30 agosto 2013

piropo - o contraditório (Friday humor)

Um documentário sobre o assédio nas ruas de Bruxelas deu origem a uma enorme polémica. Não por mostrar cenas insuportáveis de assédio contra mulheres no coração da Europa, no séc. XXI, mas porque, para variar, em vez de se falar da questão em si se optou por criticar duramente o filme, dizendo-se que era xenófobo.

Estava quase a começar a acreditar em teorias da conspiração, e que deve haver aí uns poderes ocultos quaisquer a manipular o debate público para evitar que as pessoas falem de determinados assuntos, e tal, quando descobri que alguém decidira falar sobre esta tema, sem tergiversações. Ah, valente!

Aqui fica o contraditório, para que cada um possa tirar a sua conclusão.
(O documentário belga que ele refere está aqui, e começa ao minuto 7:30)

(No entretanto, vou lavar o cérebro com sabão. Não sabia que conseguia pensar tantas maldades ao mesmo tempo.)





"nem ao menos se pode olhar?"




"Olhar" - mais um eufemismo.
Expliquem lá, rapazes: quando sonsamente perguntam se ao menos se pode olhar, estão a fazer de propósito para manter os conceitos suficientemente elásticos para haver espaço para a vossa boçalidade, ou quê?

Eu sei que os homens olham. As mulheres também.
Mas há "olhar" e "olhar". Vejam lá, não se confundam.

(Será preciso criminalizar o marido da presidente da Finlândia por "ter olhado"? Não.
Basta que, perante uma cena destas, seja claro para todos quem é que está a proceder mal.)

(Já contei aqui uma vez: numa rua de Weimar, caminhei durante alguns minutos atrás de uma adolescente que levava uma super-mini-saia, tão super-mini que deixava metade das nádegas à mostra. Os homens pelos quais ela passava olhavam muito disfarçadamente; vi que um fez um sinal discreto a outro, que olhou também pelo canto do olho. Andei assim uns trezentos metros, observando a reacção dos homens: todos viram, mas nenhum "olhou".)

29 agosto 2013

os nomes das coisas


De que falamos quando dizemos piropo?

Quando trabalhava na Market Street, em San Francisco, gostava muito de ouvir os piropos dos homeless. Eu era a Carolina do Mónaco e eles o meu Karl Lagerfeld: experts de moda, exprimiam a sua admiração de forma educada e respeitadora.
Uma vez, durante uma espera de várias horas no aeroporto de Frankfurt, um desconhecido ofereceu-me uma rosa. Explicou que estava já há algum tempo a observar-me enquanto eu lia, e que a cena era tão bonita que não resistira. Depois foi-se embora.
Estes serão os pontos altos da minha carreira de piropos recebidos, mas não são casos únicos. Muitas foram já as frases de desconhecidos exprimindo estima - frases fundadas no respeito entre iguais, acompanhadas por um sorriso caloroso. Também as digo, a homens e a mulheres, se me apetece e a situação o permite. Piropos bons, que dão satisfação tanto a quem oferece como a quem recebe.

De que falamos quando dizemos piropo?

No caminho para a escola, era certo como dois e dois serem quatro: um grunho qualquer havia de me rosnar "ah, boazona! fodia-te aqui já toda!" ou "que boa boquinha pró meu caralho" ou outra delicadeza semelhante. Nos dias piores vinham em grupo e riam-se muito, noutros chegavam mesmo a tocar-me. Que mal tem uma mão a roçar o meu braço? O mal suficiente para me deixar com vontade de lixar a pele até sair todo o asco.

Se quero criminalizar esta escória? Claro que não! Bastava-me que lhes cortassem os guizos a frio e os deixassem a esvair-se em sangue na sarjeta. Estou a brincar. Estou a dizer o ódio que lhes sentia naquele momento.

Anos mais tarde, em conversa com um amigo a propósito de um ksssssss! que me fora ciciado demasiado perto do ouvido, ele achou que eu estava a exagerar. Mas depois foi conversar com a sua mulher, que atravessara a adolescência com copa C, e ficou inteirado. E chocado. Nem durante a gravidez a respeitaram, e muito menos com um recém-nascido ao colo. O marido não se dera conta de nada disso.

A nossa sociedade não repara no que fazem às raparigas mal o seu corpo começa a ganhar formas de mulher. E prefere ignorar que, no espaço público, as mulheres são repetidamente sujeitas a frases humilhantes e intimidatórias. Diz que são piropos, fazem parte do folclore nacional, dão mais colorido à rua - e quem não gostar, que se defenda.  

Por estes dias o Bloco de Esquerda propõe um debate sobre este tema, que infelizmente nasceu inquinado por dois equívocos:
- a TSF pôs a palavra "criminalização" no título da notícia, apesar de não serem essas as intenções do BE (segundo li algures).
- a palavra-chave usada é "piropo", que tem as costas larguíssimas e se presta a muitos mal-entendidos.

Por esses motivos o debate, que seria bem necessário, está a ser chutado para canto pelas habituais manobras de diversão: que mal tem um piropo? que mal tem dizer a uma mulher que está bonita? agora já se vai preso só por olhar? e uma mulher é um ser tão frágil que precise de ser protegido dessa maneira?

Parece-me muito curioso que se tenha escolhido a palavra "piropo" e não "assédio no espaço público", por exemplo. Admito que com isso se pretenda chamar a atenção para a maleabilidade do conceito e a maleabilidade do respeito pelas mulheres, aqui na nossa coutada do macho latino, bem como alertar para o facto de que o uso desta palavra de ar tão inócuo, tão "brandos costumes", acaba por eufemizar, encobrir e desculpabilizar uma realidade inaceitável.
Uma escolha com riscos, como bem prova o rumo equivocado que a discussão está a tomar.

