03 outubro 2023

conta-se em Weimar que...

 


Na praça do teatro, o local onde foi escrita a constituição da república de Weimar, à volta da estátua de Goethe e Schiller: uma instalação a lembrar a tragédia dos refugiados.

Algum dia teria de acontecer: na Enciclopédia Ilustrada, o tema do dia foi "Weimar". Tentei sintetizar o que sei numa espécie de “as obras completas de Shakespeare em 90 minutos”. Agarrem-se bem, cá vamos nós. A minha Weimar começa com uma mulher. Já existia antes, é claro, mas era uma terra mais ou menos igual às outras
- ai caramba! Ainda agora comecei e já estou a dizer asneiras. Antes desta mulher, já lá havia alguma história: Lucas Cranach pai morreu ali no auge da fama que os seus calendários Pirelli do Renascimento lhe davam, e no auge da riqueza ganha também graças à máquina de impressão que comprara a Gutenberg, com a qual imprimia os escritos do seu amigo Martinho Lutero; e também Bach ali passou, e até passou umas semanitas na Bastilha do palácio antigo, onde ficou preso por ter decidido mudar de empregador sem pedir autorização como deve ser, e onde aproveitou o sossego de não ter a choradeira de futuros compositores como o Carl Philipp Emanuel Bach, criancinha de colo à época, aproveitou o sossego, dizia, para compor o cravo bem temperado, segundo dizem –
onde é que eu ia? Ah, já sei: Weimar seria uma terra mais ou menos igual às outras até ao dia em que uma muito culta Anna Amália, de 16 anos, foi apressadamente casada com o também muito jovem duque, para garantir descendência àquele nome antes que a frágil saúde do rapaz o levasse desta para melhor. E cumpriu: quando enviuvou, aos dezoito anos, já era mãe de um principezinho e estava grávida de outro. Tudo isto aconteceu por meados do século XVIII, quando andavam a introduzir o cultivo da batata na região. Muito ciosa da educação do filho, Anna Amalia foi à universidade de Erfurt buscar um dos mais importantes autores do Iluminismo, Christoph Martin Wieland, que veio arejar a cabeça do príncipe adolescente e de caminho traduziu peças de Shakespeare para o dar a conhecer no teatro da terra. E assim ia a vida, com Anna Amália a juntar à sua volta uma bela grupeta de intelectuais, a fazer muito pela vida cultural da região, a tratar de criar uma excelente biblioteca feminista avant la lettre (entre os livros centenários e os volumes habituais à época, havia uma surpreendente quantidade de livros de mulheres, sobre mulheres ou para mulheres), a criar uma escola de artes para elevar o nível cultural da população. Foi então que Wieland convidou Goethe a vir passar uns dias a Weimar, “parece-me que vais gostar”, terá ele dito. Goethe, que andava pelos 25 anos e já tinha escrito “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, veio, encontrou uma corte a viver literalmente em cima de caixotes porque o palácio ducal tinha ardido quase completamente (sobrou a Bastilha do Bach, ao menos isso) – e ficou. Uma dama da corte, Charlotte von Stein, deve ter sentido a atracção do abismo, porque andou décadas a tentar dar modos - lá está: corteses - àquele génio intempestivo. Acabou por desistir quando Goethe meteu em casa uma “barregã”, a Christiane Vulpius, e quando partiu apressadamente para Itália, mais que farto dos tantos espartilhos que lhe impunham. Pois Goethe lá foi a Itália, lá voltou feliz e contente, lá recebeu das mãos do grão-duque (o Carl-August, sabem? Aquele dos cães Weimaraner) uma casinha muito jeitosa mais perto do centro da cidade, que na realidade eram duas: a casa virada para a rua, uma autêntica casa de fachada onde ele recebia as visitas importantes, e por trás dessa a casa onde vivia com a “barregã” e o seu filho August. Nas traseiras desta, o jardim onde ele fazia as suas experiências botânicas, e os pavilhões onde guardava as suas colecções de pedras, esqueletos de animais, e tudo o mais que lhe interessava. Goethe regressou tão cheio de boas impressões que contagiou todos com a febre da Itália, e lá foi a corte conhecer também esse universo tão diferente das terras de Weimar.













