02 julho 2020

Ken & Karen

A história conta-se em poucos parágrafos: a mayor de St. Louis, Lyda Krewson, divulgou em filme no facebook os nomes e os endereços de pessoas que lhe fizeram sugestões sobre como usar o dinheiro que sobraria de "defund the police". Mesmo que não tivesse a intenção deliberada de dar essas informações ao grupo de extrema-direita que anunciara fazer uma manifestação na cidade nessa altura, foi irresponsável: tinha obrigação de saber que divulgar online nomes e moradas de pessoas que tomam determinadas posições políticas é um acto que potencia enorme violência (lembro que um político alemão, Walter Lübke, foi assassinado no terraço da sua casa depois de neonazis terem divulgado o seu endereço na internet), e que o doxxing é uma arma de intimidação na luta contra a ordem democrática). 

Em sinal de protesto, um grupo de manifestantes ligados ao movimento "Black Lives Matter" dirigiu-se à casa da mayor para protestar contra o doxxing e exigir a sua demissão. Para chegar à casa dela, entrou numa rua privada. Segundo uma testemunha do bairro, os portões que delimitam a área costumam estar abertos e é normal as pessoas passarem por aquela rua para encurtar distâncias - ou até para passear no parque que lá existe.

Um casal de residentes estava em casa (ou talvez a comer hot dogs no jardim, a julgar pelas nódoas de mostarda na t-shirt dela), viu a manifestação a chegar, agarrou nas suas armas e veio para a entrada ameaçá-los. O homem exibia a arma e a gritava "fora daqui!", a mulher tinha o dedo no gatilho e apontava o revólver aos manifestantes (às vezes também ao marido, mas isso deve ter sido apenas um acto falhado).

O filme deste casal a apontar armas contra manifestantes que estavam a passar ordeiramente na rua em frente à sua casa deu origem a muitas críticas e a uma enorme vaga de gozo - que sempre é uma maneira mais pacífica de responder a um acto de tamanha violência. 

O casal disse depois que temeu pela própria vida, e se sentiu ameaçado por aquele grupo violento que destruíra o portão ("histórico", sublinham eles, para dar mais peso à vandalização) para invadir a propriedade privada. Para que não haja confusões, também fizeram saber pelo seu advogado que são apoiantes do movimento "Black Lives Matter".  

Para justificar a sua reacção desproporcionada, mostraram imagens do portão destruído. Só é pena que haja provas de que já estavam a exibir as suas armas quando o portão ainda estava intacto e os manifestantes passavam por ele sem a menor intenção de vandalizar. Ao ver este filme, por exemplo, é difícil perceber o que levou o morador a sentir que estava prestes a ser vítima da "tomada da Bastilha" (sim, ele usou essa expressão numa entrevista). No filme, o homem apenas se mostra furioso por ver passar na rua pessoas que ele considera indesejáveis. Sentir-se pessoalmente ameaçado por isso? Só se estiver uma relação profundamente fusional com a sua rua. 

A avaliar pela quantidade de memes, os dois entraram para a História contemporânea como Ken & Karen. 
Admito que "Ken" seja o namorado da Barbie (o boneco com um corpinho de provocar sonhos húmidos aos escultores dos totalitarismos nazi e estalinista); "Karen" é um caso muito interessante de utilização de um nome próprio para designar uma mulher branca com tendência a perder facilmente o autocontrolo, consciente do seu privilégio e sempre pronta a abusar dele. 
(Sobre "Karen", recomendo a leitura desta análise)

K & K - mais um K, e dava KKK. 
Exagero? Ainda no âmbito da especulação, pergunto-me o que podia ter acontecido se não houvesse tantos brancos naquela manifestação. 

Enquanto me ria com os memes que pipocaram por aí, lembrei-me de uma situação semelhante que aconteceu em Berlim. Falei neste blogue sobre essa manifestação no meu próprio bairro (aqui, aqui, aqui e aqui), na qual participei sentindo-me uma espécie de Mata Hari. Queria estar com os meus filhos naquela "invasão" que tinha como objectivo "mostrar solidariedade para com os desgraçados da alta burguesia de Grunewald que vivem tristes e isolados por trás dos seus muros altos".
Numa das mansões pelas quais passámos havia uma adolescente à janela, sentada de perfil, inteiramente absorta no telemóvel.
Parecia uma performance: a miúda sentada numa espécie de montra a exibir insolentemente a maior indiferença perante os manifestantes de esquerda que invadiam a sua rua com o único propósito de provocar os moradores. 


Ao ver o casal de St. Louis a ameaçar com armas aqueles manifestantes senti uma grande admiração pela adolescente berlinense: outra maturidade, outra consciência democrática.

E aqui vos deixo alguns memes do Ken e da Karen. Enjoy.















2 comentários:

Miguel Madeira disse...

Um aparte acerca do "Karen": pela forma como eu vejo o termo ser usado na internet, não sei se certas análises não darão importância de mais ao ponto racial ("branca"); normalmente eu vejo o termo ser usado no sentido de mulher, provavelmente de meia-idade e de classe média ou média-alta, muito exigente e com modos agressivos, e associado à expressão "I want to speak to the manager" (provavelmente com a implicação que é alguém que acha que os empregados que a atendem são incompetentes) - aliás, "i want to speak to the manager" no google uma das primeiras coisas que aparece é "Karen wants to speal with the manager" (isso e cortes de cabelo...).

Ou seja, não me parece que tenha especificamente a ver com "privilégio branco", mas com privilégio em geral (pela forma que vejo o termo ser usado, dá-me a ideia que uma "Karen" dirá "i want to speak to the manager" tanto a empregados negros como brancos).

Helena Araújo disse...

Obrigada pelo comentário, Miguel.
Pela pesquisa que fiz, "branca" parecia ser um aspecto central da questão. O privilégio, contudo, não é racial, mas ligado à posição em geral dos brancos na sociedade.
O corte de cabelo, por sua vez, é típico dos cabelos lisos.