02 dezembro 2020

Napoleão e eu, e mais uns quantos

Calhou de estar a morar em Weimar quando a região lembrou a batalha de Jena e Auerstedt, por ocasião do seu bicentenário. Um dos eventos organizados foi a reconstituição da batalha nos próprios campos em que acontecera duzentos anos antes. Fui ver, e lembrou-me uma fantasia infantil com soldadinhos de ferro - só que estes eram de carne e osso, e muito bem fardados, e vinham com cavalos e armas. 

Para leigas como eu, aquilo era uma patetice de homens a andar para um lado e para o outro. Mas para eles deve fazer sentido, porque repetiram pelo menos em 2016 - que é a data deste filme:


A batalha de Jena abriu a Napoleão o caminho para a Rússia. Mas antes disso os soldados dele fizeram alguns estragos em Weimar e nas vizinhanças. Um deles ainda lá está à vista de todos: uma bala de canhão bem enterrada na fachada de uma casa vizinha da de Goethe. Terríveis momentos aqueles (contaram-me em Weimar de forma tão viva que acreditei que a pessoa os tivesse vivido ela própria): os soldados em semicírculo virados para a casa de Goethe, prontos a invadir e pilhar. Imagino Goethe lá dentro, preparado para o pior. Mas eis que a porta principal se abre, e Christiane Vulpius se apresenta aos soldados, destemida e zangada. A partir daqui, as versões divergem: há quem diga que os soldados preferiram não afrontar aquela fúria, e fizeram meia volta e debandada geral. E há quem diga que os soldados franceses, uns cavalheiros, preferiram não incomodar a senhora. Finalmente, historiadores há que dizem que Goethe era muito respeitado por Napoleão, e que, enquanto Christiane empatava os soldados, Goethe foi falar com o comandante francês pedindo para ele pôr os seus homens com dono.
Se me deixassem mandar, escolhia a primeira versão, que é a mais engraçada.  

Nessa altura, Goethe vivia já há duas décadas com a Christiane Vulpius em regime de pouca-vergonhice. Mas depois daquele episódio ganhou juízo, foi logo meter os papéis para casar, e passados uns dias estavam a unir oficialmente os trapinhos há muito unidos (sim, que a Erotica Romana não se escreveu sozinha). Não é que isso melhorasse muito a situação daquela mulher, que continuava a ser desprezada pela sociedade. Só a Frau Schopenhauer, a mãe do filósofo, foi capaz de um momento de delicadeza quando a convidou para o seu salão, dizendo às outras megeras snobs "se Goethe foi capaz de lhe dar o seu nome, nós também conseguiremos dar-lhe um chá". O que está bem dito, mas podia também lembrar-lhes que a Christiane tinha dado um filho ao Goethe, e que isso vale bem mais do que um nome ou todo o chá do mundo. De facto, Christiane deu cinco filhos a Goethe, mas só o primeiro sobreviveu - os outros morreram todos à nascença, vítimas de eritroblastose fetal. Penso às vezes no sofrimento de Christiane Vulpius: essa mulher a quem os filhos morriam logo após o parto. Como será, depois da morte do segundo filho, depois da morte do terceiro, estar de novo grávida e a temer que o quarto possa morrer também? E o quarto a morrer também à nascença, e ela a engravidar de novo, e a passar outros nove meses de horroroso temor? 

Se fosse comigo, ganhava tamanha fúria contra a vida que ficava bem capaz de aviar todos os soldados de Napoleão à bofetada. Pelo menos. 

Em Weimar contaram-me também que os soldados franceses fizeram imensa festa em frente à casa de Schiller, recitando alguns dos seus poemas que tão bem harmonizavam com os ideais da revolução francesa. Não sei. Em todo o caso, não seria um amor correspondido. Ao contrário dos outros grandes de Weimar (Goethe, Herder, Wieland), Schiller recusou-se a louvar o poderoso invasor, remetendo-se a um precavido silêncio.

Quem não podia ficar calado era o Grão-Duque Karl August. Pelo contrário: depois de perdidas as batalhas de Jena e Auerstedt, e de enviar a sua jovem nora Maria Pavlovna, irmã do czar, em direcção à segurança de São Petersburgo, recebeu Napoleão no seu palácio para negociar o melhor que pôde. Napoleão entra no palácio, começa a subir a escadaria monumental, e admira o candelabro gigante suspenso sobre as escadas. E é neste momento que eu própria entro na história: duzentos anos mais tarde dei comigo a viver numa casa em frente a esse candelabro. À noite, quando havia recepções no palácio e as luzes se acendiam festivamente, parava uns momentos a olhar, unida a Napoleão por um encanto que me transportava no tempo dois séculos para trás. 


 


    

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