No aeroporto, a caminho da África do Sul.
Por causa de umas coisas e outras, traduções e burocracias, prazos a rebentar, mil coisas para organizar antes de sair, atrasei-me imenso. Atirei a minha tralha à tonta para dentro da mala, zarpei.
No aeroporto, ainda atordoada de stress, só fiz asneiras. No controle disse que não tinha líquidos, os sacos tiveram de voltar para trás, esqueci-me que tinha um creme noutro sítio, tive de abrir o saco.
No meio da confusão, o controlador - todo bem disposto - falava do que via no écran. "Vai observar pássaros? Isto são binóculos de profissional! O da ópera também é engraçadinho..." Parvo! Não os deviam deixar beber cerveja ao almoço.
Depois de virar os sacos do avesso e de me rastrearem os sacos e as calças, caí em mim: Bruxelas!
Já me tinha esquecido. Claro que estão muito mais atentos, claro que não passa mais nenhum creme distraído no fundo de uma carteira. E provavelmente a conversa dos binóculos era para mostrar ao público que está realmente atento.
O avião está atrasadíssimo. Queria ir comprar uma bebida na máquina, mas mesmo ao lado estava uma senhora a rezar, com o tapete estendido no chão. Preferi não a incomodar.
Daí a bocadinho a companhia avisou que ia distribuir bebidas gratuitas a todos.
Obrigadinha, ó Alá! Já poupei 3,5 euros.
Vou a caminho do Cabo das Tormentas (sim, o meu vizinho avisou-me: "um vento horroroso, leva gorro e cachecol!") e arrependo-me da pouca atenção com que li os Lusíadas e a Mensagem. Agora faltam-me os versos para fazer minhas (vá lá, vá lá: nossas) aquelas ondas.
(Tanto melhor.)
30 abril 2016
"o povo vulgar"
"Por favor, continuem a fugir!
Aqui não há nada que morar!
Refugees not welcome"
Em Freital, uma pequena cidade com 40.000 habitantes, à distância de dez minutos de comboio de Dresden, há movimentos anti-refugiados muito fortes. Um deles, inspirado no Pegida, chama-se "Frigida". Apesar de ser uma situação extremamente séria, sempre que deparo com este nome não consigo evitar uma gargalhada.
Os movimentos anti-refugiados têm-se revelado um importante ponto de encontro e de fortalecimento de redes da direita radical: de Frigida (lê-se: frriguída) para piquetes de protecção civil e para um grupo terrorista que foi alvo de uma razia na semana passada levando à prisão de cinco dos seus membros - quatro homens e uma mulher.
O jornalista Sebastian Leber foi a Freital, e publicou um longo relato no Tagesspiegel, de que traduzo algumas partes e sintetizo outras.
(O título - "Das gemeine Volk" - é um trocadilho: "gemein" tanto significa "comum" como "repulsivo/imoral/vil" ou, na Botânica e na Zoologia, "sem características especiais". Gostava de ter encontrado uma palavra que sugerisse imediatamente "vil" e "normal".)
O povo vulgar
Sebastian Leber, Tagesspiegel, Seite 3, 26.04.2016
A reportagem começa pelo dono de um dos bares mais populares de Freital, que deixa bem claro que na cidade não há nazis. Enfim, não muitos. E terroristas é que não há mesmo.
Tem um ar tão simpático que uma pessoa se sente tentada a acreditar no que diz. Nos últimos tempos tem-se falado muito de Freital: protestos enormes contra o uso de um antigo hotel para abrigar refugiados, ataques com explosivos a refugiados e partidos de esquerda, e agora a prisão de 5 pessoas da cidade sob acusação de fazerem parte de um grupo de terroristas. Ridículo, diz ele. Essas pessoas não são terroristas. Quando muito, exageraram um bocado e fizeram alguns disparates. Se as conhece? "Nu", diz ele, que é como nesta região se responde para dizer "sim". "Tenho a certeza que querem assustar refugiados, mas não os querem ferir." E acrescenta: "são pessoas normais".
Freital destaca-se no contexto das localidades da Saxónia onde tem havido protestos fortes contra os refugiados. Aqui, o ódio materializa-se de forma mais visível. Nas manifestações contra o centro de refugiados faz-se frequentemente a saudação nazi. Em resposta a um inquérito de rua de um jornal local, uma habitante afirmou que as pessoas de direita que atiram pedras não são perigosas, uma vez que não atiram pedras aos alemães.
O dono do bar continua: na sua grande maioria, os habitantes de Freital não são xenófobos. O que acontece é que têm observado coisas. Por exemplo: desde que os refugiados chegaram, há mais roubos nos supermercados. Ou que os do norte da África às 11 da noite vão comprar snacks à bomba de gasolina, apesar de custarem o dobro do que custam no Aldi. Ou que há sempre estrangeiros a fazer fila nos correios para enviar à família, lá no país deles, o dinheiro que o Estado alemão lhes dá. "Eu não os quero julgar", diz ele. "Faz parte da sua cultura."
No bar está sentado um homem de cabeça rapada. Diz que não é da extrema-direita - aquilo é apenas um penteado. O que o intriga: " Porque é que os sírios vêm todos para cá? Será que na terra deles não têm um exército que os proteja?" O dono do bar concorda. "Imagine-se", diz ele, "que na altura da guerra os alemães fugiam todos, em vez de lutarem pela sua pátria. Ia ser uma catástrofe!" Faz uma pequena pausa. Não, não reparou no que disse.
A cidade está cheia de graffiti contra os refugiados. Encontram-se às dúzias em casas, bancos, por todos os lados: "no Asyl" ou "não queremos cá um centro de refugiados". Muitos deles ligados às iniciais "N.S." A autarquia diz que não apagou o graffiti porque os conteúdos não são anticonstitucionais. Recentemente, uma iniciativa privada quis remover alguns deles, com a ajuda dos refugiados, mas teve de interromper o trabalho devido à forte pressão de quem passava na rua.
Quem toma o partido dos estrangeiros é ameaçado. Uma vereadora dos Verdes foi ameaçada durante meses, e divulgaram a sua morada na internet. Puseram uma bomba no carro do chefe dos Linke. Os nomes dos dois políticos constavam de uma "lista to-do" que foi colada na janela da sede dos Linke.
As pessoas que foram agora presas são acusadas de terem atirado explosivos para uma casa onde vivem, no rés-do-chão, 14 refugiados da Eritreia. A janela ainda está partida, e debaixo dela lê-se: "N.S." Os refugiados dizem que não ousam sair de casa à noite. Em compensação, recebem frequentemente visitas de jovens que os ofendem e gritam ameaças como "we will kill you". Há tempos arrombaram-lhes a porta da frente. Um dos refugiados fala das diferenças: quando chegou a Munique, no Verão passado, as pessoas acenavam-lhe com simpatia. Se em Freital uma mão se agita na sua direcção, ou é um punho fechado ou é o dedo médio esticado. Pensaram que melhoraria, mas não melhora. Na semana passada havia pessoas mascaradas na entrada da casa, que atiraram gás lacrimogéneo para os olhos de um refugiado.
A polícia andou meses a seguir o grupo que foi preso na semana passada. Os investigadores também estão a averiguar porque é que não foram evitados outros ataques, uma vez que até havia um polícia muito próximo do grupo.
Freital tem uma longa tradição de extrema-direita. O partido NPD começou aqui antes de se instalar em Dresden. O fundador do Pegida, Lutz Bachmann, vem frequentemente à cidade - foi aqui que fez a famosa fotografia em que posava como se fosse Hitler.
Porquê Freital? Os especialistas apontam algumas explicações habituais: o esvaziamento industrial da região depois da reunificação; a saída dos jovens com melhor nível de formação, especialmente as mulheres; a situação na periferia; a sensação de ter ficado pendurado; a busca de uma identidade. Mas será que isso explica tudo?
No conselho da autarquia há situações de cooperação e bom entendimento entre CDU, AfD e NPD que seriam impensáveis noutras cidades. À sugestão do NPD de proibir a entrada nos parques infantis a refugiados, um importante político do partido democrata cristão respondeu que, do ponto de vista jurídico, seria difícil impor essa medida. Um outro disse que ter os refugiados em ginásios não pode ser "a solução final". Em resposta às críticas, acabou por dizer que a expressão consta dos dicionários.
O presidente da Câmara não tem tempo para entrevistas, e manda dizer por escrito que na cidade não há qualquer problema relevante de neonazismo. E que também recomenda uma visita à cidade a turistas com pele escura.
Para quem toma partido contra a extrema-direita, estas afirmações são absurdas. Por exemplo, a empregada de mesa Steffi Brachtel, de 41 anos. Não tem partido, e até há pouco não se interessava por política. Mas um dia um amigo publicou no facebook uma piada que dizia: "Porque é que não há muçulmanos no Star Trek? Porque se passa no futuro." Ela reagiu, dizendo que não tinha graça, e recebeu inúmeros comentários insultuosos. Foi aí que se deu conta de que ou fechava a boca ou arranjava sarilhos. Criou, com mais algumas pessoas, um grupo chamado "organização para abertura e tolerância", e desde então alguns amigos, conhecidos e vizinhos afastaram-se dela. A mãe de uma colega do filho acusou-a entredentes, na paragem do autocarro: "tu és pelos do centro de refugiados".
O corte atravessa as próprias famílias. Na da Steffi, é o seu irmão mais novo. Ele acredita que a Alemanha continua sob ocupação americana, e que o mundo inteiro é dominado pelos judeus. Há muito tempo que é assim, mas dantes era possível falar com ele sobre outras coisas, era possível ouvirem música juntos. Ultimamente, com o Pegida e a crise dos refugiados, já não se pode falar com ele. "Agora estamos em lados opostos."
Em Julho participou numa sessão camarária de esclarecimento sobre o alojamento dos refugiados. Na sala, foi insultada e ameaçaram-na de que também iam deitar fogo à casa dela. Quando, no fim da sessão, perguntou ao pessoal da segurança porque é que não tinha feito nada, responderam-lhe "preferimos ter cinco como tu contra nós do que trezentos como eles."
No bar do inicio da reportagem todos a conhecem. O simpático dono diz que o grupo de voluntários é constituído por gente que se quer fazer importante. E por mulheres que estão a precisar de ser fodidas.
A Steffi Brachtel já foi seguida por um carro à noite, no caminho entre a paragem do autocarros e a sua casa. Já rebentaram a sua caixa do correio com um explosivo. Quando perguntou na polícia que riscos reais corria, responderam-lhe que se todas as pessoas fizessem essa pergunta, a polícia não teria tempo para fazer o trabalho.
Segundo ela, as acções da extrema-direita foram vistas como bagatelas durante anos. Talvez porque encará-las de frente implicasse muito trabalho e muitos riscos. Talvez porque pareça ser uma guerra perdida à partida. Talvez porque muitos estejam de acordo não com a violência, mas com os princípios que lhe estão subjacentes. O que explicaria porque é que os graffiti não são apagados.
A iniciativa de âmbito nacional "levantar a voz contra os nazis" quis dar um concerto em Freital com artistas famosos, para dar algum apoio aos voluntários e aos refugiados. A autarquia começou por recusar, afirmando que a ideia de haver neonazis em Freital é um cliché. Só mudou de atitude devido aos protestos vindos de toda a Alemanha.
A palavra "cliché" soa cínica quando se fala com um jovem refugiado do Ghana, de 18 anos, que vive na cidade. Se pára às dez da noite em frente à sua casa, não demora nem um minuto até que alguém grite, do outro lado da rua, "Scheißneger". Ele conhece bem esse e outros insultos, como Bimbo e Kanacke. Já atiraram explosivos na sua direcção, e deitaram cascas de bananas à porta da mulher alemã que o tem à sua guarda. Comenta que em Freital tratam as pessoas de pele escura abaixo de cão. "Penso que nesta cidade as pessoas têm orgulho em serem de extrema-direita", diz. Chegou há oito meses, e aprendeu rapidamente a evitar a rua central, e sobretudo os cafés. Só sai à rua quando é absolutamente necessário. Frequenta um psicólogo de uma cidade vizinha, especialista em traumas, que lhe dá alento para a vida quotidiana, e lhe diz que deve ignorar quando lhe chamam "ratazana preta". A sensação de alívio desaparece mal chega à estação de Freital e os insultos recomeçam.
