20 junho 2024

House, de Amos Gitai



O meu terceiro post sobre os "Reflexos e Reflexões", que decorreram na semana passada no âmbito dos Berliner Festspiele, é sobre a peça de teatro "House", que vi no domingo. Ao longo de um quarto de século, o realizador israelita Amos Gitai filmou as pessoas de uma casa centenária em Jerusalém Ocidental, na rua Dor Dor ve Dorshav, que significa algo como "cada geração interpreta à sua maneira". Assim nasceu a sua trilogia Bait (Casa): um filme em 1980, outro em 1998, e o terceiro em 2005.

A companhia de teatro La Colline adaptou agora os três documentários, recriando em palco essa metáfora de uma terra ocupada. No centro, em relativa imobilidade, os operários palestinianos que servem os donos da casa. Por eles passam os moradores de cada época e os seus vizinhos, ao som de música palestiniana e judaica. Cada um fala da sua história e das razões que tem, e todos têm razão, muita razão. Até que no final, numa cena de enorme pungência e dignidade, um dos operários palestinianos se senta à boca do palco, e começa a fazer perguntas ao público. No tom calmo de quem sabe que já lhe roubaram tudo, mas que a verdade não se deixa roubar. É uma peça fortíssima, muito bem feita, com uma beleza própria, feita de inúmeras sobreposições. Os actores vêm da França, do Médio Oriente e do Irão, as personagens falam em árabe, inglês, francês, hebraico, iídiche, arménio e turco. Em Berlim, passou com legendas em inglês e alemão.

*** No final, Amos Gitai falou com o público. Começou por dizer que não podemos esperar da arte que mude a realidade. O máximo que faz é guardar a memória, de uma forma muito própria. Guernica, por exemplo: no final, quem venceu em Guernica?

Na sua metáfora da casa, mostra como as pessoas coexistem num ambiente tóxico. Cada um vê apenas a narrativa do seu lado. Mas já Isaac Rabin dissera, pouco antes de ser assassinado, que não é possível resolver o problema de forma unilateral. Como se viu, aliás, nas guerras mundiais: Hitler resultou da vitória de 1918. É fundamental aprender a entender o ponto de vista do outro, como lembra Mahmoud Darwish no seu belíssimo poema:


Insiste: sem ser capaz de sair das suas próprias razões e entender o lado do opositor, não haverá nunca um cessar das hostilidades. 

Alguns momentos do debate:

- Qual foi o maior desafio na passagem de "Bait" do cinema para o teatro?
- Foi um longo processo. Gosto de coisas híbridas. Passámos de uma narrativa cronológica para uma justaposição de fragmentos. 

- Em "House" já encontramos sementes do que estamos a viver hoje em dia?
- Quando fiz o filme, há 40 anos, o nível de negação dos meus compatriotas era muitíssimo mais alto que hoje em dia. Provavelmente pensava-se que, se ninguém falasse sobre os palestinianos, estes iriam acabar por se evaporar. Agora, depois de tantos episódios terríveis de violência, ambos os lados perceberam que nenhum deles vai desaparecer. Mas em 1980 incompatibilizei-me com a televisão israelita, porque me recusei a tirar do filme as partes dos palestinianos que trabalhavam na casa e a referência aos primeiros proprietários. E fui alvo de muita hostilidade por levar o filme à Berlinale.
Podemos dizer que avançámos um pouco, mas em termos políticos estamos a recuar imenso. 
Contudo, ao menos há finalmente a consciência de estarmos perante um conflito existencial ao qual não podemos fugir. 
Mesmo os políticos de esquerda: alguns deles pensaram que era possível fazer acordos com outros países, sem considerar os palestinianos. Agora já perceberam que é impossível. 
E os judeus deviam saber isso. Porque a sua própria experiência lhes mostra que não se consegue vencer um povo pela violência. 
Neste momento, estamos numa encruzilhada. E não sabemos por onde vamos seguir. 

- Nesta peça de teatro, senti a dor profunda da perda. Mas também alguma esperança. A esperança vai conseguir sobrepor-se à perda?
- A música que ouvimos ao longo da peça é palestiniana, feita por músicos palestinianos. Foi muito importante para mim fazermos isto juntos. A solução só pode passar por olhar nos olhos o ser humano que tenho à minha frente.
Sobre a esperança: em Nablus, fiz exactamente a mesma pergunta a um líder palestiniano, acusado de terrorismo. Respondeu-me: "Ser pessimista é um luxo que não nos podemos conceder."

A senhora do kibutz que já tomara a palavra no fim do debate sobre a Nakba e a Shoah (contei aqui) voltou a fazer o seu relato desesperado. Amos Gitai responde-lhe brevemente:
- O actual governo israelita não quer saber de vocês, não se interessa. Vocês são pessoas de esquerda. Mas penso que todos os israelitas, mais tarde ou mais cedo, terão de se confrontar com a questão que os palestinianos levantam: "porque não podemos ser donos da nossa casa?"

- O que diz sobre o boicote a Israel e aos artistas israelitas em curso?
- Pessoalmente, não me posso queixar. "House" tem convites para Londres, Roma, Madrid...
O que mostra que, em plena tsunami de ódio, há quem tenha uma atitude de abertura e vontade de dialogar. 

Uma pessoa que se apresentou como refugiada russa tomou o microfone para fazer várias acusações: 
- O sentimento de impotência é insuportável. O Estado alemão está completamente passivo, faz de conta, assobia para o lado. E o senhor: esteve aí a gabar-se de todos os lugares aonde vai levar a sua peça. Mas será que isso basta? Não vai fazer mais nada para resolver o problema?

O moderador tomou a palavra:
- Está a ficar cada vez mais normal dizer mal do Estado por tudo e por nada, haja ou não razão para isso. Esse hábito é perverso e perigoso. Certamente não ignora que estes quatro dias da iniciativa "Reflexos e Reflexões" foram largamente financiados pelo Estado alemão. 

E Amos Gitai, secamente:
- Quando falei das cidades que nos convidaram, estava a responder à pessoa que falou antes de si, e desejo muito boa noite a todos. 

Pousou o microfone, foi-se embora.

Sem comentários: