26 julho 2020
ou não
25 julho 2020
imensíssimo mar
Encontrei esta imagem no mural de facebook da artista Bia Wouk, que a descreve assim:
"A série de mares de Sugimoto é metafísica, uma destilação da paisagem, uma exploração dos limites físicos e espirituais. O tempo de exposição de cada foto é de muitas horas, captando todas as mudanças sutis no mar e na luz durante um dia e uma noite. O resultado é uma meditação zen."
Para mim, o resultado é um buraco negro: impossível resistir.
(Ah, se a Ikea se lembrasse de vender isto imprimido sobre uma tela enorme!)
(Oh, acabei de descobrir que foi leiloado pela Christie's por 150 mil dólares. Suponho que já sei porque é que a Ikea não se lembrará nunca de vender esta imagem.)
E eis que descubro que outros seguiram o exemplo de Hiroshi Sugimoto, e fizeram trabalhos também muito apelativos. Por exemplo, Daniel Fuller // Meditation on Blue.
Uma pessoa vê isto e começa a sonhar: "ah, se se arranjasse uma janela em frente ao mar..." e "ah, se eu conseguisse aprender a fotografar assim!"
Sendo que "aprender a fotografar assim", no meu caso, é ainda mais difícil que arranjar uma casa com uma boa janela para o mar.
Portanto: será que alguém me arranja o contacto da pessoa responsável pela escolha dos produtos de decoração da Ikea? Com whatsapp, faz favor, para não gastar o meu dinheiro todo a ligar para a Suécia.
a Bretanha (des)igual a si mesma
Hoje amanheceu cinzento. "Óptimas notícias!", pensei eu, "daqui a nada muda, vai ser um belo dia" - e pus um vestido leve para ir à feira semanal de Saint Renan (o meu novo vício aos sábados) e seguir depois para dar um mergulho nas águas verde-paraíso do Aber Benoît, e apanhar uns bigorneaux para o jantar.
Como previsto, daí a nada o tempo mudou. Sim, mudou - mas para pior. Quando saí de Saint Renan, a caminho da praia Sainte Marguerite, a chuva desbragou-se toda, como se a Bretanha se quisesse desforrar num dia só de todas as semanas de verão que já nos deu.
Era tão forte que perdi até a vontade de ir visitar algumas igrejas que tenho na minha lista.
"Não, nem pensar. Este tempo pede chá e gâteau breton, e o conforto de casa", decidi.
Dei meia volta e regressei a Brest.
Quando estacionei o carro em frente de casa, parou de chover. E quando comecei a fazer o chá, o sol abriu a prometer uma linda tarde.
Alguém arranje de mandar o São Pedro bretão a um psi, que este comportamento não é normal.
24 julho 2020
a turista acidental
Isso mesmo: tem dias. Eu é que me esqueço - e esqueço-me sempre de levar o impermeável.
Hoje, por exemplo: vesti-me de verão, e pus-me a caminho de Pont-Aven. Depois do almoço - justamente quando queria dar um passeio pelo Bois d'Amour até à capela onde o Gauguin encontrou o seu "Cristo amarelo" - começou a chover. Ora, fazer uma caminhada de vinte minutos à chuva não tem graça nenhuma, pelo que entrei numa loja de turistas para comprar um impermeável bretão.
De qualquer modo já andava há meses a namorá-los, será hoje? será amanhã? - foi hoje.
Escolhi depressa, mas demorei um bocadinho mais a pagar, porque o leitor de cartões estava esquisito. Quando saí da loja, já tinha parado de chover.
É a Bretanha...
Em todo o caso: já cá canta um impermeável. Que isto de ir à Bretanha e não comprar um impermeável é como ir a Roma e... e... não comprar um daqueles globos com neve a cair no Coliseu. Ou outra porcaria qualquer para turistas.
23 julho 2020
P.E.I.D.A.
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Encontrei este vídeo no mural de facebook do Vasco Pimentel, com um comentário a dizer assim:
"Ergue-ma até dizer chega."
A gente ri-se muito e partilha, claro. Mas não consigo evitar um certo sabor amargo: é óbvio que eles escolheram este nome para a gente se rir muito e partilhar. Hoje em dia, em termos eleitorais, andar nas bocas do mundo é o plano B para quem não consegue ter participação num programa de televisão, ou até um programa seu.