Pensa em suicídio. Diz que a sua capacidade para aguentar o sofrimento não é infinita. Mas também tem esperança: talvez consiga em breve um lugar de aprendiz em Münster. Já esteve lá uma vez, e diz que se sentiu profundamente surpreendido: as pessoas trataram-no como se fosse um ser humano.
29 abril 2016
estudantes sírios
Ontem os meus filhos aproveitaram a minha ida à Filarmonia, e encheram a casa de refugiados sírios.
Quando voltei, encontrei uma dúzia de rapazes e raparigas muito sossegados a fazer um jogo e a contar histórias, com música cubana a arredondar a cena.
Comi os restos da comida deles, e deixei-os em paz. Bem sei que tenho por aí muitos leitores cuscos mortinhos por saber como foi, e como são os "refugiados sírios", e tal, mas preferi deixá-los ser o que são: amigos dos meus filhos que vieram jantar com eles.
Quando voltei, encontrei uma dúzia de rapazes e raparigas muito sossegados a fazer um jogo e a contar histórias, com música cubana a arredondar a cena.
Comi os restos da comida deles, e deixei-os em paz. Bem sei que tenho por aí muitos leitores cuscos mortinhos por saber como foi, e como são os "refugiados sírios", e tal, mas preferi deixá-los ser o que são: amigos dos meus filhos que vieram jantar com eles.
26 abril 2016
"galo ou galinha"
[Notícias frescas da enciclopédia mais engraçada do mundo]
Sabem aquela coisa de "levantar-se com as galinhas"?
Para fusos horários próximos é um truque fácil de explicar. Por exemplo, e o Vítor e eu não nos levantamos com as galinhas (ele, dinamarquesas, e eu, alemãs) (ou berlinenses, que não é a mesma coisa), o sol é que se levanta com as galinhas russas, e nos acorda antes de acordar os outros enciclopedistas, que estão em Portugal ou no Brasil.
Uiiii, os do Brasil! Só aparecem aqui à hora a que estamos a sonhar com galinha de cabidela para o almoço, e depois ficam com fama de mandriões, quando afinal a culpa é das galinhas russas que sacodem o sol para fora da cama à hora a que as galinhas brasileiras estão a sonhar com minhocas e assim.
Para fusos horários longínquos é mais complicado explicar. Como daquela vez que trabalhava em San Francisco e estava à espera de uma tradução que me fora prometida para as nove da manhã de segunda-feira na Coreia do Sul, e até sabia que horas era isso na Califórnia, só não sabia se era de domingo, segunda ou terça. Má organização das galinhas.
(Hoje fiz um risotto fantástico de espargos verdes, acompanhado com um belo branco alentejano, provavelmente nota-se um bocadinho.)
E por falar em arroz de galinha de cabidela: o neto da minha vizinha chama-lhe "arroz de chocolate".
Na casa dos meus pais havia um Livro do Pantagruel, e dentro dele uma receita de arroz de cabidela que começava assim: "vá ao galinheiro buscar uma galinha de tamanho médio". No quintal havia galinhas. Quando estava mau tempo metiam-se na cave. Isso era no tempo em que as pessoas iam do campo para a cidade sem passarem antes por um curso de integração.
Adiante.
A minha melhor história com galinhas conta-se depressa: a minha avó deixava as galinhas à solta no terreiro, e prendia as flores.
A minha segunda melhor história com galinhas contou-ma uma amiga: na casa dela todas as crianças tinham uma galinha de estimação. Em dias de fazer canja, cada irmão fugia com a sua galinha, com ela bem presa ao peito, gritando "a minha não! a minha não!"
A minha terceira melhor história é com pintainhos, promessa de galos e galinhas: fomos à feira de Barcelos, e estavam a vender pintainhos amorosos. Os meus filhos compraram alguns, e puseram-lhes nomes que eram mesmo a cara deles (Elza, Herbert Bonaparte, Fritz the emperor. Mas eles ainda eram muito novinhos, e começaram a morrer, um após outro. Convencido que o nome é que lhes era fatal, o Matthial ainda tentou rebaptizá-los. Debalde. De próxima vez temos de comprar pintainhos mais velhos, e eu, por muito bom que seja o risotto do almoço, bebo é água.
Sabem aquela coisa de "levantar-se com as galinhas"?
Para fusos horários próximos é um truque fácil de explicar. Por exemplo, e o Vítor e eu não nos levantamos com as galinhas (ele, dinamarquesas, e eu, alemãs) (ou berlinenses, que não é a mesma coisa), o sol é que se levanta com as galinhas russas, e nos acorda antes de acordar os outros enciclopedistas, que estão em Portugal ou no Brasil.
Uiiii, os do Brasil! Só aparecem aqui à hora a que estamos a sonhar com galinha de cabidela para o almoço, e depois ficam com fama de mandriões, quando afinal a culpa é das galinhas russas que sacodem o sol para fora da cama à hora a que as galinhas brasileiras estão a sonhar com minhocas e assim.
Para fusos horários longínquos é mais complicado explicar. Como daquela vez que trabalhava em San Francisco e estava à espera de uma tradução que me fora prometida para as nove da manhã de segunda-feira na Coreia do Sul, e até sabia que horas era isso na Califórnia, só não sabia se era de domingo, segunda ou terça. Má organização das galinhas.
(Hoje fiz um risotto fantástico de espargos verdes, acompanhado com um belo branco alentejano, provavelmente nota-se um bocadinho.)
E por falar em arroz de galinha de cabidela: o neto da minha vizinha chama-lhe "arroz de chocolate".
Na casa dos meus pais havia um Livro do Pantagruel, e dentro dele uma receita de arroz de cabidela que começava assim: "vá ao galinheiro buscar uma galinha de tamanho médio". No quintal havia galinhas. Quando estava mau tempo metiam-se na cave. Isso era no tempo em que as pessoas iam do campo para a cidade sem passarem antes por um curso de integração.
Adiante.
A minha melhor história com galinhas conta-se depressa: a minha avó deixava as galinhas à solta no terreiro, e prendia as flores.
A minha segunda melhor história com galinhas contou-ma uma amiga: na casa dela todas as crianças tinham uma galinha de estimação. Em dias de fazer canja, cada irmão fugia com a sua galinha, com ela bem presa ao peito, gritando "a minha não! a minha não!"
A minha terceira melhor história é com pintainhos, promessa de galos e galinhas: fomos à feira de Barcelos, e estavam a vender pintainhos amorosos. Os meus filhos compraram alguns, e puseram-lhes nomes que eram mesmo a cara deles (Elza, Herbert Bonaparte, Fritz the emperor. Mas eles ainda eram muito novinhos, e começaram a morrer, um após outro. Convencido que o nome é que lhes era fatal, o Matthial ainda tentou rebaptizá-los. Debalde. De próxima vez temos de comprar pintainhos mais velhos, e eu, por muito bom que seja o risotto do almoço, bebo é água.
mais uma causa fracturante: casas de banho unissexo
Quando parecia que já não havia mais causas fracturantes para nos fazer perder o nosso rico tempo, vem a Margarete Stokowski (no Spiegel online) falar das casas de banho públicas. Ora vejam:
(em versão sintetizada e traduzida à pressa, como de costume, com links para artigos em alemão e, na parte relativa ao risco de suicídio, em inglês)
Segundo uma nova lei, no North Carolina as pessoas são obrigadas a usar a casa de banho pública correspondente ao sexo que consta na sua certidão de nascimento. Para os transexuais, isso significa que, mesmo vivendo há anos ou décadas como mulher, se deve usar a casa de banho dos homens - e vice-versa. E aceitar sujeitar-se ao sentimento de desconforto, aos insultos, às agressões físicas ou à expulsão desse local, que é o que costuma acontecer nesses casos. A alternativa é ir aguentando até encontrar uma casa de banho privada.
As casas de banho públicas são o exemplo preferido para mostrar como tudo fica incrivelmente complicado quando se trata de acomodar os interesses de todas as minorias trans-, inter- ou qualquer coisa com gender queer: essa gente é tão complicada, não é? Até nas casas de banho nos complicam a vida.
No entanto, há muito que frequentamos casas de banho públicas unissexo nos aviões e nos comboios, e nem reparamos.
Podia ser tão fácil: casas de banho para todos. Pode-se e deve-se discutir sobre muitas coisas, mas não devia ser preciso discutir sobre a necessidade de escolher tranquilamente a casa de banho que se quer usar.
E nem sequer é preciso fazer obras. Basta mudar as placas, para "em pé / sentado" ou "com urinol / sem urinol".
Mal se diz "casa de banho unissexo" ou "para todos os géneros" aparece logo um Martenstein a sugerir que as pessoas mintam. "O melhor que os transexuais e intersexuais alemães podem fazer pelo seu país resume-se na seguinte frase: a outra casa de banho está avariada." Que a um jornalista premiado não ocorra que é muito fácil ir verificar se essa afirmação é verdadeira, e que as mentiras podem ser punidas com tareias, ilustra bem a ignorância das pessoas nestas questões de género.
A propósito de músicos famosos que cancelaram os seus concertos nesse Estado, como protesto contra esta lei, alguém comentava no facebook do Spiegel: "talvez as pessoas estejam fartas de ser OBRIGADAS a seguir todas as modas idiotas? Tanto o politicamente correcto como estas manias de género surgiram nos EUA." Como este facebook, aliás. Outro escrevia: "Desculpem, mas afinal para que é preciso uma lei? Com pénis = casa de banho dos homens, sem pénis = casa de banho das mulheres."
A mensagem é a mesma - seja do Martenstein, ou dos comentadores: "se eu não tenho problemas, porque é que querem mudar?"
Como é possível pensar assim? Será que estas pessoas querem tirar das prateleiras dos supermercados os produtos que elas próprias não consomem? Querem tirar as legendas aos filmes na sua língua, porque elas entendem tudo? Querem que se poupe o dinheiro da iluminação pública nas noites em que não saem?
Em qualquer embalagem de Snickers vem escrito em grandes letras que contém amendoins. Quantas pessoas são alérgicas a amendoins? Diz-se que 0,5% a 1% das crianças alemãs. Se não nos incomoda marcar as embalagens de chocolate em função dos interesses de minorias, o que nos impede de fazer o mesmo com as casas de banho?
Será que as pessoas que se irritam com as casas de banho unissexo sabem que as pessoas transexuais são alvo muito mais frequente de ataques, e têm um risco maior de depressão e suicídio? E não é por predeterminação natural. Quanto maior o número de experiências de rejeição no seu contexto social, maior o risco de suicídio.
Sinceramente: não entendo como é que as pessoas que sabem isto, e continuam a afirmar que exigir casas de banho públicas unissexo é uma perda de tempo e uma patetice, conseguem ver-se ao espelho quando estão a lavar as mãos depois de terem usado com toda a tranquilidade a casa de banho pública.
[Nota 1: A última frase resolveu-me uma dúvida existencial antiga: porque é que há pessoas que não lavam as mãos quando usam a casa de banho? Agora sei: por algum motivo grave, não têm coragem de se ver ao espelho...]
[Nota 2: O artigo do Martenstein diz que em Kreuzberg, Berlim, vão pôr caixas à volta dos urinóis, para impedir que os outros utentes vejam o que ali se está a mostrar. O Martenstein fala nos custos desta medida, e que em vez de exigir essa despesa aos cofres do Estado era muito mais patriótico o transexual ir à casa de banho feminina desculpando-se com uma pequena mentira. Ora, essa das caixas interessa-me muito. Já ouvi muitas vezes rapazes, ou até homens mais velhos, queixarem-se de de se sentirem incomodados pelo interesse que o vizinho de urinol demonstra pelo que ali se mostra. Ora, enquanto não conseguirmos educar todo o povo para respeitar a intimidade alheia mesmo quando é exposta, talvez fosse boa ideia pensar nessas caixinhas para todos...] [Esta última sugestão é só para provocar, claro.]