Este momento do debate lembra-me um episódio acontecido há quarenta anos numa escola berlinense. Um professor completamente tarado castigava os alunos, rapazes adolescentes, com palmadas no rabo. Negociava: vestido, dez palmadas; nu, apenas cinco. Depois punha-lhes creme nas nádegas, para aliviar a dor. O pai de um desses alunos tirou o filho da escola e enviou uma carta ao director dizendo que não concordava com os métodos pedagógicos do professor. Ele bem sabia que alguma coisa estava profundamente errada, mas faltava-lhe a palavra certa para designar o fenómeno, porque ainda não se começara a tematizar o problema da pedofilia nas escolas. Existia, mas ainda não lhe tinham dado o nome exacto.  

Era bom que começássemos a olhar para esta problema com olhos de ver, e procurássemos a palavra certa para o designar.

Pergunto-me porque é que algumas pessoas (por cuja seriedade na discussão de ideias tenho, e mantenho, o maior apreço) estão a bagatelizar e a ridicularizar este tema, perguntando "que mal tem fazer um elogio a uma desconhecida?" como se fizessem questão de ignorar que o que está em causa são atitudes de intimidação das mulheres.
Mais: a que propósito se tenta deslocar a questão para um eventual problema que as mulheres terão com o seu próprio corpo, ou para os guetos ideológicos (serão marxistas compulsivas...), e sabe-se lá que mais?
Também não percebo porque é que, em nome do feminismo, se afirma que este é um problema que cada mulher saberá resolver, e que fazer dele tema de debate chega a ser ofensivo para as mulheres. Equiparo estes ataques aos das frases racistas e homofóbicas - porque é que não havia de ser um problema tematizado pela sociedade? E alguém se lembraria de dizer que uma frase racista largada na rua contra uma pessoa de pele escura é um problema que aquela pessoa tem de saber resolver sozinha, ou ignorando, ou metendo o agressor na ordem, nem que seja com uma bofetada? Vá, não brinquem comigo.

Duas notas finais:

- Antes de o BE trazer este assunto à baila, já a Rita Dantas o tinha referido. Recomendo a leitura deste post e dos respectivos comentários.

- A foto no princípio deste post foi tirada deste site, e acompanha um texto bastante interessante, do qual retirei uma parte. Dito assim, em inglês, fica claro como água.

Basically, with every rude comment or leering stare, the harasser is saying this: “I have the right to say what I want and do what I please here, and you just have to deal with it.” He is saying, “your body is mine to look at and to comment on without your consent.” And he is saying, “you’re going to like this attention I’m giving you, you should like this attention I’m giving you, and if you don’t, there’s something wrong with you, not me. You’re too uptight, too frigid, too whatever. Your reaction is the problem, not my behavior.”
Victims of street harassment are often made to feel like they have no right to be upset, like they should just shut up and take it when people speak to them like that. But we need to fight back against that notion and call it out for what it is – a large, steaming pile of bullshit. I’m asking you (all of you – men, women, gay people, straight people, ALL people) to do this: take street harassment seriously. Don’t harass people, don’t let other people be harassed, and don’t let yourself be harassed. Stand up, fight back, and make a difference.
Our streets and our world will be much better for it.

28 agosto 2013

à atenção das pessoas que até ontem não sabiam quem era o Ulrich Grillo, mas hoje já fazem dele o herdeiro de Hitler, ou algo assim


Encontrei esta foto no blog Der Terrorist, como ilustração de um post com o sugestivo título "os descendentes", e este texto:

Para quem ainda não tenha percebido, é de uma guerra que se trata. O saque do património é uma história muuuuuito antiga.

[Imagem "Hermann Göring admiring a painting given to him by Adolf Hitler on the occasion of his 45th birthday", Jan. 13, 1938]


É apenas uma das reacções a um artigo do DN com título "Indústria alemã quer Grécia a pagar dívida com património", uma das milhentas que desde ontem pululam nas redes sociais, e nas quais os alemães, para variar, são os abjectos da História.
(Suspiro. O nosso mundo seria tão mais pacífico se as pessoas se informassem bem antes de começarem a salivar...)
 
Apesar do título "Indústria alemã quer Grécia a pagar dívida com património", está bastante explícito que ele não estava a sugerir desmontar o Partenon ou vender as ilhas, estava a falar de privatizações de "empresas do setor da energia, portos, aeroportos ou imobiliárias". Parece-me que o Grillo inventou a roda com um pequeno atraso: essas privatizações, tanto quanto sei, já estão em curso há anos, precisamente para pagar a maldita dívida (ou será que só nos meus pesadelos é que a EDP foi vendida à China?).

Faço ainda notar que esta é a resposta de um tal de Ulrich Grillo (Ulrich Grillo who?) a uma afirmação do Ministro das Finanças alemão sobre a necessidade de um novo pacote de ajuda à Grécia, num momento em que se especula sobre um segundo haircut na dívida grega. Repare-se que Wolfgang Schäuble fala disto a poucas semanas das eleições, sinal de que o pacote já está mais do que decidido, e lembre-se que o primeiro haircut representou cerca de 70% da dívida grega: 50% capital e 20% resultante da renegociação dos juros (que passaram a ser entre os 2% e os 4%).

Pergunto: porque é que ninguém reage à afirmação do Schäuble, nem insinuam que é o São Francisco de Assis nem nada (esta é para rir, claro), mas desatam a brandir a herança genética do nazismo por causa de um palerma qualquer que, no contexto de um debate público, tenta puxar a brasa à sua insignificante sardinha?

Os factos já são suficientemente maus: estamos todos metidos num problema monumental, e nenhum país tem dúvidas sobre isso. Melhor seria pensarmos em conjunto numa solução com futuro, em vez de andar a distorcer os factos para os fazer caber num discurso de ódio que em nada serve a construção da paz entre os povos.



27 agosto 2013

polegares ao alto



Há uns anos irritei-me com um fenómeno que estava a observar nos "blogues de gajas". Tanto, que escrevi este post:

o imperativo categórico e o seu avesso

Volta e meia leio em blogues alguém a gabar-se - geralmente com graça - de ter feito algo errado. E as caixas de comentários enchem-se de "hahaha, que engraçado" e "hahaha, eu também teria feito o mesmo".

Confesso que não entendo. O que leva as pessoas a contar abertamente que fizeram algo que não deviam ter feito? O que leva os leitores a aceitar alegremente a descrição de um acto ilícito?

