Partilho um testemunho sobre a vida nas regiões que colonizámos, escrito pela Leah Pimentel na sua página de facebook. É preciso falarmos disto: para não esquecer, e para nos confrontarmos de forma séria com o nosso racismo, em vez de continuarmos a repetir ideias feitas que herdámos acriticamente do Estado Novo.
Devemos isso aos povos que escravizámos e explorámos, cujos descendentes - muitos deles nossos compatriotas - vivem ainda sob o jugo das consequências dessa História que lhes foi imposta.
Devemo-lo também a nós, porque (desculpem a revelação) os cidadãos do resto do mundo não foram socializados pelo Estado Novo - o que significa que os não-portugueses não olham para a História de Portugal com a mesma indulgência que nós nos permitimos. Ter consciência disso permite-nos evitar alguns incómodos quando nos movemos num contexto internacional.
Passo a palavra à Leah Pimentel:
«Não consigo falar de racismo
Pertenço à quarta geração de angolanos brancos e nunca conhecemos Portugal. Alguns de nós acabámos por cá vir parar, mas os outros, ou ficaram por lá ou fizeram o périplo Africa do Sul/Brasil.
Lembro-me da minha mãe distribuir galhetas democráticas entre o meu tio negro por bater na mulher e o meu tio mais loiro, por gostar de se envolver com mulheres casadas. Mas isso era lá em casa.
Na rua via o meu amigo engraxador de sete anos ser espancado pelo patrão, um borra botas fugido da miséria de Vila Real. Contou-me a minha mãe como, chegados ao fim do mês, a mulher metia talheres nos bolsos da roupa que penduravam os empregados para vestirem os uniformes, e como chamavam a polícia por roubo. E eram espancados na esquadra. E não recebiam o salário. Vi como, aos sete anos, linchavam um homem ao meu lado, por ter roubado uma lata de leite em pó. Nunca mais tolerei aglomerações.
Pela voz do meu tio soube de meninas de doze anos violadas por berliets inteiras de tropas esfaimados. O António Lobo Antunes fala disso, tratou algumas delas.
Angola foi para mim um mundo de terror. Nunca foi aquele território pitoresco onde se bebiam Cucas ao preço da chuva em esplanadas à beira mar. Nem nunca será. Foi a terra onde os patas rapadas abusavam, roubavam, exploravam, e se algum negro refilava, era de imediato morto, para exemplo. Conto muito pouco do que vi. É demasiado duro.
Mas o que mais revolta é sentirem-se expoliados. E não terem vergonha na cara. E continuarem a dizer que Angola era a terra deles, de beleza ímpar, e que agora está toda estragada. Sei que está toda estragada, sim. Mas eles não se dão conta de quem a estragou.»
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