(em versão sintetizada e traduzida à pressa, como de costume, com links para artigos em alemão e, na parte relativa ao risco de suicídio, em inglês)
Segundo uma nova lei, no North Carolina as pessoas são obrigadas a usar a casa de banho pública correspondente ao sexo que consta na sua certidão de nascimento. Para os transexuais, isso significa que, mesmo vivendo há anos ou décadas como mulher, se deve usar a casa de banho dos homens - e vice-versa. E aceitar sujeitar-se ao sentimento de desconforto, aos insultos, às agressões físicas ou à expulsão desse local, que é o que costuma acontecer nesses casos. A alternativa é ir aguentando até encontrar uma casa de banho privada.
As casas de banho públicas são o exemplo preferido para mostrar como tudo fica incrivelmente complicado quando se trata de acomodar os interesses de todas as minorias trans-, inter- ou qualquer coisa com gender queer: essa gente é tão complicada, não é? Até nas casas de banho nos complicam a vida.
No entanto, há muito que frequentamos casas de banho públicas unissexo nos aviões e nos comboios, e nem reparamos.
Podia ser tão fácil: casas de banho para todos. Pode-se e deve-se discutir sobre muitas coisas, mas não devia ser preciso discutir sobre a necessidade de escolher tranquilamente a casa de banho que se quer usar.
E nem sequer é preciso fazer obras. Basta mudar as placas, para "em pé / sentado" ou "com urinol / sem urinol".
Mal se diz "casa de banho unissexo" ou "para todos os géneros" aparece logo um Martenstein a sugerir que as pessoas mintam. "O melhor que os transexuais e intersexuais alemães podem fazer pelo seu país resume-se na seguinte frase: a outra casa de banho está avariada." Que a um jornalista premiado não ocorra que é muito fácil ir verificar se essa afirmação é verdadeira, e que as mentiras podem ser punidas com tareias, ilustra bem a ignorância das pessoas nestas questões de género.
A propósito de músicos famosos que cancelaram os seus concertos nesse Estado, como protesto contra esta lei, alguém comentava no facebook do Spiegel: "talvez as pessoas estejam fartas de ser OBRIGADAS a seguir todas as modas idiotas? Tanto o politicamente correcto como estas manias de género surgiram nos EUA." Como este facebook, aliás. Outro escrevia: "Desculpem, mas afinal para que é preciso uma lei? Com pénis = casa de banho dos homens, sem pénis = casa de banho das mulheres."
A mensagem é a mesma - seja do Martenstein, ou dos comentadores: "se eu não tenho problemas, porque é que querem mudar?"
Como é possível pensar assim? Será que estas pessoas querem tirar das prateleiras dos supermercados os produtos que elas próprias não consomem? Querem tirar as legendas aos filmes na sua língua, porque elas entendem tudo? Querem que se poupe o dinheiro da iluminação pública nas noites em que não saem?
Em qualquer embalagem de Snickers vem escrito em grandes letras que contém amendoins. Quantas pessoas são alérgicas a amendoins? Diz-se que 0,5% a 1% das crianças alemãs. Se não nos incomoda marcar as embalagens de chocolate em função dos interesses de minorias, o que nos impede de fazer o mesmo com as casas de banho?
Será que as pessoas que se irritam com as casas de banho unissexo sabem que as pessoas transexuais são alvo muito mais frequente de ataques, e têm um risco maior de depressão e suicídio? E não é por predeterminação natural. Quanto maior o número de experiências de rejeição no seu contexto social, maior o risco de suicídio.
Sinceramente: não entendo como é que as pessoas que sabem isto, e continuam a afirmar que exigir casas de banho públicas unissexo é uma perda de tempo e uma patetice, conseguem ver-se ao espelho quando estão a lavar as mãos depois de terem usado com toda a tranquilidade a casa de banho pública.
[Nota 1: A última frase resolveu-me uma dúvida existencial antiga: porque é que há pessoas que não lavam as mãos quando usam a casa de banho? Agora sei: por algum motivo grave, não têm coragem de se ver ao espelho...]
[Nota 2: O artigo do Martenstein diz que em Kreuzberg, Berlim, vão pôr caixas à volta dos urinóis, para impedir que os outros utentes vejam o que ali se está a mostrar. O Martenstein fala nos custos desta medida, e que em vez de exigir essa despesa aos cofres do Estado era muito mais patriótico o transexual ir à casa de banho feminina desculpando-se com uma pequena mentira. Ora, essa das caixas interessa-me muito. Já ouvi muitas vezes rapazes, ou até homens mais velhos, queixarem-se de de se sentirem incomodados pelo interesse que o vizinho de urinol demonstra pelo que ali se mostra. Ora, enquanto não conseguirmos educar todo o povo para respeitar a intimidade alheia mesmo quando é exposta, talvez fosse boa ideia pensar nessas caixinhas para todos...] [Esta última sugestão é só para provocar, claro.]
25 abril 2016
o Colégio Militar e a sua cultura de inclusão
Se eu soubesse quem manda no Colégio Militar, escrevia a essa pessoa a sugerir que proibisse toda a gente ligada à instituição de falar sobre ela. Ultimamente, de cada vez que alguém abre a boca, parece que está a fazer crash testing com a imagem da escola. Amolgadelas em cima de amolgadelas.
(Bem sei que isto de impor mordaças vai um bocadinho contra a Constituição, mas uma das amolgadelas recentes foi justamente sugerirem a possibilidade de dar um jeito quando a Constituição não dá jeito, e portanto...)
Amolgadelas:
- Aquela mãe entrevistada no Observador que teme que, "numa escola em que o mais novo deve respeito ao mais velho", o mais velho possa violar o mais novo. Se isto não é uma facada nas costas do Colégio Militar! A frase dá a ideia de se tratar de uma instituição na qual os adultos investem os alunos mais velhos de poderes arbitrários sem - aparentemente - haver garantia da aptidão para o seu exercício.
Concretamente, no que diz respeito ao medo da violação: se, no nosso tempo, qualquer miúdo tem consciência da sua dignidade e da inviolabilidade do seu corpo, que espécie de "respeito pelos mais velhos" vigora no Colégio Militar, que profunda alienação dos direitos de personalidade acontece ali, que leva uma mãe a temer que o seu filho não faria imediatamente queixa de um mais velho ao menor sinal de este querer abusar dele? Mais: se essa imposição de um respeito total realmente existe e é desejada pela instituição, como é que se garante que não há abuso? É que é muito fácil identificar um comportamento sexual invasivo e predador, mas o mesmo não se pode dizer da prepotência e do abuso sádico do poder. Como é que o Colégio Militar protege os seus alunos mais frágeis de algum eventual desequilíbrio psicológico e de carácter de um aluno mais velho?
Mais valia essa mãe não dizer nada, para evitar dar tão má imagem da escola.
- No mesmo artigo do Observador, exprimia-se uma outra preocupação, a de "ter um filho violado por causa da Constituição", que dá a quem está de fora a ideia de que dentro do Colégio Militar (1) se entende que a lei fundamental do Estado português pode ser suspensa quando o medo fala mais alto e (2) apesar de ser uma escola que se orgulha de treinar os alunos para a obediência e a disciplina, não consegue afinal impedir que nas camaratas os alunos façam o que muito bem lhes apetece (à revelia das regras claramente expressas, tais como a proibição de namoros e, por maioria de razão, de contactos sexuais). Bem sei que a liberdade de expressão, e isto e aquilo, mas peçam a essa pessoa que se cale, porque a imagem que transmite é a de uma escola sem rei nem roque.
- O subdirector da escola contou, numa entrevista ao Observador, que os casos de roubo e de drogas são tratados pela direcção (transferência imediata para outra escola), enquanto os casos de homossexualidade acabam por ser resolvidos, aparentemente, com uma vaga de bullying tolerada que envolve todos os alunos: “Passados 30 segundos, toda a gente sabia. O colégio parece um Big Brother. Tudo se sabe. A informação passa. Agora repare o que é um aluno numa situação crítica e complicada, e que deveria ter alguma salvaguarda de identidade… Passado uma hora, 600 sabem e 600 estão a comentar. É complicado“. O aluno acabou por sair da escola.
Uma pessoa bem tenta, mas é difícil não imaginar um cenário no qual, sendo impossível expulsar o aluno por homossexualidade, se permite que os outros alunos lhe dificultem de tal maneira a vida que ele acaba por sair. E nem sei o que me assusta mais: se a imagem de um grupo de alunos tacitamente autorizado a comportar-se como mob contra um colega que se suspeita ser homossexual, se a direcção de uma escola que parece demitir-se de resolver um problema com a sabedoria e a autoridade de pessoas adultas. Ora, eu não percebo nada de escolas militares, mas percebo bastante de escolas civis, onde já vi directores e professores a agir em defesa de um aluno e dos princípios indiscutíveis da nação, interpondo-se entre o aluno e o mob e cortando cerce o fenómeno de bullying. Entre outras medidas, vi alunos de seis anos a escrever cem vezes a mesma frase simples que descrevia uma norma fundamental da escola, e vi alunos finalistas a receber um castigo colectivo - uns pelo seu comportamento aviltante e os outros por terem visto e não terem tomado claramente partido contra o que estava a acontecer.
Felizmente, e ao contrário do que aquelas pessoas andaram a dizer, no Colégio Militar vigoram outras regras. Segundo li no DN, um porta-voz do Exército assegurou que a direção do Colégio Militar "não promove nem compactua" com práticas discriminatórias e atua pedagogicamente junto da comunidade escolar visando preservar o bem-estar dos alunos e criar uma "cultura de inclusão".
Compete à direção do Colégio Militar "garantir as melhores condições a todos os alunos, preservando todo e qualquer aluno que tenha sido sinalizado como alvo de discriminação, agindo de forma educativa junto da comunidade escolar, de forma a ser criada uma cultura de inclusão e não de exclusão".
"A postura da direção do Colégio Militar (CM) é de não promover ou compactuar com comportamentos ou práticas discriminatórias, seja qual for a sua natureza, e atua pedagogicamente, com o intuito de preservar o bem-estar dos seus alunos ou alunas, junto do encarregado de educação e da comunidade escolar", declarou o porta-voz do Exército, tenente-coronel Góis Pires, em resposta a questões da Agência Lusa. Colocados perante uma situação que "configure um comportamento discriminatório seja de que ordem for", a direção do CM "envolve, compreensivelmente, os encarregados de educação, aos quais caberá tomada de decisão" sobre a melhor solução para o aluno ou aluna.
Isto é que é falar! Se bem entendi, a escola assume uma posição muito clara de inclusão, e fala com os encarregados de educação dos alunos com práticas discriminatórias, para os envolver na resolução desse problema comportamental.
"Mas então castigam as vítimas e protegem os homossexuais?!", perguntarão alguns. À primeira vista, a reacção até pode fazer algum sentido. Em defesa das linhas de orientação que o Colégio Militar afirma com tanta clareza, vejamos de perto os argumentos apresentados a favor da exclusão dos alunos homossexuais:
1. "Queremos os nossos filhos em segurança"
Penso num episódio da minha própria adolescência: no recreio da escola, uma colega acusou-me de ser lésbica, por gostar de andar de braço dado com a minha melhor amiga. Foi desagradável, mas ninguém lhe deu ouvidos, nem houve cochichos, nem me chatearam. O que teria sido a minha vida, ou aquela fase da minha vida, se na escola se tivesse formado um movimento generalizado de rejeição por suposta homossexualidade?
Alguém quer o seu filho numa escola onde uma insinuação (tenha ou não um fundo de verdade) resulta numa perseguição por parte de todos os alunos da escola? Alguém tem dúvidas de que o risco de o seu filho ser vítima de uma brutalidade destas é muitíssimo maior que o risco de ser violado numa camarata? (Já agora: alguém deseja para o seu filho que, ao sair do armário, se torne vítima de bullying por parte de 600 colegas?)
2. "Eles andam nus nas camaratas e nas instalações sanitárias, o que se pode prestar a situações muito desagradáveis de voyeurismo e de proximidade física não desejada."
Compreende-se inteiramente. E pergunta-se: num cenário em que pura e simplesmente não se pode expulsar o aluno por suspeita de homossexualidade, nem se permite que ele seja rejeitado pelos seus pares, o que se pode fazer então para evitar situações dúbias? A solução mais simples é ter vestiários e sanitários individuais para os alunos que querem ocultar a sua nudez. A solução mais trabalhosa, mas também mais profícua, é um trabalho de educação para o respeito mútuo. Sei que é possível ensinar os alunos a conversar de forma aberta e justa sobre o que os incomoda (no infantário dos meus filhos havia crianças de 3 anos que já o conseguiam fazer - quem quiser saber mais, pode procurar "Ursula Thrush" e "peace table") e sei, por experiência própria como frequentadora de praias de nudistas e de saunas mistas que, se quiserem, as pessoas sabem estar num contexto de nudez sem usarem um olhar de devassa.
3. "Eles vão violar os nossos filhos". Este argumento é mais difícil de compreender. Por algum motivo que não entendo, há pessoas que acreditam que os homossexuais, todos os homossexuais, são abusadores. Espero que em algum momento abram os olhos para a realidade: homossexualidade e abuso não são sinónimos, e, por outro lado, há homens casados e com filhos que gostam de ter sexo com rapazinhos. Não há qualquer certeza nem sobre quem pode ser um abusador nem sobre quem está acima de qualquer dúvida, pelo que manter longe dessa escola os alunos homossexuais não resolve o problema da segurança - além de ser anticonstitucional, e uma injustiça e uma ofensa inaceitáveis. Mais vale preparar os nossos filhos para a eventualidade de serem vítimas de abuso, e para se saberem defender.
4. "Eles vão levar os nossos filhos para maus caminhos". Ouço muito este argumento, e não consigo entender o medo do efeito "maçã podre que vai estragar os outros".
Vejamos: eu podia ter a Ellen DeGeneres super apaixonada por mim a dormir na cama ao lado, e nem por isso sentiria a mínima vontade de, digamos, dar o corpo ao manifesto. Gostaria muito de conversar com ela, mas não sentiria desejo físico e não lhe alimentaria falsas esperanças. Por isso, não compreendo esse medo do "contágio".
O que leva as pessoas a temer que os seus filhos heterossexuais se possam sentir atraídos pelo caminho da homossexualidade? Que imagem têm da heterossexualidade - tão penosa, tão pouco convicta - que qualquer promessa de algo diferente a pode ameaçar?
(Bem sei que isto de impor mordaças vai um bocadinho contra a Constituição, mas uma das amolgadelas recentes foi justamente sugerirem a possibilidade de dar um jeito quando a Constituição não dá jeito, e portanto...)
Amolgadelas:
- Aquela mãe entrevistada no Observador que teme que, "numa escola em que o mais novo deve respeito ao mais velho", o mais velho possa violar o mais novo. Se isto não é uma facada nas costas do Colégio Militar! A frase dá a ideia de se tratar de uma instituição na qual os adultos investem os alunos mais velhos de poderes arbitrários sem - aparentemente - haver garantia da aptidão para o seu exercício.
Concretamente, no que diz respeito ao medo da violação: se, no nosso tempo, qualquer miúdo tem consciência da sua dignidade e da inviolabilidade do seu corpo, que espécie de "respeito pelos mais velhos" vigora no Colégio Militar, que profunda alienação dos direitos de personalidade acontece ali, que leva uma mãe a temer que o seu filho não faria imediatamente queixa de um mais velho ao menor sinal de este querer abusar dele? Mais: se essa imposição de um respeito total realmente existe e é desejada pela instituição, como é que se garante que não há abuso? É que é muito fácil identificar um comportamento sexual invasivo e predador, mas o mesmo não se pode dizer da prepotência e do abuso sádico do poder. Como é que o Colégio Militar protege os seus alunos mais frágeis de algum eventual desequilíbrio psicológico e de carácter de um aluno mais velho?
Mais valia essa mãe não dizer nada, para evitar dar tão má imagem da escola.
- No mesmo artigo do Observador, exprimia-se uma outra preocupação, a de "ter um filho violado por causa da Constituição", que dá a quem está de fora a ideia de que dentro do Colégio Militar (1) se entende que a lei fundamental do Estado português pode ser suspensa quando o medo fala mais alto e (2) apesar de ser uma escola que se orgulha de treinar os alunos para a obediência e a disciplina, não consegue afinal impedir que nas camaratas os alunos façam o que muito bem lhes apetece (à revelia das regras claramente expressas, tais como a proibição de namoros e, por maioria de razão, de contactos sexuais). Bem sei que a liberdade de expressão, e isto e aquilo, mas peçam a essa pessoa que se cale, porque a imagem que transmite é a de uma escola sem rei nem roque.
- O subdirector da escola contou, numa entrevista ao Observador, que os casos de roubo e de drogas são tratados pela direcção (transferência imediata para outra escola), enquanto os casos de homossexualidade acabam por ser resolvidos, aparentemente, com uma vaga de bullying tolerada que envolve todos os alunos: “Passados 30 segundos, toda a gente sabia. O colégio parece um Big Brother. Tudo se sabe. A informação passa. Agora repare o que é um aluno numa situação crítica e complicada, e que deveria ter alguma salvaguarda de identidade… Passado uma hora, 600 sabem e 600 estão a comentar. É complicado“. O aluno acabou por sair da escola.
Uma pessoa bem tenta, mas é difícil não imaginar um cenário no qual, sendo impossível expulsar o aluno por homossexualidade, se permite que os outros alunos lhe dificultem de tal maneira a vida que ele acaba por sair. E nem sei o que me assusta mais: se a imagem de um grupo de alunos tacitamente autorizado a comportar-se como mob contra um colega que se suspeita ser homossexual, se a direcção de uma escola que parece demitir-se de resolver um problema com a sabedoria e a autoridade de pessoas adultas. Ora, eu não percebo nada de escolas militares, mas percebo bastante de escolas civis, onde já vi directores e professores a agir em defesa de um aluno e dos princípios indiscutíveis da nação, interpondo-se entre o aluno e o mob e cortando cerce o fenómeno de bullying. Entre outras medidas, vi alunos de seis anos a escrever cem vezes a mesma frase simples que descrevia uma norma fundamental da escola, e vi alunos finalistas a receber um castigo colectivo - uns pelo seu comportamento aviltante e os outros por terem visto e não terem tomado claramente partido contra o que estava a acontecer.
Felizmente, e ao contrário do que aquelas pessoas andaram a dizer, no Colégio Militar vigoram outras regras. Segundo li no DN, um porta-voz do Exército assegurou que a direção do Colégio Militar "não promove nem compactua" com práticas discriminatórias e atua pedagogicamente junto da comunidade escolar visando preservar o bem-estar dos alunos e criar uma "cultura de inclusão".
Compete à direção do Colégio Militar "garantir as melhores condições a todos os alunos, preservando todo e qualquer aluno que tenha sido sinalizado como alvo de discriminação, agindo de forma educativa junto da comunidade escolar, de forma a ser criada uma cultura de inclusão e não de exclusão".
"A postura da direção do Colégio Militar (CM) é de não promover ou compactuar com comportamentos ou práticas discriminatórias, seja qual for a sua natureza, e atua pedagogicamente, com o intuito de preservar o bem-estar dos seus alunos ou alunas, junto do encarregado de educação e da comunidade escolar", declarou o porta-voz do Exército, tenente-coronel Góis Pires, em resposta a questões da Agência Lusa. Colocados perante uma situação que "configure um comportamento discriminatório seja de que ordem for", a direção do CM "envolve, compreensivelmente, os encarregados de educação, aos quais caberá tomada de decisão" sobre a melhor solução para o aluno ou aluna.
Isto é que é falar! Se bem entendi, a escola assume uma posição muito clara de inclusão, e fala com os encarregados de educação dos alunos com práticas discriminatórias, para os envolver na resolução desse problema comportamental.
"Mas então castigam as vítimas e protegem os homossexuais?!", perguntarão alguns. À primeira vista, a reacção até pode fazer algum sentido. Em defesa das linhas de orientação que o Colégio Militar afirma com tanta clareza, vejamos de perto os argumentos apresentados a favor da exclusão dos alunos homossexuais:
1. "Queremos os nossos filhos em segurança"
Penso num episódio da minha própria adolescência: no recreio da escola, uma colega acusou-me de ser lésbica, por gostar de andar de braço dado com a minha melhor amiga. Foi desagradável, mas ninguém lhe deu ouvidos, nem houve cochichos, nem me chatearam. O que teria sido a minha vida, ou aquela fase da minha vida, se na escola se tivesse formado um movimento generalizado de rejeição por suposta homossexualidade?
Alguém quer o seu filho numa escola onde uma insinuação (tenha ou não um fundo de verdade) resulta numa perseguição por parte de todos os alunos da escola? Alguém tem dúvidas de que o risco de o seu filho ser vítima de uma brutalidade destas é muitíssimo maior que o risco de ser violado numa camarata? (Já agora: alguém deseja para o seu filho que, ao sair do armário, se torne vítima de bullying por parte de 600 colegas?)
2. "Eles andam nus nas camaratas e nas instalações sanitárias, o que se pode prestar a situações muito desagradáveis de voyeurismo e de proximidade física não desejada."
Compreende-se inteiramente. E pergunta-se: num cenário em que pura e simplesmente não se pode expulsar o aluno por suspeita de homossexualidade, nem se permite que ele seja rejeitado pelos seus pares, o que se pode fazer então para evitar situações dúbias? A solução mais simples é ter vestiários e sanitários individuais para os alunos que querem ocultar a sua nudez. A solução mais trabalhosa, mas também mais profícua, é um trabalho de educação para o respeito mútuo. Sei que é possível ensinar os alunos a conversar de forma aberta e justa sobre o que os incomoda (no infantário dos meus filhos havia crianças de 3 anos que já o conseguiam fazer - quem quiser saber mais, pode procurar "Ursula Thrush" e "peace table") e sei, por experiência própria como frequentadora de praias de nudistas e de saunas mistas que, se quiserem, as pessoas sabem estar num contexto de nudez sem usarem um olhar de devassa.
3. "Eles vão violar os nossos filhos". Este argumento é mais difícil de compreender. Por algum motivo que não entendo, há pessoas que acreditam que os homossexuais, todos os homossexuais, são abusadores. Espero que em algum momento abram os olhos para a realidade: homossexualidade e abuso não são sinónimos, e, por outro lado, há homens casados e com filhos que gostam de ter sexo com rapazinhos. Não há qualquer certeza nem sobre quem pode ser um abusador nem sobre quem está acima de qualquer dúvida, pelo que manter longe dessa escola os alunos homossexuais não resolve o problema da segurança - além de ser anticonstitucional, e uma injustiça e uma ofensa inaceitáveis. Mais vale preparar os nossos filhos para a eventualidade de serem vítimas de abuso, e para se saberem defender.
4. "Eles vão levar os nossos filhos para maus caminhos". Ouço muito este argumento, e não consigo entender o medo do efeito "maçã podre que vai estragar os outros".
Vejamos: eu podia ter a Ellen DeGeneres super apaixonada por mim a dormir na cama ao lado, e nem por isso sentiria a mínima vontade de, digamos, dar o corpo ao manifesto. Gostaria muito de conversar com ela, mas não sentiria desejo físico e não lhe alimentaria falsas esperanças. Por isso, não compreendo esse medo do "contágio".
O que leva as pessoas a temer que os seus filhos heterossexuais se possam sentir atraídos pelo caminho da homossexualidade? Que imagem têm da heterossexualidade - tão penosa, tão pouco convicta - que qualquer promessa de algo diferente a pode ameaçar?
"festa"
Hoje, na nossa enciclopédia, é dia de F de Festa.