Entretanto: entra Schiller em cena. A princípio ficou-se por Jena, a 20 km de Weimar. Goethe devia achar que Weimar era demasiado pequena para ambos. Só ao fim de vários anos é que Goethe se dignou falar com “o outro”, e acabaram por ficar amigos. Embora nunca se saiba o que significa “amigos” quando se trata de Goethe. Na terra, conta-se que terá tido o crânio do seu amigo Schiller em cima da sua secretária. Eu cá não sei de nada, ouço coisas destas e lembro-me logo do museu que exibia o crânio de Napoleão aos sete anos de idade. Além disso, Schiller era tão remediadinho que o deitaram numa vala comum, e ainda hoje não se sabe bem a quem pertencem os ossos desencontrados que muitos anos mais tarde foram buscar a esse cemitério para depositar numa urna mais digna, ao lado da de Goethe, no monumental túmulo da família ducal. Schiller sai de cena, demasiado cedo como todos os que vêm ao mundo por bem. É a vez de Napoleão chegar a Weimar e ser recebido – que remédio! – com todas as honras no novo palácio ducal. Foram tempos difíceis em Weimar, com os soldados franceses a saquear e destruir tudo o que podiam. Conta-se na terra que Christiane Vulpius, a mulher com quem Goethe vivia há mais de vinte anos, defendeu a sua casa – as duas, aliás, a de trás, e a da fachada para a rua – com unhas e dentes, e por isso Goethe decidiu casar com ela numa de Sturm und Drang. Também se diz que eles não defenderam nada, limitaram-se a albergar naquela famosa casa alguns dos chefes franceses. E também se diz que Goethe terá decidido casar com a sua companheira porque, perante o devastador cenário de tantas mortes e destruição, terá pensado em fazer alguma coisa acertada na vida. Em todo o caso: em meia dúzia de dias tomou a decisão e consumou: casou com "a sua barregã". O que provocou grande escândalo em Weimar. Mas a mãe do Schopenhauer abriu uma pequena brecha no muro de resistência da corte, dizendo: “Se o Herr Goethe lhe deu o seu nome, nós seremos capazes de lhe oferecer um chá.” E convidou a nova Frau Goethe para o seu salão. Pouco antes das invasões francesas e daquela vitória perto de Jena que abriu a Napoleão o caminho para leste, chegara a Weimar uma russa, filha e irmã de czares, neta de Catarina, a grande, recentemente casada com o filho de Carl August. Este escrevera uma carta muito humilde ao czar, dizendo que sempre tivera esse sonho, sem que ousasse dizê-lo em voz alta, mas ao saber que um primo dele casara o seu filho com uma das princesas russas, vinha agora temerariamente patati-patata. E foi assim que a pobre da Maria Pavlovna, coitadita, veio de São Petersburgo para Weimar. Ao chegar, pensou que o palácio ducal seria a residência familiar para as férias no campo. Mas não, era mesmo ali que faria o resto da sua vida, e lá tentou fazer o melhor que podia. Por sorte, pouco depois de casar teve de fugir às tropas francesas e regressou a casa durante algum tempo. Matar saudades da vida urbana, coisas assim. Mas não há guerra que sempre dure (“infelizmente...”, terá ela suspirado) (isto sou eu a imaginar), e lá voltou para Weimar, onde assumiu as suas funções com dignidade e sentido de dever. Quando a vida te dá limões em forma de um Herr Goethe já entradote, convidas Liszt para vir morar na tua província e tentas dar nova força à vida cultural da terra, agora com música. Foi isso mesmo que a princesa russa fez, e correu bem: tal como anteriormente muitos escritores tinham procurado aqui a proximidade de Goethe, em meados do século XIX vários compositores estiveram muito presentes na cidade. O mais famoso será com certeza Wagner, e talvez viesse mais por causa da filha de Liszt que pelo colega propriamente dito, e aqui estreou Tannhäuser. Para além de dar novo fôlego à vida cultural da cidade, Maria Pavlovna fez muito mais por Weimar: desde elevar o nível político do ducado e garantir uma protecção especial devido à aliança com a Rússia, até uma obra social muito abrangente, em grande parte paga do seu próprio bolso, que fez dela uma grã-duquesa muito amada. Na segunda metade do século XIX não acontece nada de realmente empolgante na cidadezinha, excepto em termos de marketing: reforça-se a ideia da importância histórica da cidade no panorama cultural alemão, põe-se em frente ao teatro uma estátua de Goethe e Schiller, ambos do mesmo tamanho e volume (na vida real, eram o Bucha e o Estica), com as mãos unidas por uma coroa de louros que Goethe entrega a Schiller, mas tendo cada um deles o olhar no seu próprio horizonte. A estátua foi feita com o bronze de canhões fundidos oferecidos pelo rei da Baviera. Canhões dos turcos, diga-se de passagem - e pergunto-me que diria Goethe, o do divã ocidental-oriental, sobre isso. Damos agora um salto de várias décadas até ao fim da primeira guerra mundial. Em 1919, a pacata cidade é sacudida por duas enchentes: os estudantes que procuram a nova escola, a Bauhaus, onde se sentem parte de um movimento inebriante de modernidade; e os deputados que fogem aos violentos tumultos de Berlim para aqui escreverem com mais sossego a constituição da república recém-criada. A população de Weimar olha para toda esta gente com perplexidade. Particularmente o pessoal da Bauhaus, essas raparigas de cabelos curtos que andam misturadas com rapazes, esse estranho Itten que faz no parque de Goethe cerimónias esotéricas com os seus (e as suas!) estudantes em trajes menores. Os deputados regressam a Berlim com a sua constituição escrita paredes meias com Goethe e Schiller, Wagner e o Shakespeare de Wieland. A Bauhaus fica. As mães da cidade ameaçam os filhos: “se não comes a sopa toda, vêm por aí os da Bauhaus!”




