contas de cabeça quando é que nos calha um aniversário mais ou menos redondo, já me apetece uma festa com espaço e muito tempo para os amigos.

De Berlim a Portugal é um saltinho no coração de uma emigrante, e foi assim que me lembrei das estações da linha do Douro.

Portanto, aqui vai uma ideia fantástica (modéstia à parte):
- recuperar a linha do Douro, articulando-a com a espanhola (parece que já andam a pensar nisso);
- criar percursos especiais para o turismo de qualidade que o Vale do Douro oferece (por mim, nem precisa de ser o comboio a vapor, e muito menos aquela palhaçada do farnel com vinho do Porto e do grupo folclórico por preços astronómicos);
- reconstruir as estações abandonadas como pequenos albergues self-service ou espaço para festas deste tipo;
- criar pequenos equipamentos de lazer de baixo custo: piscina fluvial, aluguer de barcos, etc., bem como uma loja para oferecer os produtos regionais e um restaurante simples de comida tradicional;
- comprar galinhas para espalhar no restaurante, caso as outras já tenham morrido (acreditava e não me admirava, que já lá vão 25 anos) (dizemos à ASAE que aquela parte da vila já é Espanha).

E agora com licencinha, vou ali perguntar à CCDRN se acabei de reinventar a roda, que é uma das minhas maiores especialidades.

***

Algumas fotos do Fort aan de Klop, em Utrecht:


entrada para o recinto do forte



dentro do forte a brasserie, à esquerda os barracões tornados albergue



o salão de refeições e festa, com a cozinha industrial ao fundo, ao lado direito




o dormitório, sobre o salão



pavilhões para o lanche, servido pela brasserie



brincar com árvores e simples palettes pintadas



enquanto dentro de casa se conversava e tocava guitarra (canções dos velhotes), os mais novos assavam massa de pão em espetos compridos, e brincavam com o fogo como é habitual nestas idades...



o não-caso

Está no Bios Politikos,
e eu copio para aqui, porque quero guardar estas palavras certeiras do Miguel Silva:

Os únicos pontos que merecem discussão naquilo a que os jornais ingleses decidiram baptizar como Bigotgate são a legitimidade - ou falta dela, para ser mais correcto - e a impunidade dos órgãos de comunicação social no tratamento da conversa particular mantida entre Gordon Brown e um elemento da sua equipa de campanha. Muito mais importante do que discutir se a eleitora que interpelou Brown tem razão no que disse ou se o comentário do primeiro-ministro pode ser considerado ofensivo, é reflectir sobre os limites que todos os dias são ultrapassados por uma comunicação social ávida de sangue para as manchetes e para o horário nobre, indiferente ao mau serviço que presta ao jornalismo e à democracia.

***

E acrescento: num momento em que a Europa se debate com a maior crise da sua história, o primeiro-ministro inglês gasta tempo a encenar pedidos de desculpa perante as câmaras, por motivos completamente patetas. Bem vamos.

29 abril 2010

tulipas em Abril

Esta é a época do ano em que alguns campos holandeses ficam ainda mais bonitos do que os postais. Por exemplo:



Os nossos amigos que moram em Haia sugeriram que nos encontrássemos nessa região, a meio caminho entre Utrecht e a cidade deles. Muito satisfeitos, anotámos o ponto de encontro: o Keukenhof, em Lisse.

Quem não souber como chegar ao Keukenhof, não tem que se preocupar: basta seguir o caminho das excursões de asiáticos. Quantos mais vir, mais perto está. E nem precisa de placas a indicar que chegou - onde houver centenas de autocarros estacionados, é aí.



Eu, nem quando vi as centenas de autocarros desconfiei. Só um pouco mais tarde, quando me dei conta que a setas apontavam na direcção de árvores enormes, me pareceu que aquilo não podia ser os campos coloridos às riscas que eu tinha imaginado. E não era.
Cada pessoa pagava 14 euros para entrar num parque com árvores, lagos e tulipas.
Como?! Isso temos nós em Berlim, e gratuitos! E bem mais sossegados, e sem turistas.
Que para o Keukenhof parecer Veneza em Agosto, só faltava mesmo espalhar alguns gondolieri nos lagos (claro que esta ideia brilhante não saiu da minha cabecinha, claro que a fui copiar ao hotel Venice em Las Vegas - ah, aqueles gondolieri a cantar para os turistas sentados em gôndolas que andam ó pra cá e ó pra lá naquele tanque a que chamam Canal Grande...).

Levei algum tempo até perceber que estava numa espécie de Feira Internacional da Tulipa. Um sítio lindíssimo, onde os expositores exibem essas flores na sua imensa variedade de cores, tamanhos e feitios.


A partir daí, decidi ignorar a decepção, e fazer render os 14 euros até ao último cêntimo. Belas tulipas, sim senhor, apesar de tudo não se encontra tanta variedade nos parques públicos, e olha aquela enorme, e olha esta negra, tão bonita, e que bela mistura de cores aqui fizeram, e que lindos os lagos, e que bem ficam ali aquelas cerejeiras...
Encantou-me esta variedade, a lembrar peónias:


À procura de uma casa de banho, entrei num pavilhão onde havia uma exposição de jovens designer holandeses. Bem, como direi? Não sei se com criações destas irão muito longe...