Escrevi um apontamento (a seguir) que suscitou uma magnífica resposta da Guiomar Belo Marques. Já ouvi todo o programa, sentindo uma pena cheia de retroactivos por não ter estado no Coliseu nesse dia. Mas tinha 10 anos, e morava no Porto.
O meu apontamento:
"Festa" é uma bela palavra para este dia. Melhor seria ainda se fosse no 1º de Maio.
Ainda ontem ouvi alguém dizer, no filme "48" da Susana Sousa Dias: "O 25 de abril começou no 1º de Maio". Nesse dia, no Porto, assisti à maior festa da minha vida: um povo inteiro unido em abraços, sorrisos e lágrimas de alegria, já sem medo e ainda sem divisões. Muitos anos mais tarde, estava no sul da Alemanha no primeiro 3 de Outubro, quando se assinou o tratado da reunificação. Saí para o centro da cidade antecipando o segundo 1 º de Maio da minha vida, os alemães todos unidos numa imensa alegria comum e eu entre eles, a reviver o meu passado num presente feliz - e nada. O pessoal aproveitou o feriado para ir tratar da sua vidinha.
Deixem cá que vos diga: a comissão de festas em Portugal trabalha melhor. Muito melhor!
A resposta da Guiomar (para os assinantes do Público: podem consultar no arquivo do jornal um texto de página inteira sobre este espectáculo, na edição de 29 de Março de 2004):
Antes de mais, um Viva à Festa que é, dentro de nós, o dia de hoje.
A Helena Araújo diz, no seu post, que o “25 de Abril começou no 1º de Maio” e em parte tem razão, mas, de certo modo, ele começou foi a 29 de Março de 1974, quando se realizou no Coliseu dos Recreios o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa. Não por ter tido qualquer influência na data em si ou na operacionalidade dos Capitães de Abril, que já tinham tudo mais do que preparado, mas porque dele saiu a canção do Zeca que ficaria para a história como o hino do 25 de Abril.
Estive lá e jamais esquecerei aquela noite em que ninguém teve medo. Um momento de resistência e luta em relação ao qual a pide nada pôde fazer ( http://ruadojardim7.blogspot.de/2014/04/i-encontro-da-cancao-portuguesa.html).
Lá fora, eram dezenas de carrinhas da polícia de choque a circundar todo o perímetro do Coliseu, enquanto lá dentro os pides tentavam infestar a sala, sem sucesso. Atrás do palco, todos os cantores tiveram de soletrar uma a uma as letras que iam cantar. A pide ia-as proibindo na íntegra ou cortava versos. No palco, cada um ia explicando de formas indirectas que tinha esquecido ou perdido versos e o público cantava-os. Só o Zeca ficou sem soluções. O mais esperado por todos nós, o pai da canção de protesto em Portugal e o mais terrivelmente perseguido, viu uma a uma serem-lhe proibidas todas as suas músicas. Por fim, avançou com duas, que aos pides pareceram inócuas: Grândola e Milho Verde. Foi assim que Grândola, cantado duas vezes pela sala apinhada e de pé, e por todos os músicos no palco, determinou a escolha dos Capitães de Abril. Se não tivesse havido este concerto, a senha teria sido outra.
Ontem, encontrei, por acaso, o registo de um programa que os meus amigos António Macedo e Viriato Teles fizeram há dois anos para a rádio sobre este espectáculo. Desconhecia-o, porque não estava cá na altura, e foi com surpresa que revivi aquele inesquecível dia 29 de Março de 1974. Nem sabia, sequer, que aquilo tinha sido gravado. Foi emocionante ouvi-lo. Fica aqui, para o ouvirem se quiserem, hoje ou noutro dia qualquer, porque vale a pena.
Bom 25 de Abril para todos!
Escrevi um apontamento (a seguir) que suscitou uma magnífica resposta da Guiomar Belo Marques. Já ouvi todo o programa, sentindo uma pena cheia de retroactivos por não ter estado no Coliseu nesse dia. Mas tinha 10 anos, e morava no Porto.
O meu apontamento:
"Festa" é uma bela palavra para este dia. Melhor seria ainda se fosse no 1º de Maio.
Ainda ontem ouvi alguém dizer, no filme "48" da Susana Sousa Dias: "O 25 de abril começou no 1º de Maio". Nesse dia, no Porto, assisti à maior festa da minha vida: um povo inteiro unido em abraços, sorrisos e lágrimas de alegria, já sem medo e ainda sem divisões. Muitos anos mais tarde, estava no sul da Alemanha no primeiro 3 de Outubro, quando se assinou o tratado da reunificação. Saí para o centro da cidade antecipando o segundo 1 º de Maio da minha vida, os alemães todos unidos numa imensa alegria comum e eu entre eles, a reviver o meu passado num presente feliz - e nada. O pessoal aproveitou o feriado para ir tratar da sua vidinha.
Deixem cá que vos diga: a comissão de festas em Portugal trabalha melhor. Muito melhor!
A resposta da Guiomar (para os assinantes do Público: podem consultar no arquivo do jornal um texto de página inteira sobre este espectáculo, na edição de 29 de Março de 2004):
Antes de mais, um Viva à Festa que é, dentro de nós, o dia de hoje.
A Helena Araújo diz, no seu post, que o “25 de Abril começou no 1º de Maio” e em parte tem razão, mas, de certo modo, ele começou foi a 29 de Março de 1974, quando se realizou no Coliseu dos Recreios o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa. Não por ter tido qualquer influência na data em si ou na operacionalidade dos Capitães de Abril, que já tinham tudo mais do que preparado, mas porque dele saiu a canção do Zeca que ficaria para a história como o hino do 25 de Abril.
Estive lá e jamais esquecerei aquela noite em que ninguém teve medo. Um momento de resistência e luta em relação ao qual a pide nada pôde fazer ( http://ruadojardim7.blogspot.de/2014/04/i-encontro-da-cancao-portuguesa.html).
Lá fora, eram dezenas de carrinhas da polícia de choque a circundar todo o perímetro do Coliseu, enquanto lá dentro os pides tentavam infestar a sala, sem sucesso. Atrás do palco, todos os cantores tiveram de soletrar uma a uma as letras que iam cantar. A pide ia-as proibindo na íntegra ou cortava versos. No palco, cada um ia explicando de formas indirectas que tinha esquecido ou perdido versos e o público cantava-os. Só o Zeca ficou sem soluções. O mais esperado por todos nós, o pai da canção de protesto em Portugal e o mais terrivelmente perseguido, viu uma a uma serem-lhe proibidas todas as suas músicas. Por fim, avançou com duas, que aos pides pareceram inócuas: Grândola e Milho Verde. Foi assim que Grândola, cantado duas vezes pela sala apinhada e de pé, e por todos os músicos no palco, determinou a escolha dos Capitães de Abril. Se não tivesse havido este concerto, a senha teria sido outra.
Ontem, encontrei, por acaso, o registo de um programa que os meus amigos António Macedo e Viriato Teles fizeram há dois anos para a rádio sobre este espectáculo. Desconhecia-o, porque não estava cá na altura, e foi com surpresa que revivi aquele inesquecível dia 29 de Março de 1974. Nem sabia, sequer, que aquilo tinha sido gravado. Foi emocionante ouvi-lo. Fica aqui, para o ouvirem se quiserem, hoje ou noutro dia qualquer, porque vale a pena.
Bom 25 de Abril para todos!
madrugada incompleta
Dia de festa: Abril é o nosso mês maior.
Marca o início de um caminho, do tanto caminho que ainda temos para andar.
Que não nos faltem a força, a alegria e o sentido.
Nas palavras da Inês Cardoso:
Celebrar Abril é recordar que a liberdade é uma conquista permanente. Uma inquietação que não nos larga. Não uma data, uma cor política ou uma história. Mas uma responsabilidade tremenda que a todos, a cada um, nos foi aberta. E nos é diariamente entregue.
Marca o início de um caminho, do tanto caminho que ainda temos para andar.
Que não nos faltem a força, a alegria e o sentido.
Nas palavras da Inês Cardoso:
Celebrar Abril é recordar que a liberdade é uma conquista permanente. Uma inquietação que não nos larga. Não uma data, uma cor política ou uma história. Mas uma responsabilidade tremenda que a todos, a cada um, nos foi aberta. E nos é diariamente entregue.
20 abril 2016
lançamento do livro "Domadora de Camaleões" em Berlim
À atenção de quem mora em Berlim, e vou explicar em japonês, a ver se nos entendemos:
quem quiser ver uma demonstração da minha maior especialidade - fazer harakiri em público - apareça amanhã na apresentação do livro da Helena Ferro de Gouveia. Ela convidou-me para ser a oradora, e eu aceitei. Com o sentido de dever de um kamikaze. Cá vou eu de cabeça, aimêdês.
(Como é que se diz "alea jacta est" em japonês? só me ocorre "kampai", mas estou em crer que não é bem a mesma coisa)
Enquanto me preparo para o grande dia, gasto o tempo sem critério. Primeiro, escondo os chocolates de mim própria. Depois, vou à procura deles. Finalmente encontro um, e quando estou prestes a comê-lo lembro-me que amanhã vou apresentar um livro e convinha-me perder 10 kg. Escondo os chocolates outra vez. Depois ocorre-me que não precisam de ser 10 kg, 8 já fica mais que bem. Vou procurar de novo os chocolates. E assim vai a vida.
(É amanhã, 21 de Abril, às 17:30, no Espaço Cultural do Camões I.P., Zimmerstr. 55)
16 abril 2016
sábado. maravilha.
Sábado. Maravilha.
15 abril 2016
"Para os meus filhos", Konstantin Wecker
Para uma amiga que gostou muito do que referi da canção do Konstantin Wecker para os seus filhos, aqui deixo uma tradução - rapidíssima! - da letra (mas não da poesia).
Em breve vocês estarão crescidos e sairão de casa,
a infância passou muito depressa.
Para os pais não se acaba tudo:
ainda têm outros interesses.
Embora tivesse gostado muito
de reter um ou outro momento,
é impossível moldar à nossa vontade
a volatilidade do tempo.
Que vos posso dar para esse caminho
que começam a fazer sozinhos?
A esperança de que o meu amor acompanhe
cada um dos vossos passos.
Nunca liguei muito à moral.
Quando há bem numa criança, quando há mal?
As crianças são inocentes, não as atormentem
com as vossas tretas de moral.
Vocês são um milagre. Como todas as pessoas,
nascidos do belo absoluto.
E o mundo seria tão mais pacífico
se acreditássemos nisso.
Nunca fui perfeito. Nem poderia ser.
Vocês conhecem o meu jeito para falhar.
Os pais perfeitos, esses, no máximo
conseguem divertir-nos.
Que fiz mal, que fiz bem?
Vocês foram-me apenas emprestados.
Não consigo falar com rodeios:
nunca vos quis educar.
Educar para quê? Para a ambição, para a cobiça?
Para ser chefe no campo certo?
Vocês sabem como eu amo
os sonhadores e os falhados.
Mas tenho um desejo, único e grande,
é só isto que vos peço:
seja o que for que vos prometerem,
não usem nunca um uniforme.
Não vai ser fácil. Os tempos estão difíceis.
Há rangidos fortes na engrenagem.
Tenho esperança que o meu amor incondicional
vos transporte também na travessia das dificuldades e das dores.
É só isto o que tenho para vos dar,
não tenho contas bancárias cheias.
O amor, e também momentos de beleza
nos quais aquecemos juntos o coração.
Não se preocupem com o vosso pai,
agora começa a vossa própria vida.
Eu aprendi - e agradeço-vos isso -
a dar sem exigir em troca.
[Adenda: No vídeo, ele explica que é no sossego da sua casa na Itália que os poemas vêm ter com ele. "Tenho de esperar até me acontecer um poema", diz. Praticamente todos os poemas que escreveu nos últimos trinta anos aconteceram-lhe lá. As férias em Itália eram marcadas pelo calendário escolar da Bavária, onde a família mora. Mas os filhos, que à data deste concerto tinham 15 e 18 anos, começaram a deixar de achar graça a passar as suas férias na tranquilidade da Toscana. Repentinamente, o pai deu-se conta de que o tempo estava a passar e que os filhos em breve sairiam de casa.]
