Esta manhã, encontrei por acaso estes dois textos na Enciclopédia Ilustrada. Os escritores José Cardoso Pires e Maria Cecília Correia falam sobre a morte. Partilho-os apenas porque tenho a certeza de que vão acrescentar algo aos leitores deste blogue. (Mas não se preocupem comigo, está tudo bem! :) )
1.
Esta imagem, que partilho apesar da péssima qualidade da fotografia, é um apontamento que José Cardoso Pires escreveu a 2 de #Outubro de 1997. Viria a morrer em finais de Outubro do ano seguinte.
Encontrei-o na estante da sua filha Ana, e fui tocada pela naturalidade com que aceita o seu próprio Outono, e a força da alegria que se revela na última frase.
Enquanto há pargo, há esperança...
"2 Outubro 97
Fui até à varanda e nesta manhã de sol e de verão vejo a grande nespereira do quintal podada corajosamente para ganhar juventude para o ano que vem.
Para o ano que vem já cá não estarei - espero. E sonho com um acabar tranquilo e natural da folha que se desprende da nespereira e se faz estrume.
Entretanto, este outono está a ser admirável e eu continuo a viver por mim mesmo do nada que escrevo, sem ajudas dos ministérios nem dos lobbies dos mundanos da intelligentzia.
Feitas as contas, tudo bem. E amanhã, 6ª feira, espera-me uma boa posta de pargo cozido na Marítima de Xabregas."
2.
“Morrer deveria ser, pelo menos para mim, com este sentimento de ter feito as pazes com a Vida. Com a doçura de minutos serenos e contínuos, com um toque dessa doçura na minha pele interior como espécie de chuva-poeira que só pode ser ternura. Morrer deveria ser sem angústia, sem desespero, numa sequência de este usufruir de uma graça especial e gratuita que nos reveste às vezes sem que saibamos porquê. Não é a exultação, não é a posse plena dos bens que nos toca em certos dias. É isto que atrás disse: estar em paz com a Vida. Ela não magoa, não fere, não interroga (ou não interrogamos). Somos docemente amigas, ombro a ombro, mão a mão, caminhando em completo entendimento, em perfeita união, sem cantar ou antes: cantando baixo a mesma canção. E assim nos deveríamos despedir dela, sem saudade, sem remorsos de não termos sido isto ou aquilo.
E depois… Depois, o que mais desejava era entrar em Deus como entro na água verde de Galapos: liberta, calma, feliz, entregando-me totalmente sem que nada em mim se retraia, num abraço pleno a quem me abraça também.
A fusão consentida, procurada até! “
Maria Cecília Correia – “Presença Viva”, Edição do Secretariado Diocesano da Pastoral das Vocações.
Nota: este texto foi lido no seu velório e, posteriormente, em todos os de quem foi falecendo na família.
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Enquanto escrevo, o youtube vai saltitando de peça em peça. Não sei se é inteligência artificial, ou o algoritmo, ou Deus, ou o universo, mas as suas escolhas aleatórias começaram com o Lamento de Dido e agora vão nos Impromptus de Schubert - a música a que me agarrei para não soçobrar no filme "Amor" de Haneke. Estará tudo ligado?
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