Beeem, mas já que me ri e partilhei, partilho mais algumas piadinhas:
Do Paulo
Pinto, no facebook:
"a moda dos partidos-interjeição parece ter pegado. Primeiro foi o populista Chega! (que integrava a coligação Basta!) e agora o nacionalista Ergue-te!. Aguardo ansiosamente pelo radical Toma!, pelo anarquista Foda-se!, pelo europeísta Yess! ou pelo pacifista Tásse!"
Também havia
alguém que dizia:
"Ergue-te!
o partido do
Comprimido Azul"
E o Jovem
Conservador de Direita, com a habitual precisão cirúrgica:
"O país soube ontem que o PNR passou a chamar-se Ergue-te. Fico surpreendido, pensei que o PNR já nem existia; pensei que os chegófilos os tinham afogado como vulgares migrantes do Mediterrâneo. E se era para afogar migrantes, até o Dr. Pinto-Coelho concordaria. É uma excelente notícia, como quando sabemos todos os anos que o Dr. Vasco Granja morreu, mas permite-nos recordar o Dr. Vasco Granja.
Este
rebranding da União Nacional, outrora PNR, demonstra progresso. Tenho dúvidas é
que as 17 pessoas que ainda apoiavam o Dr. Pinto-Coelho aceitem. O Dr.
Pinto-Coelho deve ter preparado uma sessão de slides e acetatos e terá dito:
"Nós éramos a Kas Cola da extrema-direita e fomos ultrapassados pela Spur
Cola. Temos de nos adaptar e ser mais como a Spur Cola. Aliás, nós nem somos
como eles, eles é que são como nós, mas mais eficazes. Por isso, temos de nos
identificar como outra coisa, apesar de termos nascido uma coisa.
Ergue-te!" E ergueram-se todos, apesar da idade.
É claro que há
quem diga que o nome do partido parece um anúncio de disfunção eréctil. E de
certa forma é. Se pensarmos na democracia como um útero à espera de carregar no
ventre partidos políticos que a inseminam, o PNR sempre foi o pénis flácido
porque não consegue excitar-se com democracia. Fica ali, como um apito, feito
de pano, a fazer de conta que quer muito, mas acaba por se retrair e parecer
uma pequena vagininha, uma portinha USB, penetrada por outros partidos que disfarçam
melhor.
O travestismo
pode salvar o PNR. E pode salvar-nos da extrema-direita (que não existe).
Quantos mais partidos houver, mais polarizado fica o voto. Se tivermos o Chega,
o Ergue-te e, em breve, numa última tentativa de sobrevivência, o CDS, o voto
fica polarizado e haverá menos hipótese de elegerem deputados. É claro que o
CDS terá de mudar de nome também. Por exemplo, poderá ser baptizado como o
Pilão da Democracia, numa alusão a um utensílio de cozinha que serve para
esmagar ingredientes. É claro que tem também uma alusão a masculinidade, tão
presente no Dr. Nuno Melo e no Dr. Chicão. Acima de tudo, ficam lado a lado com
outro utensílio de cozinha que todos eles amam."
22 julho 2020
QI
21 julho 2020
"operação valkíria"
"unissexo" (3)
Há tempos traduzi no meu blogue um texto que me sensibilizou para esta questão. Se quiserem ler, está aqui.
Em Portugal já vi, curiosamente, casas de banho unissexo em vários centros de encontros da Igreja Católica. Parece que o futuro, além de possível, é tranquilo.
Já em França tenho visto várias casas de banho públicas que separam homem/mulher, mas têm os urinóis na parte comum, onde estão também os lavatórios.
Ora bem: urinóis na parte comum, antes de separar por sexos, é mais ou menos como usar máscara contra o coronavírus e deixar o nariz de fora...
20 julho 2020
carne para canhão
"unissexo" (2)
"unissexo" (1)
1. Na época em que eu era adolescente, o hábito de usar roupa #unissexo deu imenso jeito aos meus pais: com cinco filhos entremeados rapaz/rapariga, a roupa passava directamente de uns para outros sem maiores apertos da carteira: calças da ganga e de bombazine, t-shirts e camisolas, camisas velhas do pai, kispos - assunto resolvido.
A roupa servia apenas para vestir. Não tinha exibições parolas de marcas, não era statement de nada. E aparentemente os adolescentes não precisavam de se escorar na roupa para descobrirem qual era o seu género.
1 bis. Por causa da última frase lembrei-me daquela anedota dos bebés na maternidade:
- Tu és menino ou menina?
- Eu sou menina. E tu?
O outro levanta o cobertor, olha para baixo, e diz:
- Sou menino.
- Como é que sabes?
- Tenho meias azuis.
2. Não vai há muitas décadas, as crianças vestiam-se todas de igual até determinada idade. Nas fotografias antigas não dá para ver, naquela ranchada de crianças de caracóis e vestido, quais são os rapazes da família. O #unissexo das crianças de antigamente era mais feminino ("feminino" para os critérios de hoje)
3. Vá-se lá saber como, em algum momento começou a ser de novo importantíssimo separar a roupa em termos de menino e de menina. O estilo "decorativo" instalou-se na secção da roupa para meninas, e o estilo "aventura e acção"na secção dos meninos. Nos EUA, então, o fenómeno é avassalador: as diferenças chegam ao ponto de, nos palcos das festas dos infantários e das escolas primárias, as meninas estarem todas vestidas de bonecas pirosas, com sapatos de verniz ou quejandos, e os rapazes estarem em estilo "tá-se bem" e com sapatos de desporto.
O vídeo que partilho mostra uma miúda a queixar-se do sexismo contido nessa diferença de vestuário: "os rapazes têm t-shirts a dizer "think outside the box", e nós temos t-shirts a dizer "Hey". Qual é a parte de Hey que é inspiradora?"
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Não sei - não sei mesmo - mas admito que esta separação crescente seja resultado dos interesses do mercado: criar produtos diferentes e tendências novas para as famílias comprarem cada vez mais. E não é apenas a roupa: os quartos das crianças também têm linhas para o menino (camas em forma de carro ou de barco, papel de parede com riscas azuis, etc.) e linhas para a menina (se vos falasse dos quartos de menina que vi em famílias americanas... A perversão total: móveis de plástico a imitar a linha de móveis da Barbie, como se a menina que cresce naquele quarto fosse ela própria a boneca de formas inspiradas em fantasias pornográficas).
A perversão vai, obviamente, muito além do mundo das crianças e das roupas. Há alguns anos a Bic criou uma esferográfica para mulheres, "bic for her" - igual à esferográfica unissexo, mas um pouco mais fina e com um aspecto "feminino" e, claro, mais cara. Os comentários que os clientes da Amazon fizeram a essa produto foram um excelente momento de humor.
4. Há tempos a Zippy criou uma colecção de roupa infantil sem género: prática para se movimentar e brincar, fácil de passar de irmãos para irmãs e vice-versa. Grande escândalo: a Zippy a fazer ideologia de género e marxismo cultural!
Não dá para acreditar, mas aconteceu.
As pessoas que acusam a Zippy de estar a perverter os costumes com uma linha infantil unissexo não se dão conta de que esses costumes são relativamente recentes, por um lado, e de que, por outro lado, impor cores e formatos (de enfeites para elas e de roupa prática para eles) também é uma formatação e uma violência para a individualidade das crianças.
5. Para reduzir despesas às famílias e para acabarem com as tensões do exibicionismo de marca na escola, algumas escolas alemãs decidiram aderir a colecções de vestuário escolar com peças de corte e cores diferentes, que permitem a cada aluno vestir de forma personalizada. À excepção das saias, são peças unissexo.
Um exemplo: https://bit.ly/2BdAYtU
6. As calças já não são "roupa de homem" - transformaram-se em roupa unissexo. Gostava que, do mesmo modo, um dia destes as saias também passassem a ser unissexo. Tanto mais que, pelos vistos, usar calças pode afectar a fertilidade dos homens. E ninguém diga que um homem de saias é menos homem. É ver os escoceses, é ver os punks, é ver os árabes de djellaba.