14 abril 2016
não desiste
O Konstantin Wecker deu na semana passada um concerto em Berlim. Está quase a fazer setenta anos, e não desiste: nem da poesia, nem da revolução, nem do amor, nem de acreditar na bondade das pessoas e num mundo que saberemos fazer melhor.
Canta "tenho um sonho / vamos abrir as fronteiras / e deixamos entrar todos / todos os que fogem da fome e da morte /sem deixar ninguém entregue à sua má-sorte"
E fala de partilharmos com eles a casa e o pão, e da tristeza dos ricos que nos vêem sem saber o que se ganha quando se dá. Acredita que a força doce deste sonho pode mudar o mundo, e nós, que o ouvimos, por um momento acreditamos com ele.
Critica o CSU e o seu discurso populista. Critica a Pegida, esse grupo que atrai pessoas desconfiadas da política e por ela esquecidas, que agora correm para os braços destes flautistas de Hamelin, retrógrados e fanáticos.
Canta "sem ter porquê", inspirado no poema de Angelus Silesius: A rosa não tem porquê. / Floresce porque floresce. / Não cuida de si mesma. / Nem pergunta se alguém a vê.
Vai mais longe, ao Mestre Eckhart: Se se perguntar à vida porque vive, ela responderá: vivo para viver.
Deita contas à vida com a canção mais comovedora da noite: para os seus filhos, que tão depressa cresceram. Pergunta-se o que terá feito bem, o que terá feito mal, diz-lhes que nunca os quis educar (para quê? para serem ambiciosos, para serem gananciosos?). Diz o que lhes deixa: recordações de momentos de beleza. Diz o que quer que levem sempre com eles: o seu amor de pai.
Depois atira-se de olhos fechados para o futuro. Está apaixonado, o poeta de setenta anos, e não soube tirar lições do que viveu e tropeçou no passado. Continua a acreditar que o amor lhe vai dar a viver a eternidade hoje.
Conta de novo sobre aqueles que discutiam os prós e os contras de fazer uma revolução, e do velhote bávaro que os interrompeu "façam a vossa revolução de uma vez, a ver se temos sossego."
Todos lhe conhecemos já esta história, e gostamos sempre de lha ouvir. Na sua voz, tudo faz sentido - porque é uma voz da decência que acusa vergonhas do nosso tempo: os ataques do exército alemão no Afeganistão, as exportações de armas, o nosso egoísmo de ricos, o pensamento cada vez menos livre.
Exige a revolução, exige dos que o rodeiam a partilha do amor à revolução. Elogia o papa Francisco que também quer uma revolução cultural para impedir que continuemos a transformar o nosso mundo numa lixeira - a revolução com a benção de Deus, ri-se ele, e canta:
Arrebata-nos com a sua "dança sagrada", e fala da dança divina na criação do mundo. Está cada vez mais espiritual, o nosso poeta da revolução. Talvez os caminhos paralelos se encontrem realmente no infinito.
E depois ri-se de nós, ri-se connosco. Passou três horas a dar-nos poesia, e nós nem notámos.
Claro que notámos, mas não lhe dizemos que foi para isso que lá fomos, para nos embalarmos na beleza da poesia que lhe acontece, como ele diz.
em primeira mão
(foto)
Onde está a televisão portuguesa, que eu estou aqui mortinha por contar o que senti quando passei ao fundo do Ku'damm e vi o início do que, vim a saber depois, era uma monumental razia que fizeram no bordel Artemis (falei dele neste post, quando festejava 10 anos), e ninguém me pergunta?
Então aqui vai o testemunho, em primeira mão: saímos de casa atrasados, por causa de coisas importantes mas que não interessa relatar, e quando chegámos à rotunda ao fundo do Ku'damm para entrar na auto-estrada vimos que havia sarilho. Tinham acabado de fechar o acesso àquela zona, e havia inúmeros carros de polícia ao longo da rua paralela à auto-estrada. Claro que pensámos logo numa ameaça de atentado terrorista, e fomos à nossa vida. Ao ver o engarrafamento brutal que já se formava, e dentro dele vários autocarros que fazem o serviço de quatro estações do anel de S-Bahn enquanto a linha está em obras, desatei a criticar a polícia. Que é preciso planear estas coisas, que é preciso avisar as empresas dos transportes públicos, coitados dos clientes da S-Bahn parados em Westkreuz, a tentar ver passar os autocarros e só vêem passar polícias, quantos deles iriam perder o avião em Tegel?, etc. (tendo em conta que supúnhamos um ataque terrorista, estas minhas reacções são quase ao nível da mulher que foi ao moinho pesar-se e encontrou um morto, eu bem digo que a televisão devia ter vindo falar comigo). Depois fomos ao que íamos, e quando regressámos aquela parte da auto-estrada ainda estava fechada, e havia uma fila de meio quilómetro de carrinhas da polícia.
Por uma vez sem exemplo encontrei notícias na internet sobre o que se passava em Berlim: 900 pessoas (dos quais 680 polícias) a fazer uma razia ao bordel, por suspeita de fuga aos impostos e às contribuições para a Segurança Social, tráfico humano, ligação aos Hell Angels (que terão forçado mulheres a prostituir-se nesse bordel). As suspeitas vinham escritas por esta ordem em todas as notícias que li: primeiro a fuga aos impostos e à Segurança Social, depois a prostituição forçada. Mas esta manhã o nosso diário berlinense já punha os crimes na ordem certa: primeiro a prostituição forçada, depois a fuga às contribuições para a Segurança Social (faziam de conta que as prostitutas trabalhavam por conta própria) e a fuga aos impostos, num total que se estima chegar aos 23 milhões de euros. Meu rico Tagesspiegel, se não tivesse já uma assinatura anual, era agora que a fazia.
A polícia prendeu seis pessoas (os dois proprietários e as quatro encarregadas do sector produtivo, digamos assim) e levou 212 pessoas (entre prostitutas, empregados e clientes) para prestarem declarações. Coitados dos homens que foram lá só para dar um pulinho entre o trabalho e o jantar, tiveram de telefonar para casa a dizer que tinham uma reunião inesperada que ia durar a noite toda.
Se quiserem ver imagens da dimensão da coisa, espreitem este site.
"E como é que se sente?"
Com vontade de dizer disparates, do género: parece que vão fechar o bordel, que era uma das poucas empresas produtivas desta cidade, e depois admiram-se que Berlim tenha uma dívida de sessenta mil milhões de euros. Deixem-nos trabalhar!, como dizia o Cavaco. Etc.
13 abril 2016
"templo"
"Fugi da fornicação. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que fornica peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus."
Aquela coisa do corpo como templo do Espírito Santo atormentou-me a infância e a adolescência. Já não me lembro bem, mas parece-me que foi na catequese (ou no livro com uma lista de pecados, que havia na casa da minha avó, e me dava muito jeito para a check list antes de ir à confissão) (o problema era se perdia a minha check list, e os meus irmãos a apanhavam e liam) (é tão triste ser criança! como é possível ficar embaraçada por alguém ler aquela lista de pecadilhos "bati nos meus irmãos / desobedeci aos meus pais / não devolvi um livro que me emprestaram / deixei-me conduzir pela soberba numa discussão com a minha melhor amiga"?) (isto de uma pessoa se sentir embaraçada por tão pouco era tema para ontem, para "segredo": não importa o conteúdo do segredo em si, mas o facto de o seu dono não o querer devassado) foi na catequese, dizia, que me incutiram a ideia deste corpo exterior a mim, que era mais e melhor que eu. A princípio, bem foi: os meus pais que nem se atrevessem a bater no templo do Espírito Santo, até havia uma anedota para essa cena. Mas depois vieram os pecados contra a castidade ("sozinha ou acompanhada?", perguntava o cusco do padre), e aquele sentimento de haver algo errado na obrigação de escolher entre o ser e o dever ser. Na adolescência, os jovens católicos aprendem uma de duas coisas: ou a afastar-se da Igreja, ou a viver em hipocrisia.
E agora não sei quem mais se alegra: se o Espírito Santo, a dar um suspiro de alívio e a dizer ao São Paulo "eu bem te disse que andavas a precisar de umas valentes sessões de psicanálise" (o Sigmund Freud esfregará as mãos de contente, e o Nathan Ackerman virá juntar-se à conversa - a vantagem da vida depois da vida é que se pode fazer uma terapia familiar muito catita, juntando todas as gerações, para descobrir afinal que é Eva quem tem a culpa de tudo), se o diabo, que vai encomendar mais uns bons nacos de banha para fazer de mim rojões à moda do Minho, quando chegar a minha hora.
12 abril 2016
"segredo"
A palavra do dia, na melhor enciclopédia que conheço, é "segredo".
Já alguém sabe ao certo qual é o terceiro segredo de Fátima?
Eu, nem o segundo sei. Fiquei-me pelo primeiro: a Rússia vai espalhar os seus males pelo mundo, mas depois, se rezarmos todos o rosário, acabará por se converter.
A propósito, há dias estive num jantar com um dos últimos fãs do partido único da RDA. Se bem entendi, saiu do SED em 1992. O que é um bocado difícil, porque o SED deixou de ser SED em 1990, mas adiante. Estou a ver que lá terei de revelar o segredo que queria guardar: aquilo não era um jantar, era uma "wine-battle". Cada pessoa traz uma garrafa de vinho, provam-se todos sem ver as etiquetas, e decide-se qual é o vencedor; o perdedor, esse, está definido à partida: sou eu, que ao fim do terceiro vinho provado perco um bocadinho a compostura. A conversa sobre o comunismo apareceu já na penúltima garrafa, de modo que pode muito bem ter acontecido de eu ter confundido datas. Mas a ideia principal, e era o que eu queria contar aqui, é que em 2016 encontrei numa casa na antiga Berlim-Leste, num grupo de russos e de alemães dos dois lados da cortina de ferro, uma pessoa da antiga RDA que ainda sonhava com o comunismo que há-de vir. Os da RFA ouviam caladinhos, os da RDA e da Rússia caíram-lhe em cima: se nem na RDA, que era o Rolls-Royce do comunismo, funcionou, como há-de funcionar algum dia? Se foi experimentado em cada segundo país do mundo e não funcionou, o que o leva a pensar que no futuro funcionaria?
Ele insistia, teimoso. Agora sabemos o que falhou, sabemos como evitar erros.
Quer-me parecer que alguém não rezou o rosário como deve ser e como a Nossa Senhora pediu: ainda falta converter um resistente...
(Tivemos de sair nessa altura, e foi pena. Gostava muito de ter continuado a ouvir esse debate entre amigos com experiências tão próximas e conclusões tão diferentes.)
Já alguém sabe ao certo qual é o terceiro segredo de Fátima?
Eu, nem o segundo sei. Fiquei-me pelo primeiro: a Rússia vai espalhar os seus males pelo mundo, mas depois, se rezarmos todos o rosário, acabará por se converter.
A propósito, há dias estive num jantar com um dos últimos fãs do partido único da RDA. Se bem entendi, saiu do SED em 1992. O que é um bocado difícil, porque o SED deixou de ser SED em 1990, mas adiante. Estou a ver que lá terei de revelar o segredo que queria guardar: aquilo não era um jantar, era uma "wine-battle". Cada pessoa traz uma garrafa de vinho, provam-se todos sem ver as etiquetas, e decide-se qual é o vencedor; o perdedor, esse, está definido à partida: sou eu, que ao fim do terceiro vinho provado perco um bocadinho a compostura. A conversa sobre o comunismo apareceu já na penúltima garrafa, de modo que pode muito bem ter acontecido de eu ter confundido datas. Mas a ideia principal, e era o que eu queria contar aqui, é que em 2016 encontrei numa casa na antiga Berlim-Leste, num grupo de russos e de alemães dos dois lados da cortina de ferro, uma pessoa da antiga RDA que ainda sonhava com o comunismo que há-de vir. Os da RFA ouviam caladinhos, os da RDA e da Rússia caíram-lhe em cima: se nem na RDA, que era o Rolls-Royce do comunismo, funcionou, como há-de funcionar algum dia? Se foi experimentado em cada segundo país do mundo e não funcionou, o que o leva a pensar que no futuro funcionaria?
