20 março 2007

A propósito de guerras preventivas...

Tolerância: um exercício de liberdade e confiança

Ser tolerante implica aceitar correr o risco de confiar no outro, invocando valores comuns como a Vida, a Liberdade, o Conhecimento, a Dignidade Humana, etc. Apesar disto, não se pode ignorar que diferimos nas aspirações, na cultura, no estilo de vida, nos modelos socio-políticos, familiares, na religião, na expressão dos afectos, etc.


  • Não vale a pena apelar à tolerância a partir de atitudes defensivas (atendendo, por exemplo aos nossos interesses, segurança e bem-estar).


  • Não vale a pena apelar à tolerância se não queremos correr o risco do confronto com a novidade, escudando-nos na irredutibilidade da tradição e da religião, tomando-as como inquestionáveis e até rivais.


  • Não vale a pena apelar à tolerância se não nos dispomos a confiar no outro, tratando e exigindo ser tratado/a em plena igualdade.



1. Complacência e fragilidade das próprias convicções


“Tenho de ter cuidado para não dizer nada que critique ou fira as convicções religiosas de alguém...”


Nesta opção, o “viver e deixar viver” são entendidos numa perspectiva unidimensional. Isto é uma noção de “tolerância” pobre! que implica deixar as pessoas sozinhas com a sua fé e sensibilidades. Uma vez que as religiões têm propostas diferentes quanto à natureza e à essência de Deus e quanto ao sentido da vida humana, que mobilizam emoções e convicções íntimas, o respeito mútuo não passa de uma atitude complacente de silêncio e ausência de crítica.

Quem assim procede, não pretende entender perspectivas diferentes da sua, espera passar despercebido para não desencadear animosidades que julga podem vir a pôr em causa sua segurança e as suas certezas.

Por outro lado, a atitude complacente, mascara a fragilidade das próprias convicções e a dificuldade em deixar-se interpelar pelas mesmas, quanto mais pelas convicções dos outros!

Mas a religião não deve ser entendida como um reduto silencioso e fechado. O respeito mútuo não pode fundar-se na ausência da crítica, até porque a crítica já está implícita nas afirmações de qualquer credo.


2. Tolerância inócua e limites à liberdade de expressão


Uma outra atitude de respeito mútuo aceita que a crítica e a discussão entre religiões são aceitáveis e incontornáveis. Esta tolerância bidimensional aceita o debate insistindo em que a crítica deve ser séria, honesta e respeitosa.


“Tenho de ser sensível ao papel que religião desempenha na vida de alguém e não devo lidar de forma ligeira, sarcástica ou insultuosa”.


Segundo este modelo, o debate corre mal, não porque se dirimem argumentos, mas pelo tom ofensivo que possam apresentar. Esta forma de tolerância tenta combinar: busca da verdade, racionalidade e respeito. Esta tolerância que afasta o escárnio, a ofensa e o insulto, permite-nos compreender noções de sacrilégio e blasfémia, identifica os princípios que enformam o respeito pelas convicções humanas mais profundas e estabelece os limites da convivência pacífica.

Contudo, nesta tolerância bidimensional há uma falácia! O que é sério? O que é ofensivo? Estes conceitos não são neutros. São definidos de modo diferente por exemplo: consoante a época, os modelos culturais, religiosos, etc.

Em algumas tradições religiosas o debate recorre a metáforas. Há grupos sociais que consideram uma afronta a participação de mulheres numa discussão religiosa, independentemente da sobriedade do seu tom e, no tempo de Nero, seria impensável que um escravo, (ou mesmo um cidadão), se pronunciasse com ironia sobre a divindade do imperador.

O modo como os debates de natureza religiosa devem ser conduzidos é, em si mesmo, um problema sobre o qual os pontos de vista se dividem. Esta questão está imbuída pela ideia de que aí se toca nas regiões mais profundas da verdade, do conhecimento e dos valores. De facto, para a controvérsia religiosa não é fácil a observância de regras de um debate ponderado, racional e respeitoso. É difícil imaginar como a liberdade de expressão poderia ter evoluído se fosse psicologicamente inócua.[1]

Apesar disso, algumas pessoas agarram-se às suas crenças de forma tão devota e beata, que mesmo a crítica mais sóbria e respeitadora lhes parece um insulto ou um pecado mortal. Alguns são tão devotos e beatos que não conseguem suportar a crítica de um não-crente.

As religiões levantam questões importantes, (a existência e a essência de Deus, o sentido da existência humana, a morte, o mal), não apenas para os respectivos crentes, mas também comuns aos não-crentes, todavia não podem estabelecer os termos nos quais estas questões devem ser tratadas.