À saída encontrámos um pavão albino, num magnífico contraste para o desvario de cor naquele parque.


Despedimo-nos dos amigos, entrámos no carro, preparámo-nos para uma estiradazinha de seis horas até Berlim, e... perdemo-nos. Lá íamos nós a trinta à hora na direcção do mar, quando queríamos encontrar a auto-estrada para Leste. Estradas tortas, linhas direitas: avançávamos pelo meio dos almejados campos de tulipas, em todo o seu esplendor. Desatei a fazer fotografias do carro, umas piores que as outras - ora cortadas por uma árvore surgida repentinamente do nada, ora confusas de velocidade, ora em cores pardacentas de sombra. O Joachim comentou que parecíamos o carro do Google, e que já devia ter fotografias suficientes para o mapa completo da Holanda, e então fiz só mais uma. Esta:

be afraid, be very afraid (3)

Ontem, o noticiário das oito da noite (o sintético, o de quinze minutos) mostrava imagens do encontro entre Sócrates e Paxux Coelho. A seguir, imagens das pessoas na rua: em vez de violentas manifestações, como os gregos, andavam pacatamente à sua vida, em mangas curtas.
Mangas curtas em Abril?!
Agora é que estamos perdidos: um país com essas temperaturas não pode ser levado a sério na Europa.

***

Agora muito a sério: este é o momento em que a Europa precisava de uma Comissão e de um Parlamento forte, o momento em que se nota dolorosamente a falta de dirigentes europeus com visão e carisma. Se escaparmos (nós, a UE) com vida a esta crise, que nos sirva de aviso e orientação para o futuro.

28 abril 2010

be afraid, be very afraid (2)

Quando a recente tragédia grega começou a ser conhecida, os meios de comunicação alemães encheram-se de imagens e notícias sobre os gregos a protestar e em greve, os gregos a viver largamente acima das suas possibilidades, os gregos ricos a fugir aos impostos, o governo grego a usar truques para enganar a Europa. Uma vergonha de país, onde é preciso pagar luvas para obter serviços estatais, onde os habitantes dos bairros mais chiques pagam pouquíssimos impostos, onde o pessoal protesta "por tudo e por nada", cego ao beco sem saída onde o país se meteu.

Esta semana já mostraram auto-estradas e estádios portugueses vazios. Be very afraid: é apenas o início. Os podres e as fraquezas do meu país vão andar por aí, expostos cruamente e até com lentes de aumento.

27 abril 2010

casamento e união de facto

Alguém pode fazer o favor de me explicar a diferença entre casamento e união de facto?
Quais as diferenças, e qual a necessidade de haver as duas figuras?

A pergunta foi-me suscitada por um post de Eduardo Pitta, de que cito:

Agora, PS e BE recuperam esse projecto de lei, que será discutido em plenário no próximo 7 de Maio, com alterações relativamente à primeira versão. Alterações no sentido de o tornar mais justo. Ou seja: assegurar a protecção de casa de morada de família em caso de ruptura do casal ou morte de um dos cônjuges; regular as relações patrimoniais e o direito sucessório; consagrar o acesso a prestações por morte; alargar o regime de férias e licenças; etc. A vida, portanto.

Isto não tem nada a ver com casamento. Os homens e mulheres heterossexuais que escolheram viver em união de facto têm o direito a proteger o seu futuro. O mesmo se diga relativamente aos homens e mulheres homossexuais que, por enquanto, não podem casar. Sejamos claros: os heteros têm direito a uniões de facto a sério. Os gays têm o mesmíssimo direito e, se o desejarem, têm ainda o direito a casar.

Confesso que, ao ler aquela lista de questões abrangidas pela "união de facto a sério", me pareceu estar a ler uma descrição do caderno de vantagens do casamento.

be afraid, be very afraid

Ontem o noticiário da noite, na ZDF, falou das dificuldades da Grécia, e logo a seguir passou para Portugal. O próximo problema, disseram.
Desenvolveram: as obras públicas (e davam exemplos: imensas estradas - e mostravam uma auto-estrada vazia -, e até estádios para o europeu de futebol - e mostravam o estádio de Aveiro, vazio, no meio de um descampado) foram pagas com uma comparticipação de fundos europeus e nacionais. Na falta destes, o país recorreu a empréstimos para financiar a 100% a sua parte dos custos (e eu: aaaah, agora percebo de onde veio tanto dinheiro! quem diria...). Os bancos emprestaram, convencidos que um país não vai à bancarrota. Até que a Grécia chegou a esse ponto de ruptura, e os bancos se encheram de medo e começaram a aumentar as taxas de juro para países com esse tipo de dívida.

Mas vá, nem tudo é horrível. Também já começaram a falar da quota-parte de responsabilidade da Alemanha nesta situação. O que os ladrões de bicletas têm andado a explicar (por exemplo, neste post, e também neste). Eu devia ler esse blogue com mais frequência: tem lá uns rapazes inteligentes, que se dedicam a informar em vez de fazer ruído bloguístico.

take it easy



Já me tinha constado que Utrecht é uma cidade linda, mas não estava preparada para tanta beleza e tanto sossego. Era sábado de manhã, e as pessoas vieram para a rua saborear o sol. O passeio junto ao canal encheu-se de mesas e cadeiras, e gente que parecia não ter qualquer objectivo para o dia.