O fenómeno tem pelo menos a vantagem de mostrar que a frase "os políticos são todos iguais" (ou a sua variação: "os de lá de cima são todos iguais") está incompleta.
Iguais a quem? A este povo.

O imperativo categórico de Kant propõe como norma: age de modo a que a máxima do teu agir se possa tornar lei universal.
O que vemos aqui é o contrário disso: as pessoas gabam-se de ter agido de modo errado, e recebem aplausos do coro de seguidores.
Como se o facto de falarem abertamente sobre o que fizeram tornasse lícito e banal o que não o é.
E eis como na bloga portuguesa se inventa a antítese do imperativo categórico de Kant: gaba-te de modo a que o teu agir se torne desculpa universal.

Que tipo de país é que construímos com comportamentos destes?


Lembrei-me disso a propósito de um post do João Lopes, no qual refere as reacções nas redes sociais à morte do António Borges, mostrando outra faceta do fenómeno de ufana exibição internética da perda do decoro:  

"Em todo o caso, ainda mais impressionante e assustador que a avalanche dos insultos, é o facto de a maioria dos respectivos autores o fazer assinando o seu nome por baixo e, mais do que isso, expondo a sua imagem.
Trata-se de um ganho ilusoriamente democrático. Porquê? Não porque se defenda a estupidez do anonimato. Antes porque a prática "social" da rede levou a esta miséria conceptual e a este vazio moral: aquele que insulta, insultando em rede, imagina-se um iluminado protagonista de alguma redentora dinâmica social, não porque evite a barbárie discursiva, mas porque a assume — e assina.
Assim se consuma uma ainda mais inquietante desumanização: o cidadão que insulta já não se vê, não se pensa, tornou-se indiferente à imagem degradada de si próprio — e confunde-se com ela, acreditando que esse é um bom princípio para fazer amigos, polegares ao alto."

(escusado será dizer que vale muito a pena ler todo o post)

(foto)

andar nu debaixo da roupa


Ontem, ao passar de carro, reparei por acaso na cena habitual de um casal de turistas a tirar fotografias tipo "olha eu aqui à frente dos prédios da Potsdamer Platz". A mulher tinha o corpo praticamente todo coberto por um chador, só se lhe via a cara. O marido fotografava, ela e o cenário posavam com afinco. Sob todos aqueles panos, opacos mas leves, vi desenharem-se um joelho e uma coxa na perna dobrada para o lado, numa pose coquete como nunca me ocorrera que pudesse ser compatível com tal máscara.
Vivendo, vendo e aprendendo.

(a fotografia foi tirada do blogue com o nome mais self-indulgent que conheço
( ;-) para o Miguel)

26 agosto 2013

quando a esmola é desmesuradamente grande...



Em vez de comparecer no funeral de bombeiros que deram a sua vida pela pátria, o presidente da República manda dar as condolências por telefone e em privado (percebi bem?!). Simultaneamente, envia uma mensagem à família do António Borges e publica-a na página da Presidência.

Isto é tão inacreditável que eu desconfio, e dou comigo a pensar que se calhar houve um erro na comunicação com os estagiários que lhe fazem estas tarefas. Ele terá dito "olhe, dê condolências privadas à família do economista, e envie uma carta como deve ser às famílias dos bombeiros, em nome dos portugueses e assim, publicando-a também na página da presidência", mas o estagiário era novo, estava a substituir o outro que emigrou porque se fartou dos recibos verdes (isto sou eu a imaginar), e trocou os nomes. Ou então não encontrou na wikipedia nada sobre os bombeiros, e achou por bem escrever antes a carta bonitinha para o outro, já que tinha mais material.

O erro também pode ter acontecido a jusante: enquanto o presidente subia para telefonar e se concentrava para não cair, confundiu-se um bocadinho e disse os nomes trocados. Viver no campo tem destes inconvenientes.

(a propósito deste post no blogue Entre as Brumas da Memória)

os pontos nos ii


Carlos Azevedo, no The Cat Scats:
"Fiquei chocado com algumas coisas que li nas últimas horas a propósito da morte de António Borges. Não falo de respeito e também não sugiro que as pessoas sejam hipócritas; falo apenas de uma coisa tão simples como decoro."

Luís Januário, no facebook:
"Nenhuma morte pode ser festejada. Miguel Unamuno já disse isso uma vez a um general enlouquecido. Os que se congratulam com a morte de um homem não estão ao meu lado em nenhuma luta. Envergonho-me deles." 

Rui Bebiano, no facebook:
"Não tinha vontade de tornar a este assunto abjeto, que já tratei lá para baixo. Mas a repetição das enormidades empurra-me para isso. Congratular-se com a morte de alguém de quem discordamos frontalmente no plano político só confirma, em relação a quem o faz, do que essa pessoa será capaz se um dia tiver o poder, em nome de um programa ou de uma convicção, de dispor da vida dos que dela discordarem. Já tivemos tempo de aprender com aquilo que a brutalidade da História a tal respeito nos ensinou." 

Pergunto-me se as reacções à morte de António Borges foram uma desbunda que deu na internet (desinibição tóxica, para citar o Público), ou se aconteceram mesmo na vida real. Lembro episódios semelhantes - o Saramago e a Thatcher, por exemplo. As pessoas têm cada vez menos vergonha de exibir em público os seus mais baixos instintos.

(E não resisto a mandar um comentário à parte para o meu clube: para quando uma Pastoral da Internet?)

(foto)

23 agosto 2013

já cá venho contar o que tenho andado a fazer...



Já cá venho contar o que tenho andado a fazer - por agora não posso, devido a andar muito ocupada com o propriamente dito.
(E não, não ando a treinar esse expoente máximo da nossa língua que é o português dos relatórios da Polícia. Foi só porque é sexta-feira, lá fora está um sol lindo, vamos passear para Potsdam, e apeteceu-me.)

