Trago da página de facebook do Lutz Brückelmann este excerto de um debate com o seu irmão:
"Querido irmão,
Dizes que um Estado tem o direito à autodefesa, mesmo à custa de vítimas civis do inimigo. Não sou especialista, mas sei que o direito internacional permite a legítima defesa e parto do princípio de que uma certa quantidade de "danos colaterais" é aceite como inevitável. No entanto, o direito internacional proíbe ataques dirigidos a alvos civis e exige proporcionalidade.
Até lá, estamos de acordo, embora eu veja o direito internacional – que na língua alemã tem um nome que revela a sua problemática: „Völkerrecht“ „direito dos povos“ - apenas justificado como instrumento e a falta de melhor, ao contrário dos direitos humanos, que não protegem povos mas seres humanos, indivíduos, e para mim são de outra qualidade, essenciais. Não sei se os juristas vêem as coisas da mesma maneira, mas, do meu ponto de vista moral, o direito humano deve sempre prevalecer sobre o direito internacional.
Proporcionalidade:
Será um sinal de proporcionalidade quando, neste conflito de longa data, o rácio entre vítimas mortais palestinianas e israelitas é de 20:1? Isto aplica-se ao período entre 2008 e o agosto deste ano. Não tenho dúvidas de que, apesar do massacre de 7 de outubro, a guerra atual produzirá um rácio semelhante entre as populações civis.
Israel é economicamente, tecnologicamente, militarmente, e também em termos de liberdade de movimento, muito superior aos palestinianos. Porque então, na sua autodefesa, não consegue evitar um número tão alto de vítimas civis do outro lado? Incapacidade, falta de brio ou intenção?
Isto leva-me à questão da retaliação, que também levantaste e defendes por ser também uma medida defensiva de dissuasão. Penso que esta ideia já foi desmentida muito antes do atual conflito Palestina/Israel. A experiência ensina que a retaliação é contraproducente porque só faz aumentar o ódio. Lembra-te que o nosso pai contou-nos que, mesmo entre os anti-nazis, como os seus pais e ele próprio, os bombardeamentos das casas não os capacitaram nem motivaram para derrubar Hitler e por fim ao sofrimento. Confirmaram, pelo contrário, que o inimigo, os ingleses no caso, era o mal absoluto e não podia haver outra coisa do que o combate até à última gota de sangue. Vejo as hipóteses da população de Gaza de derrubar o Hamas como semelhantes às hipóteses de os alemães derrubarem Hitler em 1944. E a vontade do Hamas de se abster, por causa da retaliação, de futuros crimes igual à vontade de Hitler de fazer semelhante.
Mas sim, há dois casos em que a retaliação funciona:
1. a ameaça de retaliação quando afeta de forma credível os próprios decisores: a dissuasão nuclear da Guerra Fria. Mas isso é a ameaça da retaliação. Esta não aplica, porque já estamos em guerra. E
2. uma retaliação tão maciça que exclui a possibilidade de um contra-ataque: a aniquilação. Segundo Maquiavel: se fizeres o mal, fá-lo completamente! Esse certamente não queremos.
Estou convencido de que a retaliação no conflito Israel/Palestina e noutros locais é sempre, antes de mais, uma coisa: vingança. Considero vingança contraproducente e imoral, mesmo quando visa exclusivamente o agressor. Uma vingança coletiva então que intencionalmente ou „apenas“ como "dano colateral" aceita a morte de pessoas inocentes é um crime contra a humanidade e nunca se justifica. Tão pouco é apenas um excesso que possa de alguma forma ser compreendido e minimizado. Veria isso assim também se o direito internacional não estivesse de acordo comigo neste ponto.
Se concedêssemos um direito a retaliação com vítimas inocentes, a título de dissuasão, teríamos também de admiti-lo como justificação para o massacre de 7 de outubro. Há razões de sobra dos palestinianos para querer mostrar aos israelitas que não podem violar impunemente a Palestina. Provavelmente engasgaste-te neste momento: "O massacre de 7 de outubro justificou-se?“ - Pois: exatamente não! Nunca. Mas este crime podia ser racionalizado como dissuasor com os mesmos argumentos implausíveis. Talvez consideras relevante a diferença de que os terroristas do Hamas terem feito sofrer com um prazer tão exibicionista. Mas eu acho que o obsceno prazer exibido pelo assassino é negligenciável do ponto de vista da vítima. Se a garganta de uma criança israelita é cortada à frente da sua mãe ou se uma criança palestiniana é queimada viva à frente da sua mãe como "dano colateral" num bombardeamento, ou se simplesmente sufoca porque a ventilação no hospital falha porque Israel desligou a eletricidade, entre estes horrores não há, a meu ver, qualquer diferença relevante.
Vivendo fora da Alemanha durante já muitos anos, estou agora mais desperto do que antes para como o discurso público lá é caracterizado por um preconceito pro-Israel, que tem, naturalmente, causas bem conhecidas.
Lembro-me de dezenas, se não centenas, de programas noticiosos ou notícias de jornais que falam dos "ataques de retaliação" de Israel como se isso fosse perfeitamente normal e não fosse, pelo menos, moralmente questionável. Ninguém na Alemanha oficial e "decente" duvida do facto de que Israel é sempre quem se defende e os atacantes são sempre os árabes.
