04 julho 2024

"queima das fitas"


Encontrei nos arquivos da Enciclopédia Ilustrada este texto que escrevi no dia em que o tema foi "queima das fitas", ao seguir ao dia em que fora "Leonardo da Vinci", e partilho: Em finais dos anos sessenta, talvez princípios dos anos setenta, lembro-me de ter ido com os meus pais ao Porto ver o cortejo da #Queima_das_Fitas. Morávamos em Braga, e a viagem de carro fazia-se a uma média de 30 ou 40 km/h - uma estopada interminável atravessando aldeias e vilas. Mas todo esse tempo na estrada foi recompensado pelo que testemunhámos no Porto: a ousadia dos carros dos estudantes, que arriscavam criticar a academia e o sistema político.
Eu era pequena - não teria nem sete anos - mas lembro-me do interesse com que o público seguia aquele cortejo, da sensação de perigo iminente que pairava no ar, das gargalhadas, da curiosidade e do frémito.
Esse cortejo marcou-me, e fez nascer em mim uma enorme admiração pelos estudantes universitários.
Quando eu própria cheguei à universidade, no princípio dos anos oitenta, a Direita estava a reconquistar terreno na Academia, e ia-se instalando uma praxe como nunca ali fora tradição. No final do curso, naquela que seria a minha última semana académica, resolvi ir à missa na catedral onde o bispo fazia a benção das fitas. Vi a catedral repleta de pessoas fardadas a preceito, a agitar as fitas e a conversar com os amigos em grande animação, como se estivessem num estádio de futebol e não numa igreja. Perguntei-me o que levava o bispo a aceitar fazer aquela figura de palhaço na sua própria casa.
De longe, vou acompanhando o desconchavo crescente: a substituição do Zeca e do Vitorino pelo Quim Barreiros nos carros de som, a cerveja e os comas alcoólicos, os abusos sexuais, a ordinarice indescritível dos temas dos carros.
Estes estudantes universitários bêbedos e alarves, estas pessoas em quem o país tanto investiu e investe, em quem deposita tantas esperanças, estão nos antípodas do Leonardo da Vinci que ontem aqui homenageámos.
É embaraçoso ver as figuras que fazem.
E, para mim, é especialmente doloroso comparar estes cortejos àquele que vi no tempo da ditadura. Os que eu vi em finais dos anos 60 eram cidadãos adultos, responsáveis e empenhados na sociedade e no mundo.
Estes? A julgar pela imagem que dão de si durante a Queima das Fitas, são pessoas embotadas pelo egocentrismo de grupo, sem ética nem sentido de dignidade, apostadas num carpe diem ditado por uma "tradição" artificial e autoritária.

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