Um homem trouxe para o ar livre dois modelos de navio, e pôs-se a retocá-los descansadamente.






Era tudo tão perfeito, que fiquei desconfiada que estão todos pagos pelos serviços municipais de turismo.
Ora aí está um emprego que me convinha.

26 abril 2010

calendário

Lembram-se daquela vez que o Manelinho contou à Mafalda que a mercearia Don Manolo tinha um calendário muito bonito para os clientes, com uma jarra de flores sobre uma mesa, e por trás uma janela com um cortinado muito bonito, e lá fora um prado com vaquinhas a pastar e por cima disso tudo a lua? Ou algo assim?

Pois bem: aqui têm Utrech em versão calendário do Manelinho.
Aqui têm o candeeiro, a água, o barco, a ponte, a esplanada no passeio do canal, as bicicletas, as árvores, as casas antigas...
Só falta um canteiro de tulipas.

(Ah, e o parquímetro: 6 euros por uma hora. Talvez explique um pouco o milagre de uma cidade sem carros, e de gente a usar bicicleta faça chuva faça nevão.)



tulipas como cravos


Era 25 de Abril, e as tulipas holandesas pareciam cravos.

23 abril 2010

Brancion

Quem sai da autoestrada em Tournus e segue na direcção de Taizé, ao fim de alguns quilómetros encontra à sua direita Brancion, uma bela aldeia medieval no cimo de um monte.

Queríamos passar alguns dias no hotel "Au Vieux Brancion" - e se lhe chamar hotel de charme peco por defeito. Instalado em casas medievais, servido por um casal já de certa idade que assegura o funcionamento do hotel e do restaurante: madame atende os clientes, monsieur está na cozinha e faz, tarte sim tarte não, uma tarte aux pommes deliciosa. "Tarte não" é quando se esquece dela no forno, e a oferece depois como spécialité du Sénégal. Diz isto com um sorriso milagroso: que nos faz fechar os olhos e o palato, e achar que até a mais requeimada é a melhor do mundo.

Como ia dizendo: queríamos passar uns dias em Brancion, mas não havia maneira de conseguir fazer a reserva. Fartei-me de deixar mensagens no telefone, tentei até os serviços de turismo e da autarquia, mas era como se todo aquele lugar tivesse deixado de existir.

Em desespero de causa, arranjámos um hotel em Cluny, e no domingo de Páscoa fomos averiguar o que se passava em Brancion. Surpresa: hotel e restaurante estavam abertos. Tudo como sempre, incluindo (e sobretudo) a tarde de maçã, pousada na mesa da entrada, ainda fumegante.

Madame explicou-nos que tinham feito quatro meses de férias, e não se dera ao trabalho de ouvir as mensagens no telefone, porque eram milhentas. Informei-a logo que bastava ter ouvido a primeira, porque eram todas minhas. E sentámo-nos para almoçar.

O casal francês na mesa ao lado meteu conversa connosco. Contámos que vínhamos de Berlim de propósito para comer aquela tarte - o que era ligeiramente exagerado, mas, se nos limitássemos a falar do tempo, a conversa acabava num instante - e eles concordaram que sim, que era motivo mais que suficiente para fazer 1000 km.

Daí a pouco entrou uma grande família para a mesa reservada a um canto. O último deixou a porta aberta, o que me fez pensar coisas feias sobre os franceses, mas não digo o quê, que era o que me faltava permitir preconceitos neste blogue.

O casal francês ao nosso lado revelou-nos, por meias palavras e olhares carregados de subentendidos, que era a família do François Miterrand. Olhámos muito discretamente todos ao mesmo tempo, e sim, era mesmo a Danielle Miterrand acompanhada por algumas gerações subsequentes.

Ora bem: tenho uma memória visual desgraçada. É mesmo um prodígio. Às vezes até parece que faço de propósito, mas podem crer que não é. De modo que a certa altura, quando vi entrar na sala um homem de idade avançada, disse aos outros "olhem, o cozinheiro!", e já me ia dirigir a ele para louvar a sua carne cada vez melhor de tão tenra, quando o Joachim me salvou in extremis da palermice do ano - era o filho do Miterrand.

O resto do almoço decorreu sem mais peripécias, quando chegámos à sobremesa calhou-nos a tarte africana, despedimo-nos com muita pena de monsieur e madame, que vão vender o hotel, o restaurante e a receita de tarte aux pommes, porque já têm mais de 70 anos e não têm paciência para aquilo, e fomos passear pela aldeia como gatos preguiçosos de sol.







(Isto sim, é currículo: "igreja edificada pelos sires deste nome aparentados com os condes da Flandres e os imperadores do Oriente")

22 abril 2010

o George Clooney que tenha paciência...

...e o Brad Pitt, caso se lembre de fazer publicidade à Saecco ou assim, também.

SENSEO é que é!



Já tirei o calcário, limpei e arrumei a máquina de café antiga. De design Porsche e tal, muito bonita, e fiel companheira das manhãs dos últimos 15 anos - mas nada chega aos calcanhares de um café feito numa máquina Senseo. Nem sequer o George Clooney, ele que me desculpe.