Os 2 milhões de palestinianos que estão presos em Gaza há 56 anos são os agressores. Quando saltam as vedações para fugirem e pisarem a terra de onde os seus pais foram expulsos e atiram pedras aos soldados israelitas que os empurram de volta com bastões e balas de borracha, são eles os atacantes. Os soldados israelitas são os defensores. E aqueles que são mortos vinte vezes mais são os atacantes. O facto de a defesa israelita produzir sempre muitas vezes mais vítimas é algo que o público alemão sabe mas que julga não merecer atenção.
Não me interpretes mal: é claro que não sou a favor de que Israel abra as fronteiras amanhã e devolva toda a terra (não todo o país, nunca a muita terra que em Palestina/Israel em 1948 foi propriedade legítima de judeus) a 5,5 milhões de pessoas e depois, todos juntos, se dotem de uma nova constituição. Mas não sou contra isso porque seria errado. Apenas porque é obviamente impraticável e acabaria num banho de sangue. Sou a favor da solução de dois Estados, por razões pragmáticas e humanitárias.
Nós, alemães - todos nós alemães decentes aprendemos a ver-nos carregados com o legado histórico do Holocausto, do crime tão grave contra o povo judeu que isso nos deixa eternamente em dívida para com eles. Foi assim que eu também o vi e senti.
Até que, pouco a pouco, me apercebi de que esta responsabilidade, este dever eterno, que continuo a sentir com a mesma intensidade, não é para com um povo mas para com todos os seres humanos ameaçados e maltratados.
Para poder cumprir este dever, o primeiro passo é tentar ser verdadeiro. Interrogar-me constantemente. Se sou a favor dos direitos humanos, como é que posso considerar aceitáveis ataques de retaliação que (também) afetam pessoas inocentes? Será que, neste aspeto, sou mais tolerante com Israel do que com os outros porque nós, alemães, devemos solidariedade a Israel?
Tenho o direito de sê-lo, se outros sofrem? - Devo solidariedade antes de mais aos que sofrem, aos oprimidos, sobretudo aos que não têm poder. Estes são os habitantes de Gaza. Israel é tudo menos impotente. Israel tem dinheiro, uma sociedade altamente educada, tecnologia de ponta, um exército poderoso, e tem ainda a bomba nuclear e os EUA como garantes.
Um massacre como o de 7 de outubro é terrível, como foi terrível o 11 de setembro, mas não é mais uma ameaça existencial para o Estado Israel, para a sociedade e para toda a população do que foi o 11 de setembro para os EUA. Psicologicamente, posso compreender que os israelitas não sintam assim neste momento, tal como os americanos não sentiram isso depois do 11 de setembro. Nós, os Estados Unidos e os seus aliados, fizemos com que os países do Iraque e do Afeganistão, e indiretamente a Líbia e a Síria, pagaram, se não pela vingança de 3.000 mortes, a restauração do nosso sentimento de segurança com 1.500.000 vidas. (Vê na Google a entrada "Guerra ao Terror".)
Israel está agora a fazer o mesmo com Gaza. No entanto, Israel não tem a desculpa que nós, ocidentais, tínhamos há 20 anos. Muitos de nós acreditavam e tencionavam não só livrar o mundo do terror, mas também levar a liberdade e a democracia a esses países. Israel não tem esse objetivo em relação à Palestina.
Então, o que é que isso significa, perguntas? Israel deveria deixar o ataque do Hamas sem resposta? Não. Os EUA também não teriam deixado o 11 de setembro sem resposta se não tivessem travado a guerra contra o Iraque e o Afeganistão. Demorou muito tempo, mas Bin Laden e os seus homens foram apanhados. E se não tivessem invadido o Iraque, não teria havido Estado Islâmico.
Podia ser consistentemente contra uma guerra de agressão e um bloqueio total de Gaza sem ter resposta à pergunta "Mas então o quê poderiam fazer?". Mas as minhas respostas são:
"Em todo o caso, não criem uma catástrofe humanitária através de um bloqueio total".
"Em todo o caso, não criem, em poucas semanas, um número enorme de vítimas inocentes, um múltiplo dos que morreram no massacre de 7 de outubro!"
"Melhorem as vossas medidas defensivas! Foram tão bons nisso, certamente poderão voltar a sê-lo."
"Sim, suportem este sofrimento sem fazer que outros inocentes sofram por ele!"
"Concentrem-se nos verdadeiros autores e nos seus mentores. Persigam-nos como fizeram após o atentado de Munique.“
"Acima de tudo, façam uma política de aproximação, retomem onde Yitzhak Rabin parou porque foi assassinado por um terrorista judeu."
A nós, alemães, eu digo:
"Libertem-se da obediência cega a Israel! Assumam a responsabilidade! Pensem por vós próprios, como Kant nos exigia. Não repitam mantras criados por uma geração - com razão - atormentada por uma grande culpa, que era de boa vontade mas ainda influenciada por uma visão nacionalista do mundo, que acreditava que povos devem a povos. Povos não devem a povos, pessoas devem a pessoas."
2 comentários:
Excelente!
Gostei de voltar a ler o Lutz. Continua a pensar bem.
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