O tipo de resposta dada por uma pessoa, um grupo hierárquico, ou mesmo de um milhão de crentes, não pode impedir os outros de colocar as questões nos moldes que lhes parecerem mais apropriados e de responderem de formas diferentes.



3. Desafio à vivência da tolerância multidimensional


“As mutações económicas, tecnológicas, sociais e culturais da 2ª metade do séc. XX fizeram emergir um indivíduo novo, cuja maneira de ser, pensar, sentir e fazer as coisas difere profundamente dos seus antecessores. Algumas descobertas científicas, a globalização da economia, a flexibilidade generalizada que lhe é inerente, bem como as novas exigências de capacidade de reacção, a par da revolução das tecnologias de informação e comunicação, [da compressão espácio-temporal], etc. jogam um papel essencial no despertar deste novo tipo de individuo”.[2]

Chamamos “hipermoderno” a este indivíduo para destacar a ideia de excesso e de superação que caracterizam a nossa sociedade de modernidade exacerbada. Tentamos hoje compreender e explicar de que modo tantas mudanças perturbantes, tocam o Homem na sua mais profunda identidade”.[3]


Se as mudanças são tão profundas… Então, o desconforto perante as múltiplas respostas dos outros faz parte do risco que aceitamos correr porque este é o nosso aqui e agora comum à escala planetária.

Somos desafiados a vivenciar a tolerância multidimensional. As pessoas e os povos devem deixar-se uns aos outros livres para colocarem as questões da religião, da filosofia e outras, das formas que melhor traduzam o que necessitam explicitar e com os recursos que tiverem à sua disposição.

No mundo contemporâneo isto poderá significar que toda a panóplia de meios de comunicação, todas as técnicas, todas as artes, a fantasia, a ironia, a poesia, os jogos de palavras, o malabarismo das ideias – serão usados naquilo que muitos consideram o sagrado, o imaculado, o dogma. Como poderia ser de outro modo?

Questões tão importantes põem à prova os nossos recursos psicológicos e intelectuais. Conduzem-nos aos limites da disputa linear e para além deles. Porque dizem precisamente respeito aos limites, ao que é assustador, perturbador, impensável.

As religiões consagram os seus símbolos, fazem as suas afirmações, contam as suas histórias e tudo isto é lançado no mundo como propriedade pública, faz parte da mobília cultural e psicológica que não podemos pegar com pinças cautelosas. No nosso desejo de dar sentido à existência, temos que fazer o que podemos com as questões e as respostas que foram lançadas sobre nós.[4]


Todos buscamos a compreensão do mal, da doença, dos crimes, da morte!


… E os céus estão silenciosos
… E não parece haver um sentido nestas coisas!


O respeito pela sensibilidade de alguns não pode ser usado, em consciência, para limitar os meios disponíveis por outros para lidar com os problemas que são comuns a toda a Humanidade. Os grandes temas das religiões são demasiado importantes para serem enclausurados pela sensibilidade dos crentes.

As coisas que parecem sagradas para alguns, são, nas mãos de outros, objecto de brincadeira, riso, tomadas de forma ligeira, objecto de fantasia, cantadas, sonhadas ao contrário, plasmadas de forma divertida e caleidoscópica, baralhadas, abjuradas… É uma forma de procurar dar sentido à experiência humana, o que não significa que os temas e o modo de os tratar sejam intencionalmente ofensivos para os crentes![5]


Não há outra forma de vivermos juntos e de respeitar a vida de cada um, a não ser (re)inventando o modelo de tolerância multidimensional, que implica a aceitação da pluralidade de abordagens, aprendendo a caminhar e a crescer juntos/as, estabelecendo laços de confiança e amando-nos uns aos outros.


FONTES:

[1]
MILL, John Stuart – Da Liberdade, Ibrasa, São Paulo, 1963. – “Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade.” Quando Stuart Mill (1873) apresentou esta tese a favor da livre discussão, a perturbação da complacência e o abanão na fé, eram valores positivos no debate.
[2] AUBERT, Nicole e Roux-Dufort, Christophe - L'individu Hypermoderne , Érès, Paris, 2004.
[3] AUBERT, Nicole e Roux-Dufort, Christophe - Le culte de l'urgence. La société malade du temps, Flammarion, Paris, 2003.
[4]
Waldrom, Jeremy - "Who is my neighbor? humanity and proximity",
The Monist, vol. 86, no.3, (2003).
[5]
Waldrom, Jeremy - “The Satanic Verses” , Times Literary Supplement, Março, 1989 e incluído em Political Though.


::[dEbAtEs]::
O Lugar das Religiões na Construção de um Mundo Mais Justo e Pacífico

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