(isto não é publicidade, é informação apenas para os mais amigos)

(agora, se o Clooney se decidisse a vir entregar as máquinas Senseo a casa das clientes, talvez eu comprasse mais uma, sim, talvez - porque convém sempre ter uma de reserva)

truque

Ando a treinar a pronúncia do nome daquele vulcão Eyjcut&paste, e descobri um truque formidável: basta dar um discreto arroto ao mesmo tempo que se bebe água.
É que é igualzinho.

(e outro truque: usar água gaseificada)

chegou!

A Christina chegou há bocadinho, com três dias e quase três horas de atraso.
Os três dias (agora que já passaram) não custaram tanto, mas as três horas, das onze da noite até às duas da manhã...

Agora está a dormir, e eu a sonambular.

(À chegada, algumas miúdas abraçaram-se aos pais a chorar. Estes últimos dias devem ter sido terríveis para algumas delas, porque as alunas espanholas que as recebiam já estavam fartas daquele elemento estranho à família, durante tanto tempo - e aos 15 anos não se sabe lidar com isso de forma muito diplomática.)

21 abril 2010

ao fim da tarde um lavrador



Ao fim da tarde um lavrador poda as videiras
queima as hastes no meio da vinha


deixa-nos um sorriso, e vai à sua vida
onde, aliás, já andava


quem tem boca vai a Roma

Levámos uma garrafa de vinho do Porto para as férias em França, mas esquecemo-nos de levar também o saca-rolhas. De modo que à noite, depois da jantarada num restaurante de Cluny, pedimos ao Matthias que fosse ao restaurante do nosso hotel arranjar um saca-rolhas emprestado. Ele voltou daí a nada, dizendo que já estava fechado, e lamentou-se:
- Que pena, já tinha preparado tão bem a frase em francês para pedir o saca-rolhas...
- E como era? - perguntámos nós, curiosos.
Resposta pronta:
- "Parlez-vous anglais?"

pedra sobre pedra


Ameugny, Borgonha

Borgonha em pirosês

Sim, se já comecei a pôr flores neste blogue, que não nos falte um pôr-do-sol!





Borgonha em flor



Borgonha em Flor.
Um belo contraste para uma Berlim ainda em tempo de invernia.
Mas uma Borgonha no princípio da Primavera, convenhamos. Ainda muito longe de algumas planícies alentejanas que nesta época surgem radiantes de cor.

(Sim, às vezes tenho a nostalgia do Alentejo. Mesmo vivendo em Berlim, mesmo calhando de andar a dividir o tempo livre entre a Borgonha, a Holanda de tulipas na paisagem, Roma, o Mar Báltico, e o que mais me acontecer, às vezes lembro com saudade a maravilha de um chão tingido de flores selvagens, pelo meio de antiquíssimos sobreiros. Algures entre Évora e Arraiolos.)





20 abril 2010

em termos de Fraternité, estamos conversados

Dezenas de milhares de pessoas à procura de uma maneira de atravessar a Europa para regressar a casa, e os ferroviários franceses em greve.

***

Plano B: o Joachim sugeriu à Christina que escrevesse um diário destas suas horas cinzentas.

(quem não percebeu o trocadilho, levante o dedo na caixa de comentários)

19 abril 2010

socorro!

E: não é para mim, é para os meus filhos!

Bem, já adivinharam ao que venho: alguém tem uma ideia fantástica sobre como trazer duas professoras e onze alunos de Valladolid para a Alemanha?
Não é preciso ser Berlim - qualquer cidade na fronteira serve, e eles depois vêm de comboio.
E também não precisa de ser Valladolid - acho que por estas horas as famílias de acolhimento também estarão mortinhas por vê-los pelas costas, e por isso estariam capazes de se organizar para os levar a outra cidade lá perto.

Se fosse para mim, não pedia. Mas como é para os miúdos...

18 abril 2010

semana de cinzas

A rádio dizia ontem que a Angela Merkel, depois das paragens forçadas em Lisboa e Roma, se encontra a caminho de Berlim de carro.
Mais sorte teve o Joachim: não teve problemas para voar de Paris para cá.
Menos sorte teve a Christina no seu intercâmbio escolar: está retida em Espanha. Ontem estavam a pensar regressar de autocarro na segunda-feira, depois puseram a hipótese de ir de Valladolid para Barcelona e daí para Berlim, mas agora reservaram passagem para a próxima quarta-feira à noite. Se já houver autorização para voar.

A gente habitua-se a um mundo onde tudo funciona como uma engrenagem bem oleada, e depois vem um vulcãozinho mostrar-nos que tudo se reduz a pó e cinzas e tal.
Dei uma vista de olhos pelas tabelas de voos dos aeroportos de Berlim: curiosamente, a cidade está facilmente acessível aos países do sul - simplificando: aos países pobres. Os voos dos países mais ricos estão praticamente todos cancelados. Vulcãozinho sábio, este.

(E como se não bastasse: o meu outlook não abre. Vou ter de recorrer a medidas drásticas, mas antes disso tenho de decidir com o Matthias quem é que vai comprar o pão para o pequeno-almoço.)

(Se calhar devíamos era ir fazer um brunch no café com varanda sobre o Lietzensee, que está um sol magnífico, não se avista a menor sombra de cinzas, e: carpe diem.)

14 abril 2010

pois claro que a causa principal da pedofilia não é o celibato...