Para já, conto o que vou fazer: mais logo, às sete da tarde (seis em Portugal), vai haver um grupinho de portugueses sentado nos bancos do coro por trás da Filarmónica de Berlim, a assistir ao concerto de abertura da temporada. Nós de um lado, o Simon Rattle no meio, o presidente da República do outro lado, todos unidos pela música de Mozart.
(hehehe, daqui a uns aninhos, posso enganar os meus netos contando-lhes daquela vez que fui com o Joachim Gauck ouvir a Júpiter do Mozart) 

E porque vens tu para aqui contar estas coisas, Heleninha?
É só porque queria avisar que quem quiser brincar ao "onde está o Wally", pode inscrever-se neste site, e assistir ao concerto no Digital Concert Hall. É um presentinho do Deutsche Bank.
(Eu sei, eu sei, os presentinhos que os portugueses gostavam de ter do Deutsche Bank são outros. Mas foi o que pude arranjar.)

16 agosto 2013

my favorite time of day

 
 
'What day is it?' asked Pooh.
'It's today,' squeaked Piglet.
'My favorite day,' said Pooh.

15 agosto 2013

é hoje!

(foto)

Daqui a bocadinho chegam amigos portugueses de há mais de meia vida. Ficam uma semana, e é como um prolongamento das nossas férias em Portugal.

Temos a casa em pantanas, mas o coração tudo a postos para os receber.

3... 2...

lembram-se da Terri Schiavo?



Lembram-se da Terri Schiavo, e de na altura se discutir imenso se ela ainda estava "cá" (como afirmavam os pais) ou se estava irreversivelmente do lado de "lá" (como dizia o marido)?
Às tantas, os pais tinham razão:
Vegetative Patient Communicates By 'Answering' Questions Using Attention
(notícia no Huffington Post)

Desse debate lembro-me de ter ficado chocada com o desenlace final: desligaram as máquinas, deixaram-na morrer de fome e de sede. A ser verdade que essas pessoas estão presas dentro do seu corpo e percebem o que se passa dentro delas e à sua volta, a decisão de as deixar morrer lentamente revela-se ainda mais terrível.

***

Este verão fui posta perante um dilema desse género. Descobrimos um ninho dentro do esquentador da nossa casa, e uma mãe melra que entrava pela enorme chaminé da cozinha, num permanente vai e vem para alimentar os filhos. Que fazer? Ainda ponderámos deixar o ninho ali mesmo, e não tomar duche de água quente. Mas não era muito agradável passar o Verão a desenrascar refeições fora de casa por ter a cozinha ocupada por pássaros. Escolhemos um lugar seguro onde pousar o ninho, e chamei um técnico que viesse abrir o esquentador e resolver o problema. Ele, muito despachado, resolveu o problema atirando o ninho pela janela fora. "Pássaros há muitos", dir-me-iam depois lá na aldeia. 
Eu é que não aguentava a cena daqueles bicos escancarados a pedir comida, a mãe já a léguas, eles a recusarem a farinha que lhes dava. Para não ficarem a morrer uma morte lenta, resolvi afogá-los.
(Hoje sei que desisti cedo demais - devia ter molhado a farinha em água, e ver se eles comiam.)

Já encomendei uma rede à volta da chaminé, mas mantém-se a questão: deixar que a natureza siga o seu rumo, e lavar daí as minhas mãos, ou sujá-las para reduzir o sofrimento?

Nem sei se estou a falar de pássaros, ou de eutanásia.
Mas se for da eutanásia, tenho de acrescentar um ponto que me preocupa cada vez mais: num mundo em que se conta cada cêntimo que o Estado Social gasta, normalizar a eutanásia pode ser abrir uma caixa de Pandora pela qual os velhos se verão convidados a desaparecer, para não provocar mais custos.  

14 agosto 2013

emigrei, e agora tenho de aturar isto


Chega Agosto, é tiro e queda: começa a chacota contra os emigrantes portugueses, os termos depreciativos, as histórias "e daquela vez que a mãe estava a dizer Marie, viens ici, Marie, viens ici, e como a miúda fazia de conta que não ouvia ela desatou a berrar Ai minha esta minha aquela se não vens já para aqui vais ver o que te faço aos cornos, lembram-se?" e todos hahaha e hehehe e hihihi.
Na minha terra a gente ri-se muito.

Este verão ouvi outra vez o termo "avec". Pensava que tinha passado à história, mas não. Ainda anda por aí à solta. "Os avecs". Os abéques.
E já não posso ouvir as conversas sobre pessoas que "vêm para cá a falar estrangeiro para se armarem".
Primeiro: quem nunca comprou um software que "suporte" a impressora, quem nunca fez downloads em vez de baixar e quem digitaliza em vez de scanear, pois que forwarde a primeira pedra. Tal como quem ficou em casa e aprendeu palavras novas quando uma nova realidade entrou no país, as pessoas que saíram de Portugal encontraram outras realidades e outras palavras. Eu, por exemplo, se fizesse uma casa em Portugal, tentava fazê-la tipo "Haus": bem isolada, sem paredes húmidas no inverno, sem fungos nas paredes interiores. Percebo inteiramente os emigrantes dos anos sessenta que faziam "maisons" com "fenêtres". Veja-se (por exemplo) em Sobredo, na Peneda, o que eram as "casas" e as "janelas" das quais aquela gente fugiu quando saltou para França.
Segundo: quem vive décadas no estrangeiro acaba por se habituar a falar noutra língua, e tem dificuldade em regressar à língua materna. Mais ainda: tem muita dificuldade em encontrar as palavras certas, em fugir aos falsos cognatos, etc.
Terceiro: quem tem filhos e os educa no estrangeiro pode muito bem habituar-se a falar-lhes na língua na qual eles se sentem mais confortáveis e seguros. No meu caso pessoal, tive de tomar essa decisão quando a minha filha tinha quatro anos: responder em português, sabendo que ela não ia entender a resposta, ou responder em alemão, para lhe satisfazer a curiosidade? Criticaram-me muito na altura, que assim ela não ficava bilingue e tal, mas decidi que obter uma resposta é mais importante que ser bilingue.
Quando vivemos nos EUA, o Matthias recusou-se a falar português - nem sequer o queria entender. Dei comigo a falar inglês com os meus filhos. (Eu, inglês! Com sotaque do Porto. Desta podem rir à vontade - até a mim dá vontade de rir.)
Cada cultura tem uma maneira diferente de estar com as crianças, e é mais fácil manter-se nesse universo linguístico do que traduzir tudo para a nossa língua materna. E se acham que é fácil e natural traduzir de uma língua para outra, expliquem-me como é que aconteceu de em Portugal os softwares suportarem os hardwares. 
Em todo o caso: parece-me normalíssimo que alguém grite "Marie, viens ici" e depois, num momento de fúria, regresse ao seu próprio universo cultural e desate aos palavrões.
Também é natural que se fale com os filhos na língua do país no qual eles estão a crescer, e com o companheiro na língua materna comum.
Finalmente, e se querem saber: eu falava muito alemão com os meus filhos, mas ralhava-lhes em português. É que eles gostavam de ganhar alguma margem de manobra corrigindo-me a gramática alemã, e eu era o que mais faltava se fosse abrir mão do respeitinho. Eles podiam não perceber todo o texto, mas iam-se orientando pela música.