Pintura mural de Oskar Schlemmer no edifício de oficinas da Bauhaus.

Talvez os meninos não tenham comido a sopa toda - e quem veio foram os nazis. A Turíngia, onde fica Weimar, é uma das primeiras regiões onde se implantam. Weimar adora Hitler, Hitler adora Weimar – e apropria-se da sua herança histórica, e manipula-a a seu bel-prazer. Uma das primeiras promessas do partido NSDAP, se ganhar as eleições, é expulsar a Bauhaus de Weimar. A escola muda-se para Dessau em 1926, e junto à primeira casa Bauhaus, a Haus am Horn, constroem-se casas como os nazis acham que deve ser – lado a lado, apesar de terem sido construídas anos depois, parecem cem anos mais antigas.





Memorial dos povos Sinti e Roma vítimas dos nazis.


Memorial dos judeus vítimas dos nazis.

O campo de concentração de Buchenwald é construído numa colina junto à cidade, na floresta onde Goethe tanto gostava de passear, e durante oito anos ali serão cometidos diariamente crimes hediondos. No centro da cidade constroem um hotel “para mil anos”, como o Reich, com uma única varanda virada para a praça onde fica também a casa de Lucas Cranach. A varanda do Führer. A população da cidade enche a praça e chama o seu querido Führer em brados festivos. E é aqui, precisamente aqui, que Weimar me provoca enorme tristeza, profundo desalento: depois dos escritos de Lutero que Cranach distribuía, depois da música de Bach nas igrejas, de inúmeras encenações das peças de Shakespeare e de Schiller no teatro, de todo o trabalho de Goethe, depois de tantos salões culturais, depois da biblioteca e da escola de artes da Anna Amalia, depois das obras de apoio social da Maria Pavlovna, depois de todo o esforço para implantar valores humanistas na sociedade e elevar o nível cultural da população: Weimar foi um dos primeiros lugares onde os nazis se conseguiram estabelecer.

2 comentários:

jj.amarante disse...

Cara Helena,

Obrigado por este seu texto longo e interessante sobre Weimar que me suscitou este longo comentário:

Tenho memórias longas, como de uma sua referência a uma reunião com senhoras importantes de Weimar em que receava ter dito alguma inconveniência num ambiente social hierárquico-conservador, que me lembrava ambientes bafientos de Portugal. Depois da alegria da mudança para Berlim uma cidade cosmopolita cheia de energia, de música e basicamente de tudo à excepção de uma praia com ondas. Desta vez, quando vi o portão de Buchenwald que não conhecia, tive um mau pressentimento logo confirmado que era arquitectonicamnete parecido à entrada para combóios de Auschwitz. A frase "jedem das seine", cada um tem o que merece, a introduzir as valas comuns das vítimas do campo de extermínio, é uma forma extrema de meritocracia.
À medida que o tempo passa e que me continuo a interrogar sobre o que aconteceu em sociedades tão perfeccionistas e com tão grandes realizações como o Japão e a Alemanha para cometer tantas atrocidades vou-me convencendo que foi a tirania do mérito, primeiro competindo energicamente para ser o melhor entre os melhores, depois para primeiro segregar e depois eliminar os considerados menos meritórios. Vejo isto também na América de onde me referem os epítetos de "loosers" distribuídos a peões europeus deslocando-se a pé em cidades para automóveis e a desproporção de recompensas nas actividades económicas.
Da própria China, de que tentei encontrar uma explicação para a continuação do uso dos ideogramas, requerendo um esforço desproporcionado sem uma vantagem aparente, a melhor conjectura que me ofereceram foi a selecção dos mais capazes de memorizar e se expressar num sistema tão complicado, consistente com a existência de exames nacionais de apuramento desde há milénios.
Falta-me ler a "Tirania do Mérito" do Michael Sandel mas a dificuldade em conter a soberba quando uma sociedade estimula cada um dos seus membros a preparar-se o melhor possível para a vida, é um dos problemas mais importantes dos tempos que correm. Em Portugal resolvemos isto com o escárnio e mal-dizer o que, introduzindo algum atrito no progresso, nos evita alguns disparates mas também nos inibe de muitas actividades benéficas e desejáveis.

Unknown disse...

O que aprendo... Para ler com tempo, devagar e com muita imagem mental. Obrigada, Helena.