...e pois claro que há relação entre homossexualidade e pedofilia, tal e qual como há relação entre heterossexualidade e pedofilia - quando as vítimas dos homens são meninas.
Estava capaz de apostar que há muitas mais vítimas de heterossexuais que de homossexuais.
De onde se prova que, nesta tragédia da pedofilia, o maior problema é a heterossexualidade.

***

Falando um pouco mais a sério: pedófilos, há-os com todas as orientações sexuais, e até mesmo sem nenhuma, digamos assim (casos de adultos que temem uma relação com outro adulto).
Aproveitar este tema para atacar determinados grupos é um erro gravíssimo, e distrai-nos do objectivo central, que é averiguar as causas e os mecanismos, e resolver o problema.

13 abril 2010

eu não dou vazão!

Ao regressar da Borgonha tinha cá em casa amigos que vieram passar duas semanas em Berlim.
E lá vou eu para a Neue National Galerie (disseram-me que está imperdível) e para o concerto do almoço às terças na Filarmonia.

A minha vida acontece tão depressa que nem me dá tempo para contar.

(Isto não é uma queixa, é mais um suspiro de tenho-tanta-sorte!)

01 abril 2010

PÁSCOA, UMA ESPERANÇA ESTIMULANTE

Há dias, o Manuel A. Ribeiro, um dos autores deste blogue (embora às vezes se esqueça...) escreveu um belo texto para esta Páscoa, que copiei agora para o topo da página, para acompanhar quem quiser durante estes dias.

Eu vou sair por uns tempos (ai que stress...), o que significa que os comentários vão ficar de novo de molho até eu voltar, ou me lembrar de chegar perto de um computador (hipótese pouco provável).

Boa Páscoa para todos!

***

Tal como a Primavera nos confirma a revitalização cíclica da natureza, a celebração anual da Páscoa reafirma a confiança na emergência da vida mais forte do que a morte.

Os recentes desastres naturais e a persistência de uma terrível crise económica, deixando milhares de famílias destroçadas pela praga do desemprego e da pobreza, lembram-nos, de forma dramática, que a paixão de Cristo assume um negro realismo nas imagens da morte e do sofrimento, regularmente actualizadas. Celebramos a Páscoa numa altura em que nos confrontamos com acontecimentos de tristeza e de desolação, sejam os que decorrem dos gritos de dor, no Haiti como na Madeira, no Chile como no Afeganistão e Turquia, sejam aqueles que corporizam os vergonhosos casos de pedofilia em instituições católicas ou que mostram o desespero dos que foram mais vitimados pela crise financeira.

Nuns casos, a destruição saiu à rua pela força dos elementos da natureza, lembrando ao homem a sua condição frágil, magnificamente retratada por Camões nestes versos de Os Lusíadas: Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno? Noutros casos, as forças da morte foram provocadas pela crise do sistema neo-liberal, assente numa lógica que está a sobrepor-se à própria razão do homem. O aumento das assimetrias sociais, tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, é a denúncia clara de um «progresso» que não põe a pessoa humana no centro. O messianismo secularizado, depois de ter visto as consequências desastrosas do mito da crença no progresso indefinidamente crescente, pretende agora afirmar-se através do mito do imperativo absoluto da revolução técnico-científica, ao serviço de um Estado omnipresente e das elites que o compõem e o perenizam. Este modelo de progresso, cujos benefícios de revelaram efémeros e enganadores, está agora a ser travestido na exaltação de uma tecnologia que robotiza e serializa, mostrando como a frieza da técnica está a impedir a eclosão de um mundo mais humanizado.

Felizmente que, ao lado das funestas notícias diariamente propaladas pela comunicação social, também há muitas alegrias celestes nesta terra, ainda que não detectáveis pela voracidade dos media. Um olhar atento poderá testemunhar realidades bem luminosas a acontecer diariamente. A corrente de solidariedade na sequência dos desastres ocorridos no Haiti e na Madeira revelam bem que no coração humano não está atrofiada a bondade. Muitas mais provas disso se verificam no anonimato quotidiano. O estilo de vida simples, o espírito de partilha, a capacidade de renunciar ao ter em nome da felicidade do outro e uma relação inteligentemente respeitosa com a natureza são exemplos de gestos que fazem diminuir o sofrimento e que incrementam relações humanas mais harmoniosas. Manda, por isso, o realismo que não podemos minimizar a gravidade do momento presente, acreditando ingenuamente que um mundo novo possa nascer da desordem actual. Mas também não devemos abandonar a esperança numa sociedade melhor, com a desculpa de que todas as utopias falharam. As previsões catastróficas em relação ao futuro, em vez de suscitarem alertas preventivos, vão-nos preparando psicologicamente para aceitar a inevitabilidade da desgraça. Pelo contrário, a capacidade de encarar o porvir com esperança pode transformar a presente crise numa bênção mobilizadora de energias. Todavia, as dificuldades tornam-se intransponíveis se deixarmos morrer a confiança, já que, como intuiu Picasso, a nossa maior perda não é a morte, mas aquilo que morre em nós enquanto vivemos.

Os cristãos acreditam que continua a avançar na história o sonho de Deus sobre a humanidade e sobre o cosmos. Esse sonho pareceu brutalmente interrompido na cruz, mas foi aí que se manifestou verdadeiramente a força da vida para lá da morte. Não há nada de contraditório, quando os cristãos, em nome desta esperança estimulante, se comprometem na transformação concreta da sociedade, sem caírem no logro das consolações fáceis.