De modo que o Pedro Ribeiro, que escreveu um post - entretanto famosíssimo - com o título "emigrei e agora tenho este fascista a olhar para mim", só falou de metade dos azares dos emigrantes: além de não se sentirem em casa na terra para onde emigraram, têm na sua própria terra quem lhes faça sentir que essa também não é a sua casa.
- Ah, mas não é toda a gente que os trata assim.
- Pois não. Nem na Áustria são todos fascistas.

saldo das férias



Depois das férias em Portugal, fui espreitar o saldo da minha conta bancária. Ai!

Lembram-se daquela retoma de zero vírgula pouco por cento na economia portuguesa nas últimas semanas?
Fui eu.

(gráfico)

13 agosto 2013

mais uma vez estou em crer que o futuro já foi pior


Esta imagem, que encontrei no facebook, irritou-me. Que arrogância é essa de chamar imbecil a jovens que estão concentrados no seu telemóvel? Conheço alguns que fazem muito essa figura: são amigos dos meus filhos, e ajudam-me imenso com o computador. Têm conhecimentos e uma intuição que eu nunca terei. Mas são simpáticos e discretos - nunca me deram a entender que, no que diz respeito ao mundo onde se movem com tanto desembaraço, a imbecil sou eu.

Do facebook para o 5 Dias, onde a Raquel Varela faz um desabafo descuidado. Embora ela tenha avisado que estava a fazer uma caricatura, sinto essa descrição como uma ofensa grave - e desnecessária - aos jovens portugueses. Talvez ande com as companhias erradas, mas os jovens que conheço não têm uma postura e actividade política muito diferente da dos seus avós, e uns e outros estão longe de corresponder ao que se afirma neste texto.
O ataque aos jovens é tão inapropriado como o elogio aos mais velhos, a "geração que fez o Maio de 68 e a revolução de Abril". A revolução de Abril não foi preparada pelos jovens dessa época, foi iniciada por um punhado de militares. De 24 para 26 de Abril de 1974, a maioria do povo português passou de politicamente amorfo para esperançado participante. Arranjassem hoje um punhado de militares que viesse depor o governo e exigir que a Europa tenha outra política de ajuda aos países em crise, e num instante estes jovens "apolíticos" sairiam à rua cheios de esperança, brandindo a flor da estação, juntando histórias míticas para contar aos seus netos daqui a 40 anos.  
(Não, não estou a sugerir um golpe militar. Era mesmo só para lembrar que. E aproveito para lembrar também que nos anos sessenta a maior parte dos jovens portugueses estava ou a fazer pela vida, batendo a bolinha baixa, ou a emigrar. Assim de repente, em termos de participação política, não vejo grande diferença entre esses e os jovens de hoje.)

Repasso o post de Raquel Varela. A seguir, um comentário de Nuno Atalaia.
Grande Nuno Atalaia! Descobrir gente assim faz-me acreditar que o futuro já foi pior.

Onde estão os nossos jovens?

O problema do nosso país não são os reformados, eles são parte da solução. Não temos «velhos a mais», temos «jovens a menos». O problema é a total ausência dos jovens na luta social e política. Jovens (entre os 16 e os 25 anos), que estão em casa, a vegetar. Filhos e netos dos reformados que fizeram o Maio de 68 e a revolução de Abril. Os precários, que estão na rua, são adultos, desempregados e dependentes, mas adultos.
Os jovens estão, literalmente, a ver a banda passar, sem fazer parte da música, alvos passivos da história, sujeitos de coisa nenhuma. E pensar que a geração que fazia política na universidade e perdia 1 ou 2 anos, sem pagar propinas, era considerada preguiçosa??!! Trabalhadores, cheios de iniciativa, força emocional, são estes jovens, mortos de medo, incultos, ignorantes, competitivamente convencidos que a  política não lhes diz respeito porque eles «pensam pela própria cabeça». 40 a 60% estão desempregados, portanto, no estado animal de comer, dormir e ler 2 parágrafos no facebook, que mais do que isso dá trabalho. Já os avós estão a organizar partidos, associações e manifestações.
Quem estuda movimentos sociais será sempre confrontado com esta variável, a que devemos procurar responder e que urge compreender. A crise de 2008 tem como sujeitos sociais uma novidade histórica – os reformados, que nunca até aqui tinham tido um papel de relevância na luta social -,  e tem como ausência, pela primeira vez desde os anos 60, a juventude.
É verdade que estas palavras são uma caricatura, portanto, uma imagem deformada. Mas ainda assim, reconheçam, com algo de verdade. Há uma geração inteira que vai ser queimada, sem futuro, calada, inamovível, imagino, em frente da televisão ou do computador. Ser empreendedor era começar por tirarem um curso de memória histórica de organização com os pais, outro de política e cultura com os avós, e virem para a rua e tornar esta política ingovernável. Assim, como fizeram todos os utópicos – tantos deles com 18 anos – que nos deixaram a civilização.
Cartoon Divertido_thumb[2]