Locronan (4), ou: regresso ao futuro
Regressei a Locronan no segundo domingo de Julho, na estouvada esperança de que a Petite Troménie se realizasse como habitualmente. Ao pagar o lugar de estacionamento, as minhas ilusões caíram por terra: "este ano foi cancelado devido à covid". Espertos: não havia qualquer aviso online. O parque de estacionamento estava cheio, os restaurantes estavam cheios, as praças estavam cheias. Centenas de pessoas a comer gelados e crepes: a consumir.
Entrei num restaurante para tomar um café (e, confesso, ir à casa de banho). Junto à caixa, alguns homens conversavam alegremente com o dono do restaurante. Olharam para mim com ar de donos da casa, muito bem-dispostos. "Que bem lhe fica essa máscara!", disse um deles. Os outros concordaram e riram - o piropo em tempos de covid.
Na igreja principal dei com famílias que a passavam sem ver, numa pressa de ter estado ali. Uma miúda de sete anos aborrecia-se na espera, encostada às escadas do púlpito. Olhei para a sua cara, a meio metro do primeiro medalhão que conta a história do cristão Saint Ronan e da druida Kebenn. Que espantosa história para contar às crianças que entram naquela igreja, e ninguém a conta!
Pensei na minha máscara, que torna o meu triste francês ainda mais incompreensível, e assim consegui resistir à vontade de abrir àquela miúda a porta para o fascínio do lugar: olha, aqui, o lobo e a ovelha, olha o ar zangado da Kebenn, olha o rei Gradlon, olha a menina morta a ressuscitar da arca onde foi metida.
É bem verdade: quem não sabe é como quem não vê. Também eu, da primeira vez que fui àquela igreja, passei pelo púlpito sem ver.
16 julho 2020
Locronan (3) ou: viagem vertiginosa às origens
Encontrámos ao cimo da rua Moal uma loja que estava aberta e vazia de gente, como a igreja. Quando nos dispúnhamos a continuar o passeio, apareceu o dono, a suplicar para que entrássemos. Mesmo que não comprássemos nada, era mesmo só pela companhia. Estava farto do silêncio. Ensaiou algumas frases curtas em alemão. Nascera em Baden-Baden, na zona de ocupação francesa. Adenauer e De Gaulle tinham imposto por decreto a amizade franco-alemã - dizia ele com um brilho trocista no olhar - e o pai dele tentava pôr o decreto em prática. A Floresta Negra fervilhava de caça, mas os alemães estavam proibidos de ter armas. O pai dele ia caçar toda aquela bicharada, enchia a mala do carro e mais um atrelado, e distribuía pela população.
Sem pausa, mudou de tema para falar da história da Bretanha. Perguntei-lhe se me sabia explicar porque é que o cristianismo bretão tinha vindo do norte, por barco, em vez de vir do sul, por terra - e ele lançou-se numa viagem vertiginosa ao início do mundo, que pelos vistos tem estado desde sempre intimamente ligado ao povo bretão.
Se bem entendi, foi assim: quando o Jardim do Éden se transformou no deserto do Saara - uma alteração decorrente das oscilações do eixo da terra a cada 25 milénios, que terá acontecido ao longo de apenas 150 anos e foi praticamente contemporânea do Dilúvio -, os povos que viviam nessa região paradisíaca fugiram para o Egipto, levando consigo todos os seus saberes. É essa diáspora que está na origem da ascensão da cultura egípcia. Mais tarde esses estrangeiros tiveram de fugir, e foram para Israel. Acontece que entre eles havia uns bélicos e outros pacifistas. Os bélicos deram origem à narrativa bíblica, os pacifistas deram-se mal: os bélicos venderam-nos como escravos aos assírios. Quando o povo medo venceu os assírios, estas populações escravas foram libertadas e espalharam-se pelo mundo. Passaram pela Arménia (onde os estudiosos encontraram ligações fortes à cultura bretã) e vieram até ao Norte da Europa. A tribo Dan (preto, em bretão) instalou-se na Dinamarca; a tribo Ruz (vermelho, em bretão) ficou na Rússia; e a Gwen (branco, em bretão) veio para a Bretanha. Recentemente encontraram na Mongólia vestígios de um povo misterioso que ali se teria instalado na mesma época em que estas tribos andavam em fuga. Eram peritos no trabalho do bronze, e tinham megálitos. Bem podiam ser primos dos bigoudens, que são mongóis: têm traços asiáticos no rosto, e até a marca mongol nas costas.