Manuel A. Ribeiro

uma crise generalizada, e não apenas da Igreja

O António Marujo escreveu um texto excelente sobre a Igreja e a pedofilia.
Está aqui, mas quero guardá-lo neste blogue, e por isso deixarei uma cópia no fim deste post.

Mais abaixo, acrescentarei três apontamentos à margem desta análise, porque se referem a questões que têm a ver com toda a nossa sociedade.

Para já, um pequeno complemento, sobre a diferença entre o direito canónico e o direito estatal, que li neste artigo (em alemão) escrito por Andreas Zielcke, no jornal Süddeutsche Zeitung de 25.03.2010. Sinteticamente, a Igreja Católica acordou demasiado tarde (tal como os outros, diga-se de passagem - e parece-me que ainda só estamos a ver a ponta do icebergue) para o horror da pedofilia e a responsabilidade civil das instituições (ou contextos familiares) nas quais ela ocorre.
Por sua vez, o direito canónico obedeceu à máxima de separar o que é de César e o que é da Igreja. No caso da pedofilia, centrou-se na pureza dos sacramentos, e esqueceu-se que também tinha obrigações perante César. O que é uma falha gravíssima, e que se espera comece a ser corrigida agora.

A pureza dos sacramentos: quem ler a entretanto célebre carta de Ratzinger de 2001, que tem dado belas parangonas para notícias sem qualquer substância, e na qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (atenção ao cargo, atenção aos objectivos da organização) pede máximo segredo sobre os casos - como ia dizendo, quem ler essa carta percebe que aquilo é todo um outro mundo, onde o que está em causa é a protecção da santidade dos sacramentos, e não a responsabilidade civil dos padres e dos bispos.

Para terem uma ideia:
The more grave delicts both in the celebration of the sacraments and against morals reserved to the Congregation for the Doctrine of the Faith are: -Delicts against the sanctity of the most august eucharistic sacrifice and the sacraments, namely: 1. Taking or retaining the consecrated species for a sacrilegious purpose or throwing them away.(4) 2. Attempting the liturgical action of the eucharistic sacrifice or simulating the same.(5) 3. Forbidden concelebration of the eucharistic sacrifice with ministers of ecclesial communities which do not have apostolic succession and do not recognize the sacramental dignity of priestly ordination.(6) 4. Consecrating for a sacrilegious purpose one matter without the other in the eucharistic celebration or even both outside a eucharistic celebration.(7) -Delicts against the sanctity of the sacrament of penance, namely: 1. Absolution of an accomplice in sin against the Sixth Commandment of the Decalogue.(8) 2. Solicitation in the act, on the occasion or under the pretext of confession, to sin against the Sixth Commandment of the Decalogue, if it is directed to sin with the confessor himself.(9) 3. Direct violation of the sacramental seal.(10) -A delict against morals, namely: the delict committed by a cleric against the Sixth Commandment of the Decalogue with a minor below the age of 18 years. Only these delicts, which are indicated above with their definition, are reserved to the apostolic tribunal of the Congregation for the Doctrine of the Faith.

Ou seja: não se trata do crime contra uma pessoa, mas contra um sacramento. Seja o padre que deitou fora o vinho que sobrou da Eucaristia, seja o que abusa do sacramento da confissão para perdoar a uma mulher o pecado de ter tido relações sexuais com ele próprio, seja o que abusou sexualmente de menores (porque, se bem percebi, essas "intimidades" pervertem o carácter sagrado do sacramento da confissão), etc.

E para mostrar com mais clareza como tudo isto se passa numa outra realidade, lembre-se que o último artigo do Código do Direito Canónico, no fim do capítulo sobre o processo de destituição ou transferência de párocos, afirma que o seu objectivo principal é a garantia da rectidão canónica e a salvação das almas na Igreja. O que explica melhor os termos em que a carta do Papa aos irlandeses é redigida, e que a alguns pareceram muito estranhos: perante um crime grave, o Papa - além de condenar, manifestar vergonha e afirmar que é preciso actuar - apela ao arrependimento e à oração. O que está certo, porque aquela gente move-se numa esfera que não é deste mundo. Ele não está a escrever como um advogado (nesse caso, falaria apenas em termos de Direito e tribunais), nem como psi-qualquer-coisa (sugeriria logo uma psicanálise aos padres e às vítimas), mas como Papa preocupado em salvar as almas de todas as suas ovelhas.

Chegados aqui, concordamos que foi um erro gravíssimo a Igreja preocupar-se com a santidade dos sacramentos e esquecer-se do sofrimento de crianças que lhe eram confiadas. Não há como manter-se instância moral máxima se persiste nesta atitude de absoluta irresponsabilidade perante o mundo real. Tenho a certeza que a Igreja vai aprender muito com esta crise - nem tem outra hipótese.

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Mais três apontamentos:

1. Estes problema não afecta apenas os internatos das Igrejas:
- Também nos internatos de escolas de pedagogia extremamente inovadora (não confessionais, onde ninguém é obrigado ao celibato) tem havido a revelação de escândalos de pedofilia. As reacções dos anteriores responsáveis e de antigos alunos são muito estranhas: que ninguém era obrigado, que os alunos sabiam ao que iam e o que tinham a ganhar, que era um dar e receber....
- Também na RDA houve vários casos de crianças retiradas aos pais e postas em internatos para serem reeducadas, onde a pedagogia incluia a humilhação sexual e todos os abusos que se possam imaginar.