***
Cara Raquel
Sei que provavelmente não vai responder a este comentário mas mesmo assim queria deixar bem claro uma coisa. Considero-a uma das mentes políticas mais interessantes em Portugal, e a minha única pena é não a ter encontrado antes. No entanto, tenho vindo a notar que como estratega política a Raquel é capaz de cometer os erros mais aventesmais, alienando a uma causa, que considero universal, parcelas inteiras da população. Agora, alienar as pessoas a uma causa universal, digo-lhe, tem o seu mérito, mas sinceramente não creio que é esse o mérito que a Raquel almeja.
Porque eu Raquel incluo-me nessa faixa etária que você não caricaturou mas insultou, pese embora quaisquer elementos mais ou menos verossímeis dessa sua “caricatura”. Compreendo que esta “crítica” é mais um desabafo, um impulso proveniente de um qualquer fundo de amargura perfeitamente justificada tendo em conta o estado da política (económica, social e cultural) do nosso país. No entanto note-se que esta compreensão é algo que ninguém lhe deve. E note-se que como ADULTA como gosta de dizer para se diferenciar de nós reles JOVENS, desabafar assim é uma opção que você já não pode ter responsavelmente.
Mais, que um jovem, como eu, leia isto, e decida nunca mais prestar-lhe atenção e afastar-se de qualquer iniciativa ou movimento político que tenha o seu nome ligado a ela, é um impulso tão ou mais justificável como aquele que a levou a escrever este seu pequeno textinho. Poderemos ser todos uma cambada de juventudes irritadas e irritantes, mas sabe que mais, não somos apenas um problema, ou uma oposição aos seus ideiais, somos a sua única esperança e é essa contradição no povo que o camarada Mao tentava abordar – que para além de qualquer utopia proletária terá ainda de ser mitigada a eterna luta de gerações.
Para ser muito sincero nem sei se tenho a capacidade de a considerar camarada. Porque isto de brincar ás elitezinhas intelectuais, é tão ou mais perigoso, tão ou mais socialmente nocivo, tão ou mais insultuoso que brincar aos pobrezinhos. Ainda mais quando eu começo a pensar que esta visão instrumentalizante da juventude (não mais que um grupo a ser indoutrinado com a “verdade” e alienado do seu próprio potencial político) está no cerne ideológico da maior parte das organizações de esquerda. Porque eu não a vejo a tentar fazer qualquer tipo de militância de bases a nível jovem – quer saber mais dos avós e dos pais.
Como jovem posso afirmar que o meu nascimento político foi para um mundo criado pela SUA geração, para políticos da SUA geração destruindo o futuro da MINHA geração. Acordei para uma terceira via imparável e para uma das esquerdas mais fragmentadas, e mais partidariamente incompetentes de toda a história do movimento; incapaz de manter qualquer tipo de resultados ao nível da militância de base, como ao nível de teoria de esquerda; incapaz de se renovar para uma realidade que nasceu com o 25 de Abril, realidade essa que ao mesmo tempo ajudou a criar; incapaz mesmo de ser uma união mas sim um combate de egos e ninharias ideológicas face a um neo-liberalismo vital e saudavelmente unido. Passaram um atestado de incompetência política à geração que mais tempo gastou a aprender – precisamente porque estava a aprender e não a “trabalhar” – e espantam-se que nós não acorremos a juntar-nos às vossas fileiras.
E por falar em fileiras, como historiadora deve ter notado que as maiores manifestações e movimentos activistas dos últimos anos são organizados não pela CGTP ou qualquer organização sincidal mas sim por jovens vegetantes nas plataformas sociais do Facebook. E terei visto mal a forma como os doutos e santos reformados tratavam esses jovens nessas mesmas manifestações?
Entrando no registo da caricatura, a minha preocupação não estaria com os netos mas os filhos dos reformados. Essa estrondosa maioria etária no parlamento, na direção dos partidos, nos locais de trabalho tanto do lado empregante como empregado. Melhor, os adultos pais que chegam a casa demasiado preocupados em educar os seus filhos e que decidiram que o melhor acompanhante para os seus filhos é uma fauna mediática que dia após dia enche de uma ideologia pouco emancipatória a nossa visão e imaginação política. Esses pais que se espantam que os filhos APRENDEM algo, mas não aquilo que eles pensavam ou queriam. Os pais marxistas que nunca reteram essa verdade máxima do materialismo histórico – a de que uma superestrutura só se poderá renovar se a estrutura de base também ela se renovar. E não há mais básico que os jovens, e não há maior reflexo do fracasso da SUA geração que os jovens.
E agora eu poderia ficar por aqui não é? Poderia dizer que já é tarde demais que os pais não conseguiram mostrar alternativas ou escolhas políticas que minimamente empatizassem com os filhos e as suas preocupações. Poderia aconselhar algum tipo de workshop de comunicação familiar ou terapia de grupo. Mas isso não nos ajudava muito.
Por isso tento aqui acabar com um gesto que talvez a Raquel pudesse retribuir: de lhe estender o braço e chamá-la camarada. De lhe pedir diálogo sério, de aprendermos uns com os outros, de realmente olharmos para o outro lado e vermos que por muitas diferenças que tenhamos uns entre os outros, temos em comum a nossa condição de explorados, de sermos a classe social que como Lukács dizia é a única capaz de reclamar e se identificar com uma universalidade histórica.
Porque o fim da história que Marx previa era o fim dessa farsa que nos dizem ser história, o começo de uma verdadeira história. A verdadeira história por começar é a do homem livre de preconceitos que só o alienam das suas capacidades e dos seus camaradas.
E por isso, camarada Raquel, estendo o braço e deixo o meu contacto, esperando um diálogo menos irritado.
Seu
Nuno Atalaia

12 agosto 2013

em cartaz

Este é um dos cartazes da campanha eleitoral para as próximas eleições alemãs:

                    "juntos com sucesso"

Uns engraçadinhos mudaram-no para:

              "má
                                com sucesso"


Se eu fosse à CDU, tirava imediatamente todos estes cartazes de circulação. Tem potencial icónico.

deste lado do Éden




Comecei a ler o novo livro do Wladimir Kaminer, e fiquei espantada: ele estava a contar histórias que eu já conhecia! Às vezes, reconhecia até a construção das frases. Como foi possível acontecer-lhe uma coisa destas? Como é que o editor não reparou? Parecia que, por engano, todo o primeiro capítulo era igual a um texto já publicado.
Entrei no segundo capítulo: idem. Ai!
Foi então que o Joachim perguntou se desta vez podia ser ele a ler primeiro o livro - e tinha-o na mão. Eu estava a ler o livro novo do ano passado.

