23 abril 2010

Brancion

Quem sai da autoestrada em Tournus e segue na direcção de Taizé, ao fim de alguns quilómetros encontra à sua direita Brancion, uma bela aldeia medieval no cimo de um monte.

Queríamos passar alguns dias no hotel "Au Vieux Brancion" - e se lhe chamar hotel de charme peco por defeito. Instalado em casas medievais, servido por um casal já de certa idade que assegura o funcionamento do hotel e do restaurante: madame atende os clientes, monsieur está na cozinha e faz, tarte sim tarte não, uma tarte aux pommes deliciosa. "Tarte não" é quando se esquece dela no forno, e a oferece depois como spécialité du Sénégal. Diz isto com um sorriso milagroso: que nos faz fechar os olhos e o palato, e achar que até a mais requeimada é a melhor do mundo.

Como ia dizendo: queríamos passar uns dias em Brancion, mas não havia maneira de conseguir fazer a reserva. Fartei-me de deixar mensagens no telefone, tentei até os serviços de turismo e da autarquia, mas era como se todo aquele lugar tivesse deixado de existir.

Em desespero de causa, arranjámos um hotel em Cluny, e no domingo de Páscoa fomos averiguar o que se passava em Brancion. Surpresa: hotel e restaurante estavam abertos. Tudo como sempre, incluindo (e sobretudo) a tarde de maçã, pousada na mesa da entrada, ainda fumegante.

Madame explicou-nos que tinham feito quatro meses de férias, e não se dera ao trabalho de ouvir as mensagens no telefone, porque eram milhentas. Informei-a logo que bastava ter ouvido a primeira, porque eram todas minhas. E sentámo-nos para almoçar.

O casal francês na mesa ao lado meteu conversa connosco. Contámos que vínhamos de Berlim de propósito para comer aquela tarte - o que era ligeiramente exagerado, mas, se nos limitássemos a falar do tempo, a conversa acabava num instante - e eles concordaram que sim, que era motivo mais que suficiente para fazer 1000 km.

Daí a pouco entrou uma grande família para a mesa reservada a um canto. O último deixou a porta aberta, o que me fez pensar coisas feias sobre os franceses, mas não digo o quê, que era o que me faltava permitir preconceitos neste blogue.

O casal francês ao nosso lado revelou-nos, por meias palavras e olhares carregados de subentendidos, que era a família do François Miterrand. Olhámos muito discretamente todos ao mesmo tempo, e sim, era mesmo a Danielle Miterrand acompanhada por algumas gerações subsequentes.

Ora bem: tenho uma memória visual desgraçada. É mesmo um prodígio. Às vezes até parece que faço de propósito, mas podem crer que não é. De modo que a certa altura, quando vi entrar na sala um homem de idade avançada, disse aos outros "olhem, o cozinheiro!", e já me ia dirigir a ele para louvar a sua carne cada vez melhor de tão tenra, quando o Joachim me salvou in extremis da palermice do ano - era o filho do Miterrand.

O resto do almoço decorreu sem mais peripécias, quando chegámos à sobremesa calhou-nos a tarte africana, despedimo-nos com muita pena de monsieur e madame, que vão vender o hotel, o restaurante e a receita de tarte aux pommes, porque já têm mais de 70 anos e não têm paciência para aquilo, e fomos passear pela aldeia como gatos preguiçosos de sol.







(Isto sim, é currículo: "igreja edificada pelos sires deste nome aparentados com os condes da Flandres e os imperadores do Oriente")

6 comentários:

Gi disse...

E por quanto vendem eles a receita da tarte aux pommes?
:-)

Helena Araújo disse...

Só a receita, sem as camas nem as panelas nem a localizacäo?
Näo sei.
Mas cada fatia custa 4 euros.

Rita Maria disse...

Se aceitares trocar uma aux pommes por uma aux poires, tenho uma da Elvira testadíssima, que é fantástica, está aqui!

(juro que ela nao me paga nenhuma comissao, mas quando li o teu post lembrei-me logo desta tarte que tinha feito)

sara monteiro disse...

Tão giro este post. Alegre. E forte. Parece que estou lá a ver tudo.

E quase que esbarrei com o filho do Miterrand, que parecia mesmo o cozinheiro.:)

(Gosto sempre muito das tuas descrições)

Beijinhos

Sara

Helena Araújo disse...

Sara,
ó pra mim:
assim :-)))
e toda inchada de orgulho!

O nosso maior gosto é a satisfação dos clientes, mas um elogio destes vindo de ti é coisa para me fazer acreditar que...
...o céu é o limite, ou assim.

Também é um gosto saber que tu existes - o salão onde a gente se costumava encontrar ande um bocado cheio de teias de aranha. E será que lá para meados de Agosto estás em Lisboa? Será que é desta?

sara monteiro disse...

:))))A salinha era tão gira, não era? Agora está um pouco empoeirada e cheia de teias é bem verdade, mas podemos sempre encontrar-nos noutras salinhas (salões). Como aqui.
É que eu leio sempre o teu blogue, gosto muito da maneira como escreves e nunca comento, então pensei: "que horror, pareço aqueles voyeurs que vão olhar, deleitar-se e depois dão meia volta pela sombra e vão embora.
E este post estava de tal maneira expressivo, fez-me viajar, saborear, cheirar, ouvir conversas e ver gente, que resolvi deixar um pequeno pagamento por este e por todos outros posts, passados e futuros. É que não é só ver o espectáculo, depois é preciso bater palmas.

(Palmas)

Agosto em Lisboa? Olha que não sei.
Mas em Agosto também existe o Algarve que é muito fixe!!!! (tirando as multidões, mas eu moro no campo, só há abelhas e mosquitos)

Continua a escrever que eu continuo a ler. (Aliás já vi mais dois, devia ter posto isto mais lá para cima? Tu vens aqui, não vens?)
Beijinhos