2. Há toda uma zona cinzenta que vamos ter de discutir.
Sinteticamente: um miúdo de 14 anos é apenas vítima? Ou é actor da sua própria história, e tem direito à auto-determinação sexual? Não é a Igreja que coloca esta questão, obviamente, mas alguns políticos de esquerda, desde a revolução de 68 até aos nossos dias.
Venha o debate!

3. É toda uma evolução, mesmo no direito civil. Às crianças estão a ser reconhecidos cada vez mais direitos. Os próximos escândalos serão a violência sobre crianças (já começaram a falar quase com o mesmo horror sobre a pedofilia e o uso de violência física contra miúdos dos internatos); seguir-se-á o direito à actividade física (ai de quem os ponha em frente à televisão ou ao computador em vez de ir fazer desporto com eles - é um problema gravíssimo de saúde pública, para o qual as sociedades estão agora a acordar); e por aí adiante. Há práticas "educacionais" nas famílias portuguesas que já hoje são consideradas crime noutros países europeus. Daqui a uns anos, acusarão as mães de não terem denunciado o marido por este bater nas crianças, como hoje acusam os bispos de não terem denunciado os padres.
Seria boa ideia estarmos muito atentos ao modo como falamos do papel dos bispos no escândalo da pedofilia, porque pode ser que se esteja a criar o modelo para o modo como daqui a uns anos falarão de nós (no nosso papel de pais ou de professores) por termos descurado as nossas responsabilidades no apoio às crianças que nos foram confiadas.


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Análise

A maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos

27.03.2010 - 21:03 Por António Marujo


A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do último século. Para encontrar algo de dimensão semelhante, devemos recuar até ao início do século XX, com o anti-modernismo do Papa Pio X. Ou antes, a 1870 e ao Concílio Vaticano I, com o dogma da infalibilidade papal, o cisma dos velho-católicos e o fim dos Estados Pontifícios. Há uma diferença: esta crise atinge um catolicismo universal, ao contrário do de há um século, quando ainda era uma realidade pouco mais que europeia.

Há várias questões à volta deste tema que, de repente, coloca um Papa académico perante um dos mais graves problemas pastorais da Igreja. Será ele capaz de afrontar o problema com a coragem necessária?

Ratzinger é um teólogo notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como Jürgen Habermas ou Paolo Flores d’Arcais (como se pode perceber em Existe Deus?, editado na Pedra Angular). Eleito para um pontificado de transição, cuja marca seria afirmar a importância do facto cristão no diálogo multicultural contemporâneo, Bento XVI tem o desafio de “limpar a Igreja” da sua sujidade, como ele próprio afirmou na Via-Sacra de Sexta-Feira Santa de 2005, poucos dias antes da morte de João Paulo II.

1. Esta crise, como diz o étimo da palavra, pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação entre catolicismo e sexualidade – que o teólogo Hans Küng definiu como uma “relação crispada”. Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O celibato como opção voluntária pode ser dedicação extraordinária a uma comunidade. Como disciplina obrigatória (com excepções nas Igrejas Católicas orientais ligadas a Roma e, agora, com os anglicanos que decidiram aderir ao catolicismo), poderá ser revisto.

É certo que a esmagadora maioria de casos de abusos acontece com pais e familiares próximos das crianças. Como escrevia o Papa na carta aos católicos irlandeses, a pedofilia não é um problema que se restringe aquele país nem à Igreja Católica. Bem pelo contrário. Mas encarar a questão da sexualidade significa afrontar, desde logo, a formação nos seminários, tantas vezes castradora de afectos. E que é uma das causas profundas da pedofilia entre membros do clero.

A Igreja tem, na sua base bíblica e evangélica, uma fonte harmónica e integral que séculos de moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem muitos católicos, ela tão pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é sobretudo uma proposta de relação – do ser humano com Deus e entre os seres humanos como imagem de Deus.

Aqui reside uma primeira dificuldade no exercício que a Igreja terá de fazer: muitos responsáveis católicos insistem numa abordagem dualista, legalista e pecaminosa (numa perspectiva greco-romana) da sexualidade. E que tem sido geradora de hipocrisias.

2. A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a doutrina católica olha a contracepção – e o preservativo, nomeadamente. Há quatro décadas, a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos “artificiais” de planeamento familiar, apenas porque alguns cardeais da Cúria Romana não aceitavam a mudança doutrinal proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais.

Se o Papa Paulo VI (que encarava a possibilidade de mudar a posição oficial) não tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu doutrinal (mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres comprometidos na luta contra a sida, por exemplo). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.

Esta relação difícil do catolicismo oficial com a sexualidade tem manifestações visíveis como os abusos sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, de quem se sabe que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua identidade, foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente.

A instituição por ele fundada é exemplo dos grupos católicos que hoje, na Igreja, insistem na perspectiva moralista e para os quais a vida só importa quando se fala de aborto, preservativo ou homossexualidade.