(Lembram-se daquela vez que comprei uma balança na IKEA, e depois a fui devolver porque me dava demasiados quilos, e portanto só podia estar estragada? Pois...)

"Deste Lado do Éden" está óptimo. Vou lendo, e a cada página dá-me vontade de desatar a traduzir para vocês. Mas de momento não dá mesmo - a minha lista de to-dos já vai na quarta folha A4.

(E por falar em balança: fui comprar uma nova balança à IKEA. Custava 14 euros, achei demasiado. Assim como assim, era mesmo só para controlar o peso da mala antes de sair para o aeroporto. Depois de muito pesar os prós e os contras das minhas escolhas de consumo, fui comprar uma nos chineses. Custou 6 euros, e parece um thriller: a minha mala tinha ora 35 kg, ora 21. Quis crer que 21 fosse o mais provável. No aeroporto, eram 27 kg. Além da confusão que foi abrir a mala para levar metade do recheio em saquinhos do Expresso como bagagem de mão, ficou a zanga: seis euros tão mal gastos! A ver se aprendo: o barato sai caro, etc., e a minha mala nunca tem apenas 21 kg.)

Parece que o próximo livro do Wladimir Kaminer vai ser sobre a adolescência. Já conheço uma das histórias, e mal posso esperar pelas restantes.

11 agosto 2013

domingo, verão, bay area

Diz que Mark Twain disse que o pior inverno que passou foi um verão em San Francisco.
No primeiro postal para a Alemanha, escrito em Julho, a Christina resumia assim a vida nessa cidade: "saio todos os dias para a escola com o meu casaco de inverno".
Nos domingos de Agosto saíamos de San Francisco em busca do verão. A highway number one (Monterey, ou mesmo Point Sur) só ia até à primavera. Para encontrar o calor, era melhor descer pela baía. Umas poucas milhas bastavam. Improvisávamos um barbecue em Coyote Point, falávamos com os surfistas sobre o vento (que outro assunto podiam ter?), celebrávamos o céu azul e o calor.
Ao fim da tarde regressávamos à cidade, e era sempre o mesmo espectáculo: nuvens densas e perfeitamente recortadas, um enorme cobertor sobre a cidade.
Eu imaginava-me com uma tesoura gigante a cortar o nevoeiro.


10 agosto 2013

batam-lhes, batam, que eles depois vão-vos agradecer por se terem tornado pessoas bem-educadas


Ia eu hoje a caminho do supermercado para comprar leite para o pequeno-almoço, e dei comigo a pensar no adolescente Froilán, que aos 15 anos apanhou da mãe, a ilustre infanta, em frente a uma multidão de jornalistas. Ele tinha atirado uma adolescêntice bastante legítima aos fotógrafos, "quantas já fizeram?", e a mãe, sem tergiversar no sorriso, pô-lo na ordem com uma palmadinha na nuca. A um rapaz de 15 anos, à frente dos fotógrafos. Ó adeptos da palmada bem aplicada no momento certo, para "domesticar" esses "animais" que vos nasceram e fazer deles "meninos bem-educados" (o que está entre aspas é vocabulário usado nos argumentos pró palmada): ponde aqui os vossos olhinhos, porque é um bom exemplo de aonde podeis ir dar com os burros.

Na fila do supermercado havia um miúdo a choramingar, porque queria um chocolate e a mãe não o deixava comer logo ali, dizendo que estava demasiado mole. Olhei para ele com pena, porque ainda só era sábado de manhã, e a vida já parecia tão dura. Deu-me um pequeno empurrão, muito zangado. A mãe deu-lhe logo uma palmada. Eu não bati na mãe porque sou a favor de quebrar estas cadeias de violência. Só lhe sussurrei que entendia o miúdo: com aquele "chega pra lá" quis-me dizer que se estava a sentir devassado pelo meu olhar (mas guardei para mim o evidente: um miúdo que é educado com a mão em vez de palavras, aprende que o normal é usar a mão em vez de palavras). Depois saí do supermercado a pensar que da próxima vez que vir um miúdo a fazer uma birra o melhor é ignorá-lo, trocando antes um olhar de solidariedade com a mãe.
De palmada em palmada, os meus pensamentos voltaram ao pobre do Froilán, e dele para o mais recente príncipe inglês:



Ponham o filme a correr, fechem os olhos, e imaginem o que será a vida de uma criança que vai crescer no meio de um barulho assim. Espero que à Kate não lhe escorregue muito a mão, porque o miúdo corre grandes riscos de, em chegando a adolescente, lhe dar vontade de correr todo aquele pessoal histérico à bofetada.

09 agosto 2013

ao entardecer, um cão...

Ao entardecer, um cão arrebita as orelhas. Ouve ruídos estranhos ao fundo do quintal, e há que defender a propriedade de todos os possíveis invasores. 
Mal sabe ele que o perigo vem de onde menos se espera.



Ladra como um desalmado. Contras as raposas e as cobras, os ratos e os pássaros. Contra os gatos vadios que procuram o seu prato de comida no quintal da vizinha. Contra a brisa - ou talvez para ela, com alegria: para a brisa, os aromas, a vida, a liberdade.
Mal abrimos a porta de casa, sai disparado a ladrar até à ramada que marca o fim do seu mundo, defende tudo aquilo a que tem direito. Faz uma barulheira terrível, os vizinhos já se começaram a queixar. A ver se no próximo ano não me esqueço de lhe abrir uma conta no facebook.



Minorca autoconfiante, persegue as ovelhas. Mas elas põem-no no seu lugar. Batem com a pata no chão, e ele põe-se logo em sentido. "Eu?! Faça de conta que nem estou aqui, minha senhora..."