Ele insistia, teimoso. Agora sabemos o que falhou, sabemos como evitar erros.
Quer-me parecer que alguém não rezou o rosário como deve ser e como a Nossa Senhora pediu: ainda falta converter um resistente...
(Tivemos de sair nessa altura, e foi pena. Gostava muito de ter continuado a ouvir esse debate entre amigos com experiências tão próximas e conclusões tão diferentes.)
11 abril 2016
um novo hino nacional
Trago do Carlito Azevedo, o maravilhoso, no seu mural de facebook:
Um sonho: este passa a ser o hino nacional brasileiro, e em todos os jogos de futebol, eventos esportivos, e no dia 7 de setembro, e nos quartéis, e nas escolas primárias, velhos, jovens e crianças cantariam, de pé, emocionados: "O seu amor: ame-o e deixe-o livre para amar... / O seu amor: ame-o e deixe-o ir aonde quiser... / O seu amor: ame-o e deixe-o brincar / ame-o e deixe-o correr / ame-o e deixe-o cansar / ame-o e deixe-o dormir em paz / O seu amor: ame-o e deixe-o ser o que ele é / ser o que ele é / ser o que ele é".
--
O hino nacional brasileiro. Lindo!
E nós, Portugal? Qual seria o nosso novo hino nacional?
(Deixando de fora o Grândola, que é o mais óbvio.)
10 abril 2016
"um bocadinho de trabalho de integração"
"Ontem fiz um bocadinho de trabalho de integração", contou a minha filha.
Se querem saber tudo: no centro de refugiados onde vai trabalhar várias vezes por semana conheceu um rapazinho iraquiano de cinco anos, amoroso. A família mudou agora para outro centro, e ela foi visitá-los.
Se querem saber mesmo tudo: foi comprar um ramo de flores para levar à mãe, que está grávida, e desabafou com a florista que a sua colega do apartamento tinha levado o chocolate que ela queria dar ao miúdo. A florista ofereceu-lhe as flores, e disse-lhe que assim já podia comprar outro chocolate.
Lá foi ela para o novo centro, onde a família conseguiu um quarto inteiro só para si, e depois foram passear num parque. Às tantas viram um casal gay a passar, e a mãe comentou algo do género "ai que nojo". Com toda a calma, com um sorriso, e sem julgar, a minha filha explicou que na Alemanha é normalíssimo haver casais gay.
Trabalho de integração pode ser tão simples como isso: com calma, com um sorriso, e sem julgar.
Se querem saber tudo: no centro de refugiados onde vai trabalhar várias vezes por semana conheceu um rapazinho iraquiano de cinco anos, amoroso. A família mudou agora para outro centro, e ela foi visitá-los.
Se querem saber mesmo tudo: foi comprar um ramo de flores para levar à mãe, que está grávida, e desabafou com a florista que a sua colega do apartamento tinha levado o chocolate que ela queria dar ao miúdo. A florista ofereceu-lhe as flores, e disse-lhe que assim já podia comprar outro chocolate.
Lá foi ela para o novo centro, onde a família conseguiu um quarto inteiro só para si, e depois foram passear num parque. Às tantas viram um casal gay a passar, e a mãe comentou algo do género "ai que nojo". Com toda a calma, com um sorriso, e sem julgar, a minha filha explicou que na Alemanha é normalíssimo haver casais gay.
Trabalho de integração pode ser tão simples como isso: com calma, com um sorriso, e sem julgar.
no oksijan
Nesta semana de notícias terríveis sobre o que a Europa anda a fazer com os refugiados, um pequeno milagre: uma criança afegã de sete anos envia um SMS que salva a vida de 15 pessoas.
Conto a história como li no jornal Süddeutsche Zeitung.
Ahmed, o miúdo afegão, enviou este SMS a uma voluntária no trabalho com refugiados:
I ned halp darivar
no stap car no
oksijan in the car
no signal iam
in the cantenar.
Iam no jokan valla
[espaço para tentarem perceber o que ele queria dizer]
Meses antes, voluntários tinham dado a crianças da selva de Calais telemóveis com um número gravado, para elas usarem em caso de absoluta necessidade. O miúdo de sete anos conseguiu entrar na Inglaterra com mais 14 pessoas, dentro de um contentor. Quando o ar lhes começou a faltar, enviou a mensagem.
Queria dizer: "I need help. The driver won't stop the car. No oxygen in the car. No signal. I'm in a container. I am not joking. I swear to God."
Liz Clegg, a voluntária que recebeu a mensagem, estava num congresso em Nova Iorque. Telefonou imediatamente a Tanya Freedman, da fundação Help Refugees, em Londres, e esta avisou a polícia de Kent, que reagiu imediatamente, mal se apercebeu que era um caso de vida ou de morte. Arranjaram um tradutor para falar com o miúdo, localizaram o telemóvel em Leicestershire (180 km a noroeste de Londres). Ligaram à polícia local, que encontrou o camião parado numa bomba de gasolina junto à auto-estrada. Arrombaram o contentor, e encontraram as pessoas desesperadas com falta de ar. Os ocupantes foram detidos por suspeita de tentativa de imigração ilegal, e o miúdo está sob custódia. Apesar das detenções, Tanya Freedman sente-se aliviada pelas vidas salvas.
09 abril 2016
plágio - o riso e o risco
Esta manhã descobri que alguém tinha feito no facebook um texto a criticar o filme da Joana Vasconcelos a brincar aos refugiadozinhos, e pelo meio das suas linhas achou por bem meter um post que eu tinha escrito sobre o assunto, mas esqueceu-se das aspas.
Seguiu-se um momento de muito boa disposição no meu mural e no do plagiador, com o pessoal a fazer comentários que iam do divertido ao hilariante (vou deixar de lado os sérios, sobre a desonestidade de quem plagia, porque hoje é sábado e está um lindo dia de sol).
Concordámos quase todos, na galhofa, que um plágio é um reconhecimento de valor, diria mesmo: um elogio. Eu falava num novo indicador de sucesso, o "quote quotation", alguém dizia que ele não teria "material testicular" para pedir desculpa. O comentário mais hilariante foi um que apareceu no mural dele, dizendo algo como: "no seu caso, não precisava de levar nada na mochila - ia roubando aos outros pelo caminho".
Infelizmente, o meu fã tímido apagou o post e bloqueou-me. Que pena: já não posso voltar ao lugar onde passei uma manhã de sábado a rir com alguns amigos.
Além disso, o meu mundo internético ficou mais pequeno. Nunca mais vou poder ler as frases tão inspiradas que saíam do copy+paste do meu fã. Que ele será fã de outros melhores que eu, tenho a certeza!
Isto é uma triste vida...
--
Não foi a primeira vez. Já me dei conta de que gente realmente famosa na nossa praça se inspira no que escrevo, digamos assim, e esquece-se de mencionar o facto. Uma vez quase ia morrendo de vergonha: publiquei um apontamento rápido no facebook, com uma tradução ainda mais rápida que de costume, e de repente comecei a ver expressão que, na pressa, escolhera mal, a ser repetida por aí. A culpa foi de um figurão, que ainda por cima escreve bem. Não podia ao menos ter feito um pequeno serviço de edição de texto?!
Outra vez citei mal as conclusões de um estudo, e vi que outro figurão da nossa praça citava o mesmo estudo e as mesmas (por mim mal citadas) conclusões.
Portanto, aqui fica um aviso para os meus fãs: antes de me plagiarem, pensem.
Pensem que podem estar a repetir imprecisões porque eu, ao contrário de alguns de vocês, não sou jornalista e nem sempre trabalho com o esmero que é exigido à classe.
E pensem se querem oferecer uma barrigada de riso a mim e a quem quiser aproveitar para rir.
Seguiu-se um momento de muito boa disposição no meu mural e no do plagiador, com o pessoal a fazer comentários que iam do divertido ao hilariante (vou deixar de lado os sérios, sobre a desonestidade de quem plagia, porque hoje é sábado e está um lindo dia de sol).
Concordámos quase todos, na galhofa, que um plágio é um reconhecimento de valor, diria mesmo: um elogio. Eu falava num novo indicador de sucesso, o "quote quotation", alguém dizia que ele não teria "material testicular" para pedir desculpa. O comentário mais hilariante foi um que apareceu no mural dele, dizendo algo como: "no seu caso, não precisava de levar nada na mochila - ia roubando aos outros pelo caminho".
Infelizmente, o meu fã tímido apagou o post e bloqueou-me. Que pena: já não posso voltar ao lugar onde passei uma manhã de sábado a rir com alguns amigos.
Além disso, o meu mundo internético ficou mais pequeno. Nunca mais vou poder ler as frases tão inspiradas que saíam do copy+paste do meu fã. Que ele será fã de outros melhores que eu, tenho a certeza!
Isto é uma triste vida...
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Não foi a primeira vez. Já me dei conta de que gente realmente famosa na nossa praça se inspira no que escrevo, digamos assim, e esquece-se de mencionar o facto. Uma vez quase ia morrendo de vergonha: publiquei um apontamento rápido no facebook, com uma tradução ainda mais rápida que de costume, e de repente comecei a ver expressão que, na pressa, escolhera mal, a ser repetida por aí. A culpa foi de um figurão, que ainda por cima escreve bem. Não podia ao menos ter feito um pequeno serviço de edição de texto?!
Outra vez citei mal as conclusões de um estudo, e vi que outro figurão da nossa praça citava o mesmo estudo e as mesmas (por mim mal citadas) conclusões.
Portanto, aqui fica um aviso para os meus fãs: antes de me plagiarem, pensem.
Pensem que podem estar a repetir imprecisões porque eu, ao contrário de alguns de vocês, não sou jornalista e nem sempre trabalho com o esmero que é exigido à classe.
E pensem se querem oferecer uma barrigada de riso a mim e a quem quiser aproveitar para rir.
a armadilha da câmara
Quanto mais penso na triste figura que alguns dos nossos famosos fizeram no filme sobre o que levariam na mochila se fossem refugiados (#esefosseu, comentei aqui), mais me parece que o problema foi o reflexo condicionado de "vender a sua marca" quando estão perante uma câmara.
Em vez de pensarem realmente na situação dos refugiados, usaram essa oportunidade para reforçar uma determinada imagem de si próprios.
Que nos sirva de aviso: quantos de nós são capazes da presença de espírito e do distanciamento interior necessários para não cair na armadilha da câmara?
Em vez de pensarem realmente na situação dos refugiados, usaram essa oportunidade para reforçar uma determinada imagem de si próprios.
Que nos sirva de aviso: quantos de nós são capazes da presença de espírito e do distanciamento interior necessários para não cair na armadilha da câmara?
08 abril 2016
#esefosseeu
(foto)
Que se pergunte a uma criança de oito ou dez anos o que levaria numa mochila se tivesse de fugir da guerra, compreende-se. É um exercício que permite à criança pôr-se na pele do outro e entender um pouco melhor o que se está a passar no nosso mundo.
Que se pergunte o mesmo a um adulto, é um disparate. Os adultos deviam ter a capacidade de abstracção suficiente para perceberem o que isso significa sem precisarem de fazer bonequinhos.
Que se mostrem os filmes com as respostas mais ridículas, pior ainda. Em vez de falarmos da tragédia dos refugiados, entretemo-nos com o que alguns dos nossos famosos levariam. Fica ao nível banal e fútil da rubrica "o que leva Fulano na sua bagagem de mão?" das revistas dos aviões.
Muitos deles fazem pior figura que as crianças: parece que estão a falar de um fim-de-semana no Alentejo. Nem levam água, nem comida, nem o dinheiro todo que têm, nem medicamentos, nem pensos para as bolhas nos pés, nem sabão para se lavarem. E pensam que vão ter muito tempo para ler e fazer trabalhos manuais. Na travessia do Mediterrâneo, talvez, ou então quando se estiverem a enterrar na lama junto a uma fronteira fechada.