Não é de estranhar que mais se condene quem mais moralismo apregoa e acaba por ter tantos pecados (ou crimes) no seu interior. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os seus filhos a responsáveis da Igreja eram, em grande parte, membros da própria comunidade cristã. Para elas, o sentimento de terem sido traídas por aqueles em quem confiavam é esmagador.

3. A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta que escreveu aos irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado “por vezes gravemente”. Seria estranho que o Papa tivesse escrito o que escreveu, se tivesse telhados de vidro. De outra forma, estaria agora sob escrutínio e sem autoridade perante os seus “irmãos bispos”.

Pode haver aqui duas coisas diferentes. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Joseph Ratzinger conhecia, obviamente, vários casos. Mas pode ser forçado dizer que os encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo “New York Times” esta semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que abusou de 200 crianças – tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger só conheceu duas décadas depois dos factos.

O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos, não escreveu, ao contrário do que muita ignorância afirma por aí), que defendia o secretismo, foi depois substituído em 2001, não para prosseguir a mesma orientação, mas para dar um passo em frente: o de obrigar os bispos a comunicar os casos de pedofilia ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta destes casos, quando a questão já era um escândalo nos Estados Unidos (dois anos depois, João Paulo II chamaria vários bispos dos EUA para enfrentar a crise, pela primeira vez, de forma dramática). Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso poderá aclarar de vez a sua quota-parte de responsabilidade – isso mesmo já foi pedido há dias pelo “National Catholic Repórter”.

4. O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal até há três ou quatro décadas – o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.

Durante séculos, a Igreja Católica entendeu-se como sociedade perfeita, sem necessidade de instâncias civis: tinha os seus tribunais, as suas penas, chegou a ter as suas prisões.

Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja Católica do que com outros. E desproporcional: dá-se sempre mais dimensão aos escândalos do que aos caminhos de solução ou aos resultados, omite-se que o fenómeno atinge uma pequeníssima minoria do clero (embora bastasse um caso para que fosse grave). Sabe-se que os números aparecidos na Alemanha nas últimas semanas são resultado do trabalho iniciado pela Conferência Episcopal quando surgiram os casos nos Estados Unidos – mas isto também quase não é dito.

Mas desde 1990 há uma avalanche de casos. O que se passou na Irlanda, que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo que ele começou. Em 1993, os bispos do Canadá publicaram um extenso documento com uma reflexão profunda sobre o tema e propostas de solução – que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido em outros países.

Por isso não se entende a lamentável e infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins: a Igreja é pela “tolerância zero”, mas não lava a “roupa suja” em público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública é “vital” para a Igreja. Entenda-se, portanto, que a lavagem de “roupa suja” em público mais não é que uma desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que se chegou aqui.

5. A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que a crise continuará a revelar mais casos. Como em todas as histórias, percebe-se que também há interessados em atingir a credibilidade da Igreja. Mas esta tem que ser a primeira a reflectir o porquê dessa aversão e a procurar razões no seu interior – uma atitude própria desta Semana Santa que os cristãos hoje começam a viver. O cerco à volta de Ratzinger também continuará. Será, por isso, um Papa ferido aquele que virá a Portugal. Talvez rodeado por grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos “ataques” – já correm textos nesse sentido na Internet, em blogues, em mails…

Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da honra da instituição que levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida nesta crise. Os cristãos chamam a esse acontecimento ressurreição. E celebram-na no próximo domingo.

detalhando: (terceiro dia)

Desta vez não vou detalhar muito, porque há pouco para detalhar e não tenho tempo - daqui a nada estamos a sair de novo, desta vez para França.
Isto é um stress que não se aguenta...

Portanto:
Domingo de manhã: levantar tarde, em dia de mudança da hora, e perder o pequeno-almoço no hotel. Sair desvairados para chegar a tempo da uma exposição sobre Hopper, que tínhamos combinado ver com amigos.
Sobre o Hopper, nada de novo: a luz como sinal de uma ausência, o voyeurismo, as diagonais mais belas, um pintor que se procura a si próprio na sua obra. Ah, e os nus feitos com a sua mulher como modelo. Era um bom marido: pintava-lhe a cara a envelhecer, mas o corpo continuava deslumbrante, mesmo aos 70 anos.
À entrada, tinham o cenário de Nighthawks, para o público entrar nele e fazer fotografias, sentado ao balcão mais famoso do século XX (e talvez até dos anteriores).

Almoço no terraço do monumento a Victor Emanuel II. A comida não é grande coisa (de facto, até em minha casa se come melhor comida italiana) mas a paisagem é deslumbrante:



Resolvemos ir comer a sobremesa ao Giolitti, mas nesse domingo todos os romanos e mais todos os turistas tiveram a mesma ideia. Desarrisca, portanto, que não nos dava jeito perder o avião por causa de um gelado. Além disso, engorda. Além disso, deitei uma vistinha de olhos para a montra, e estavam todos verdes.

Regresso, passando pela via Condotti e pela praça de Espanha, com as escadas apinhadas de gente. Muito gostava eu de saber como é que eles fazem para estarem todos ao mesmo tempo na Giolitti e nas escadas de Espanha!



E depois regressámos a Berlim, e estava a chover.

Adenda: era Domingo de Ramos, e havia nas ruas um número incrível de pessoas com um raminho de oliveira. Só me lembro de ter visto esta profusão de ramos na aldeia da minha avó. Às tantas, serão mesmo católicos?