10 maio 2015

70 anos depois














Setenta anos depois da derrota dos nazis, na praça que remata o Ku'damm, junto às ruínas de uma igreja que ali ficaram como cicatriz e memória, faz-se uma festa da Paz. Uma sobrevivente de Auschwitz canta com uma banda que une três religiões, perante um público variado que inclui mulheres de hijab e um grupo de crianças com deficiência mental que dançam animadamente ao som das melodias hebraicas, de Le Déserteur, Bella Ciao e Bandiera Rossa. Setenta anos depois estou numa festa no coração de Berlim, e parece que as ideias nazis estão profundamente derrotadas.

Parece. Mas não nos iludamos. O respeito pela dignidade humana - pela dignidade de todos os humanos - não é um combate ganho há setenta anos. É uma maneira de estar na vida, é enviar raízes para o futuro, é um permanente estado de alerta.

Esther Bejarano falou de tudo isso. Falou da sua convicção de "nunca mais" e do seu choque ao descobrir nos anos 60 que tantos nazis continuavam à solta e bem colocados na sociedade alemã, falou da farsa que é só agora julgar os poucos nazis que restam, enquanto os neonazis passeiam pelas ruas e fazem manifestações. Lembrou que a polícia faz questão de ignorar as pistas que apontam para terrorismo da extrema-direita. Disse que é um escândalo o dia 8 de Maio, o dia da libertação, não ser um feriado na Alemanha. Diz também que não gosta que falem dela como se a vida dela se resumisse a ser uma sobrevivente de Auschwitz. O mais importante na sua vida é o trabalho para a paz. Esta mulher, que foi perseguida pelos nazis apenas pelo seu sangue, é agora rejeitada pela comunidade judaica de Hamburgo, cidade onde vive desde 1960, devido às suas ideias demasiado críticas em relação à política de Israel contra os palestinianos.

Canta com a sua voz de noventa e tal anos, com uma energia de adolescente. Canta "quando se abrirá de novo o céu?", canta "Mir lebn ejbig" em iídiche.

Fiz alguns filmes, todos de péssima qualidade (ainda tenho de aprender muito antes de concorrer aos óscares). Mas deixo-os aqui, apenas como sinal do ambiente desta festa. Vejo agora que devia ter-me fixado menos na cantora e mais no grupo de crianças que dançavam - há setenta anos não havia lugar para eles nas ruas da cidade.

*

Canção de um rapazinho que queria ser pássaro para substituir os que desapareceram da árvore, mas a sua mãe não deixou, e ele conclui "a minha mãe não me deixou ser pássaro porque me amava muito":







"quando se abrirá de novo o céu?"




"vivemos eternamente":



"...apesar disso vivemos,
vamos viver e ver e sobreviver apesar dos apesares,
apesar disso vivemos - estamos aqui!"

"...wir leben trotzdem, wir werden leben und erleben und schlechte Zeiten überleben, wir leben trotzdem, wir sind da."

[ Adenda: eu devia dormir uma ou duas noites (anos?) sobre a tradução de um poema. Esta manhã ocorreu-me que não é adequado usar "apesar dos apesares" para "trotz" e "schlechte Zeiten", quando o que está em causa é o antisemitismo que levou ao Holocausto. Talvez jogar com as palavras "contra" e "ventos contrários"? Em suma: isto não é uma tradução, é um esboço de alinhavo. ]


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