Depois da canoagem, em Ponte de Lima, o Matthias caminha descalço junto ao rio, e ele trota alegremente ao lado.
Às vezes pára, olhando como quem pergunta: "então, não vens?"



Luta contra o sistema de rega automática. A cada um os seus moinhos de vento.





No Alentejo e no Douro saboreia a liberdade dos espaços abertos. Aprende a negociar territórios com os outros. Perde em toda a linha. E que importa? Anda feliz.






Ao entardecer regressamos à praia. Temos vinho branco para brindar ao pôr-do-sol. Ele olha-nos com placidez, a nossa raposa do Saara.






08 agosto 2013

sonho de uma noite de verão



Tenho andado a sonhar isto: deixar o povo ler os contratos, as leis, os regulamentos, e de um modo geral tudo o que o governo decidir e implicar custos para o país - antes de estes serem assinados. Publicar esses documentos na internet, e dar ao povo dez dias para se pronunciar, alertar para riscos, sugerir soluções. Depois, o governante que assinar o documento fica pessoalmente responsável pelo pagamento do prejuízo para o qual foi previamente alertado.

E já que estou a sonhar, repasso a sugestão de um advogado berlinense: inspirados pelo exemplo da wikipedia (uma comunidade de experts que actualizam e melhoram permanentemente textos sobre o assunto da sua especialidade), podia ser criada um wikilex para deixar que fosse a comunidade internética a traduzir para língua de gente os textos da Lei. O governo assinaria a versão do texto em simplês.
E com o que pouparia em consultores e pareceres (ouvi dizer que acontece muito a mesma empresa que ganhou um dinheirão a escrever um regulamento por encomenda do Estado ganhar depois um dinheirão a decifrar o que ela própria escreveu) até podia dar uma ajudinha para manter o site activo.  

(Passo a vida a descobrir o ovo de Colombo com algum atraso. Parece que já há por aí WikiLex e WikiLaw e JurisPedia, e sabe-se lá mais o quê. Era mesmo só arranjar mais uma meia dúzia de sonhadores de verão que se entregassem ao assunto com mais perseverança que eu, e a coisa ia.)

(imagem: a partir desta, encontrada neste site)

07 agosto 2013

why is everybody afraid of love?

palpável



Ao cair da tarde há relâmpagos no céu seco. Trovões. Segue-se a chuva, torrencial.
Ontem, na varanda, a Christina estendeu a mão sobre a rua, perguntou: "sentes a quantidade de energia que anda no ar?"
Estendi a minha mão, mas não senti energia nenhuma - apenas a felicidade que esta semana anda no ar cá de casa.

Somos outra vez quatro.

06 agosto 2013

então já o dia vai alto, e ainda não contei aqui a minha vida?!

Pois é, é muito difícil voltar ao vício.

Conto então que a Christina regressou bem e feliz, fomos buscá-la ao aeroporto e demos com uma dúzia de amigos dela, com cartazes, bolos acabadinhos de fazer, balões com corações e coisas assim. Houve muita choradeira - e desta vez não fui só eu -, muitos risos, muitos abraços enormes. Depois ela, que estava a chegar de uma viagem de 22 horas, pediu para vir de autocarro com os amigos, e a festa continuou cá em casa, com esparguete para os esfomeados, bolos de chocolate, cerveja e espumante. À meia-noite nós fomos dormir e eles foram para uma festa sabe-se lá onde - com a Christina, a tal que tinha acabado de chegar de uma viagem de meia volta ao mundo.

**

Eu não conto, mas há outras mocinhas que sabem o que eu fiz no Verão passado, e andam a espalhar pelos sete cantos da internet. Como a Carla R. a quem roubo o post sem vergonha nenhuma, porque é um daqueles relatos que me deixa com inveja de mim própria:
(na primeira fotografia, a grávida da direita sou eu)


5.8.13


Oporto, I lobe you too


Houve ali atrás, um fim de semana que começou da pior maneira possível.
Não. Começou antes, na bicha do Guedes por causa do bom pernil.
Minto. Começou há uns meses, quando alguém desafiou outra pessoa e eu meti-me ao barulho.
Tinha que ser mesmo mau. Foi pior. Foi tiro e queda.

Muito mais grave do que amor à primeira vista.
Foi o Porto pela luz dos olhos delas. Pelas histórias da Helena e os desejos e amores da Calita
O Porto tem o que é melhor.
Elas.
Mas merecia infinitamente mais.

Oporto, agora, I lobe you too. A ti e às tuas clarabóias. À Sé do orgão que se deixava tocar por mãos que até conheço. As ruelas sem luz nem esperança da Ribeirinha. Aquilo que foi a escola da FontinhaO que ainda resiste do que se escreve e desenha nas tuas paredes. Os jardins de Serralves, com os sons da banda a ensaiar o Jazz de mais tarde. As traseiras da Guest House que nos faz apaixonar por ti - como se tivessemos escolha. O teu rio e as pontes, mais o teleférico e o eléctrico. Tudo o que és. E ainda mais o que podias ser. As escadas da Lello e Irmão. Bolas, até do Silo Auto fiquei a gostar. E de acordar apenas 4 horas depois de ter saído da Tendinha e tudo. Tudo.
Pelos vistos, sou o mais recente emplastro dos Oporto lobersNão há volta a dar.



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05 agosto 2013

o programa recomeça dentro de momentos

As férias estavam a ser boas, mas acabaram. Ontem. 
Amanhã será o primeiro dia do costume:


Ou seja:

Hoje vou comprar uns balões com as cores bolivianas, e espalhar pela casa. A Christina regressa logo à noite, depois de um ano na Bolívia.

Durante o encontro de preparação para o ano de voluntariado mencionaram uma das críticas que fazem a estes movimentos entre a Europa e os países pobres nos quais os jovens querem trabalhar: pelo mesmo dinheiro, podiam dar emprego a alguém do próprio país.
Hoje sei o que responder a essa crítica: os jovens europeus que partem para um serviço de voluntariado voltam diferentes, com o coração muito mais aberto, atento e crítico - e tão cheio que transborda para os que ficaram. Foi a Christina que nos ensinou a cantar "tú no podes comprar el viento".