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Perto do meu lago há uma casa que sempre conheci abandonada. Contaram-me que foi comprada por um homem para oferecer ao filho, mas este, quando viu que o jardim não ia até ao lago, disse que não estava interessado. Berlim está com um problema gravíssimo de habitação, mas aquela casa permanece vazia porque o filho do pai é um menino caprichoso e pelos vistos não precisa de fazer contas ao que custa manter a casa abandonada.
Há tempos, numa das festas que organizámos na nossa rua, comentei com um vizinho que acho essa situação imoral porque, devido às suas implicações sociais e ambientais, a habitação é muito mais que uma mera questão de propriedade privada. Acrescentei que era preciso haver um programa estatal de ocupação compulsiva (mas reversível) de habitações devolutas, e que é inaceitável que as casas vazias sejam usadas como produto de especulação financeira, ou que fechem as janelas com tijolos, como vejo por exemplo no Porto. O meu vizinho sorriu um sorriso muito autoconfiante e respondeu: "a propriedade privada é intocável."
Não concordando com muito do que a esquerda mais militante defende e faz, penso que a sua existência é importante para criar uma dicotomia fundamental para o debate público. Dou-me conta de que esta esquerda está a fazer alguma coisa muito mal: apesar de a sua dimensão não ser muito menor que a da AfD, não consegue captar a atenção dos partidos do centro. Temos visto a CSU bávara, e também a CDU e até o SPD em guinadas vertiginosas à direita e ao populismo para tentar aplacar o eleitorado da AfD, mas não vemos a mesma atenção em relação aos valores e às reivindicações da esquerda, nomeadamente no que diz respeito aos abusos e maus usos da propriedade privada.
Esta situação é lamentável pelo que implica de unilateralidade no debate público, e também porque fico sem saber o que responder ao meu vizinho, quando gostaria imenso de lhe poder dizer, com aquela confiança que se funda na força dos factos, que há pessoas que pensam de outra maneira, e que os detentores da propriedade têm de estar alerta porque, se não assumem a sua responsabilidade social, pode ser que as coisas dêem uma volta.
É este o meu bairro, Grunewald. Cheio de vilas (as ricas mansões que a alta burguesia dos fins do séc. XIX construiu entre a cidade e a floresta), e de casas novas que a média e alta burguesia tem vindo a construir nos terrenos subtraídos aos majestosos parques das primeiras casas. Nas últimas eleições, a CDU e os liberais levaram quase 60% dos votos, os Linke andaram pelos 5%.
Diz-se que é uma pasmaceira, que nunca acontece nada. Mas este primeiro de Maio algo vai mudar: alguns dos grupos de extrema-esquerda que costumam manifestar-se em Kreuzberg no primeiro de Maio resolveram que este ano têm o dever de vir animar as nossas ruas...
O primeiro de Maio em Kreuzberg tornou-se tristemente famoso em finais dos anos oitenta, devido a cenas de enorme violência, carros incendiados, lojas saqueadas. Em 1987 a polícia esteve durante várias horas arredada do local dos tumultos (e só conseguiram regressar quando os manifestantes foram vencidos pelo cansaço e pela embriaguez, depois de consumirem o álcool saqueado dos supermercados). Ao longo destes anos a polícia e a cidade aprenderam como evitar os confrontos mais violentos. Mesmo assim, no fim-de-semana passado vi nesse bairro como muitas empresas se estavam a preparar para os "festejos": com taipais de madeira a proteger todos os vidros.
E agora lembraram-se de vir para Grunewald, ai!, minha rica casinha!
O meu primeiro impulso é ir meter-me debaixo da cama. Logo eu, que até concordo com muitos dos seus valores, mas não me dá jeito nenhum que me deitem fogo ao carro e me partam as janelas.
Releio a frase anterior: "que me façam isto, que me façam aquilo" - ainda nem começou a concentração, e já me confundo com aquilo que possuo. Mais depressa se apanha um burguês que um coxo...
O Matthias goza com os meus medos. Sugeriu uma pequena passeata em família, com os manifestantes. E disse-me para ter bolo e refrescos para lhes dar, caso passem pela nossa rua. A Christina diz que vai haver música e muita animação, e insiste que a convocatória é sobretudo ironia e bom humor. Pergunto-lhe: tens a certeza que o Black Block não vem no meio dos outros? Ela fica indecisa. Ninguém pode ter a certeza.
O que mais me embaraça nesta história é este pôr a nu do meu comodismo. Enquanto os tumultos eram só em Kreuzberg...
Tinha aqui matéria para um belo filme.
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