Uma sugestão à TV: mudem a questão, e entrevistem os mesmos. Perguntem-lhes: e se fosse eu a querer ajudar um refugiado concreto, um dos africanos à porta de Melilla, uma das pessoas que está em Idomeni, o que fazia?
a vida depois da vida
Adenda: como provavelmente se tornará habitual, aqui fica o comentário do nosso estimado leitor jj.amarante.
"Em primeiro lugar queria chamar a atenção da Helena para a sorte que teve em só ter ido morar para o pé do seu lago berlinense depois de haver máquinas fotográficas digitais, caso contrário teria que trabalhar muitas horas extraordinárias para pagar os rolos de película.
"Em primeiro lugar queria chamar a atenção da Helena para a sorte que teve em só ter ido morar para o pé do seu lago berlinense depois de haver máquinas fotográficas digitais, caso contrário teria que trabalhar muitas horas extraordinárias para pagar os rolos de película.
Desta vez guardei as fotos todas para ver se consigo descobrir outras sequências de apresentação das imagens, parece-me que o problema não tem solução única. Vê-se que algumas foram tiradas quando havia mais neve enquanto noutras a neve já derreteu. Fui ver (, a neve caía do azul cinzento do céu..., ) o nome dos ficheiros das imagens e constata-se que enquanto os com neve têm números de 3300 a 3500 os de neve derretida estão nos 8600.
A árvore a entrar pelo lago adentro faz impressão a pessoas como eu que têm atracção para cair na água, felizmente existem uns ramos no fim mostrando que o caminho não tem saída.
A neve ao fundo faz-me pensar na areia rosada duma praia mas o resto da paisagem mostra que não deverá ser isso. A transição do 3 para o 4 parece ser a que mostra melhor a chegada da Primavera. Gostei de todas e talvez um pouco mais da última, onde já se vêem umas coisinhas pequeninas a flutuar na água."
Etiquetas:
concerto promenade,
da minha vida vê-se um lago
07 abril 2016
estão a brincar?
NOTA: depois de publicar este post, avisaram-me que confundi duas peças diferentes. O que está a ser analisado pelo Ministério Público é um poema lido noutro programa. E esse poema é muito mais ofensivo que esta canção. (Do género afirmar que o Erdogan gosta de ter sexo com cabras, e felattio com ovelhas, e que é perverso, gay, piolhoso...)
Não apago o post publicado, mas fica o aviso que de está errado. Peço desculpa pela confusão.
Independentemente deste episódio, mantenho a última parte do texto, a partir de "mas agarrem-me, que".
--
Na semana passada, um programa satírico alemão apresentou a canção sobre o Erdogan que está neste vídeo (com legendas em inglês). Já lhes vi piadas bem mais fortes do que esta, que praticamente se limita a repetir o que lemos frequentemente nos jornais. Mas chegaram protestos da Turquia, e de dezenas de pessoas residentes na Alemanha.
A Angela Merkel viu-se obrigada a declarar que se trata de uma "ofensa propositada" (nem quero pensar nas palavras que encontraria para descrever o "Heute Show"...) (e talvez fosse boa ideia enviar à chanceler um dicionário marcado na palavra "sátira").
O vídeo foi retirado da mediateca do canal (não sei quanto tempo ficará esta cópia no youtube - aproveitem enquanto existe), e o Ministério Público está a analisar as queixas que têm chegado, para decidir se pode ser considerado caso de "ofensa a órgãos ou representantes de Estados estrangeiros". O autor do programa incorre numa pena que pode ir até 3 anos de prisão.
Devem estar a brincar. Agora o primeiro de Abril dura uma semana inteira, deve ser isso.
(E eu nem sou muito Charlie, nem achei graça nenhuma à provocação das caricaturas do Maomé. Mas agarrem-me, que se me deixassem estava capaz de mandar que não saia mais nenhuma exportação de armas alemãs, e que se pague bem à Grécia para dar boas condições de alojamento aos refugiados enquanto não se decide se voltam para casa ou se vão para outro país da Europa, e vamos embora para a frente por caminhos de decência, que isto de fazer acordos com gente que não respeita princípios básicos da Democracia é como andar no meio de gente com gripe: arriscamo-nos a apanhar a doença.)
inteiramente dentro do momento
Mas depois ouço este pedacinho de concerto, e penso que não é preciso saber tudo. Basta estar tão inteiramente dentro do momento que nem me dou conta de que parei de respirar.
(Os comentários que me provocaram um ataque de só-sei-que-nada-sei:
- Karajan, 100% technique and 0% emotion. That's the problem of the teuthonic school. I love his performance as a chief conductor and genius, but I feel that something is missing like breathless feeling.
- There is (nor ever was) no such thing as a specific "teutonic school" of orchestral playing and conducting. It's a very wide spectrum, and Karajan's style was just part of the spectrum. Nor is it "100% technique and 0% emotion". Many of the "teutonic" conductors like Furtwängler or Jochum were particularly known for their spontaneous and emotionally charged conducting which emphasized expression over technical perfection. Karajan combined elements of that fluent, breathing style with a great sense of sound. Technical perfection was never his primary goal either - one can hear many little flaws and moments of slightly imprecise ensemble in his recordings (including the above). He cared more for the long line, the big picture. The emphasis on technical perfection for its own sake was more something that came from Toscanini and that was cultivated in the US by many European conductors who emigrated to there, like Reiner, Szell, Rodzinski, and others. It was never a primary element of any part of the wide spectrum of the "teutonic" style of conducting and orchestral playing.)
T0 em Berlim, muito arejado e com obras recentes para aumento da área útil
Acabei de vir do dentista. Remoção da placa bacteriana talicoisa. Tenho a sensação que o espaço interior da minha boca aumentou uns 20%.
06 abril 2016
estava uma bela luz para ir ver passar comboios
Estava uma bela luz para ir ver passar comboios, mas dei comigo a ver passar carros.
Em Berlim a beleza e o horror revezam-se. Às vezes encontram-se no mesmo sítio.
Um passeio num descampado, a ver passar comboios, desemboca no memorial Gleis 17, de onde os judeus berlinenses foram levados para os campos de concentração.
boicotar a Dolce & Gabbana
Se bem entendi o que escreveu no Observador, é isto: a Maria João Marques apela ao boicote da Dolce & Gabbana como reacção ao surgimento de uma linha especial de vestidos de freira para as lojas da Via dei Cestari, em Roma. Esta decisão da empresa junta-a "ao lado negro da força que impõe indumentárias simbólicas da opressão e do desrespeito dos direitos humanos das mulheres. O que convoca, claro, um boicote à empresa por todas as mulheres de boa vontade".
No seu artigo, Maria João Marques cita a ministra francesa Laurence Roussignol, Que acusa certas marcas ocidentais de "colaborarem no controlo social dos corpos das mulheres, estarem a vender os princípios ao lucro" e "comparou até as mulheres que viam com bons olhos estas indumentárias como os ‘negros que apoiavam a escravatura’".
As Escravas do Sagrado Coração de Jesus mandaram dizer que não conseguiram acompanhar muito bem a lógica deste argumento.
Cita ainda Pierre Bergé, da Yves Saint Laurent: ‘Estou escandalizado. Os designers existem para tornarem as mulheres mais bonitas, para lhes darem liberdade, não para colaborarem com esta ditadura que impõe esta coisa abominável que esconde as mulheres e as faz viver uma vida escondida. Estes criadores estão a participar no aprisionamento das mulheres e deviam perguntar-se a si próprios várias questões’. Mais: ‘Desistam da massa. Tenham convicções. Defendam as convicções’.
Do lado oposto, mais concretamente, do Vaticano e suas ramificações, esbracejaram-se argumentos. Uma responsável das Filhas da Bem-aventurada Virgem Maria opinou ser uma questão de liberdade vender e vestir roupa que siga os preceitos católicos. As Servas do Sagrado Coração de Jesus tiveram "a sonsice de aconselhar mais atenção ao que as religiosas são como pessoas em vez de ao que vestem".
A Maria João Marques critica, e muito bem: "Como se a forma de nos vestirmos não fosse uma maneira extraordinariamente eficaz de nos exprimirmos e de revelarmos a nossa personalidade."
E acrescenta: "Garanto a toda a gente que as cores das minhas carteiras, ou o abundante roxo ou azul-turquesa na roupa, brincos, anéis e sapatos, são inteiramente eu."
Ora aqui está uma informação preciosa! Há anos que olho para as fotos da Maria João Marques e penso "eu conheço esta cara, tenho a certeza que a conheço de algum lado". Finalmente caiu a ficha: é a Maga Patalógica.
Adiante, que a crítica impiedosa à Igreja Católica não termina aqui.
A autora continua: "como se o modo como nos apresentamos vestidos não condicionasse a nossa relação com os outros, seja porque uma mulher toda coberta convida a criar distância (que é, lá está, o objectivo dos panos pretos), seja porque a cara tapada e linguagem corporal mitigada por roupa larga e comprida exterminam parte da comunicação."
Mais um mistério que se explica: porque é que ninguém aguenta a proximidade das irmãs de caridade (ele é - milagre! milagre! - paralíticos que de repente começam a correr para saltar pelas janelas do hospital confessional, ele é idosos nos lares das freiras a morrer antes do tempo porque não aguentam viver num contexto de distância e recusa de comunicação, ele é crianças nos infantários das paróquias incapazes de dormir porque têm pesadelos com pinguins gigantes).
Outro ponto muito pertinente da crítica: a obrigação de as mulheres cobrirem certas partes do corpo quando entram nas igrejas. Mesmo que as visitem por motivos profissionais, os costumes impostos pela moral do Vaticano são intransigentes: nada de braços à mostra ou decote fundo. Pelo que os sindicatos estão muito bem quando exigem que, dada a imposição dos preceitos morais totalmente desadequados ao nosso tempo, as mulheres possam recusar trabalhar nesses locais.
A autora remata lapidarmente: "marcas como a Dolce & Gabbana ou a DKNY, que tentam dar glamour a indumentárias que são símbolo de opressão, merecem agravos. As mulheres – e os homens – também podem exercer a sua liberdade e comprar noutro lado. As escolhas de consumo são com frequência escolhas políticas e morais."
Toma, Vaticano! Embrulha.
--
Como provavelmente já repararam, a Maria João Marques estava a criticar as empresas de alta-costura que resolveram criar uma linha especial para certas exigências da moda em países islâmicos onde há clientes com muito, mas mesmo muito dinheiro. Eu limitei-me a usar as suas frases para uma situação que nos é mais familiar.
O presente post serve para partilhar convosco a alegria de finalmente ter esclarecido esta dúvida que me atormentava há anos, a "de onde é que conheço esta cara?", e para lembrar que em todas as sociedades há tradições estranhas e até ofensivas para os próprios valores dessa sociedade. A Igreja Católica é um manancial de exemplos, mas há mais: a humilhação e a subjugação aos instintos sádicos de uma autoproclamada autoridade na praxe universitária; as práticas empresariais de exploração sistemática dos jovens à procura de um emprego estável; o assédio verbal na rua, que muitas mulheres defendem (como é que era mesmo aquela história de os negros acharem bem a escravatura?).
Não é que as nossas práticas desumanas e humilhantes desculpem as dos outros, mas convém olhar em volta cuidadosamente antes de desatar a atirar pedras ao calhas como o cão do Pavlov, que entretanto ficou cego, coitadinho do bicho.
A grande diferença entre a roupa das congregações religiosas femininas perfeitamente aceites na nossa própria sociedade e as peças que a Dolce & Gabbana criou para aqueles mercados é que estas são muito mais sexy. (Podem ver aqui).
E não, Maria João Marques, não fizeram nenhum niqab e não taparam a cara a mulher nenhuma. Isso de ler "hijab e abaya" e fazer um texto com "niqab" no título parece um reflexo condicionado por uma cegueira obsessiva.
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