Saímos da loja um pouco atordoados com esta história vertiginosa.
Tão atordoados que só alguns dias mais tarde caí em mim: como é que um povo com saber suficiente para fazer os templos do Egipto perdeu pelo caminho os seus conhecimentos, ao ponto de na Bretanha não conseguir mais do que erguer uns menires e uns dólmenes?
Locronan (2), ou: um passeio de vários séculos
À entrada de Locronan há estacionamento para quase mil carros, mas quando chegámos estava vazio. A cidadezinha de oitocentos habitantes respirava suavemente ao sol desta Primavera tão atípica para a Bretanha. Descemos pela esquerda da rua principal para ir visitar a igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. Estava aberta, e vazia de gente.
Junto à igreja há uma bela fonte, dedicada a Santo Eutrópio, padroeiro dos hospitais, com poderes para curar todas as doenças. Todas! Um santo tão poderoso só pode ser sinal da importância que esta fonte teria no tempo dos druidas. E não a perdeu: nos anos da Grande Troménie, era costume dos habitantes de Locronan mergulharem na fonte as relíquias do santo, para distribuir depois por todos essa água tornada capaz de curar qualquer maleita.
(Volta, Kebenn, porque no fundo nunca chegaste a sair desta região.)
A igreja de Nossa Senhora da Boa Nova começou a ser feita no século XV, e é composta de duas partes: um para os crentes, junto à porta principal, e outra para os frades, do lado do altar. Junto ao arco que separa as duas zonas há uma cena da descida da cruz esculpida em granito, e que pela sua dimensão exagerada para o espaço me faz suspeitar que terá sido criada para um Calvário exterior, e em algum momento deixada ali.
Quem não está ali por acaso é a imagem de Nossa Senhora da Boa Nova, do século XVI, a abrir a camisa para aleitar o filho. De um lado mãe de filho entregues à vida simples dos humanos, do outro lado o mistério teológico da trindade: pai, filho e espírito santo.
Em 1985 a igreja foi enriquecida com vitrais de Alfred Manessier. Este que mostro, sobre o altar principal, pretende representar a Virgem a abrir o seu manto para acolher os fiéis.
(Impressionante como nos habituamos depressa ao luxo - noutra altura qualquer, aquela rua estaria apinhada de gente e eu teria de me contentar com fotografias dos pormenores: o telhado de colmo contra o granito da empena, a chaminé, a placa por cima da porta...)
Na rua Moal vê-se bem o que a História deixou pelo caminho: vários portais ricos de casas, que agora pouco mais são do que ruínas. Seriam as antigas tecelagens de onde saíram as velas que abriram os mares dos séculos XV e XVI.
Ao cimo da rua Moal desembocámos num cruzamento onde havia várias lojas. Numa delas tivemos uma bela conversa com o dono, que merece um post só para si.
Continuámos o passeio: subimos parte da colina, e descemos pelo lado oposto da cidade, saboreando cada momento da tranquilidade do lugar.
Descemos para a igreja principal. As igrejas, melhor dizendo: quando a maior estava terminada, no início do século XV, fizeram uma nova, a capela do Pénity, só para o túmulo de São Ronan. Esta capela é bem mais delicada que a igreja maior e, ao contrário da primeira, conseguiu conservar a sua flecha.
Um dia hei-de investigar o que aconteceu a tantas das flechas das igrejas bretãs.
As duas igrejas são um autêntico museu de arte sacra dos últimos 600 anos. Este conjunto da "descida da cruz", por exemplo, em pedra policroma, semelhante ao que já víramos na igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. A expressividade daqueles rostos lembra as cenas da Paixão de Lucas Cranach, o velho: contemporâneo deste escultor.
Esta simpática Nossa Senhora, não sei de que século: calma, orgulhosa e autoconfiante a apresentar o seu filho ao mundo:
Sobre o santo que se segue não encontrei nenhuma informação, mas com este ar de galã deve ter contribuído bastante para fortalecer o fervor de algumas crentes:
Mais alguns detalhes disto e daquilo:
Que não se pense que os nossos avós levavam uma vida sensaborona!
- 15 euros.
- Ah, bom. Espero que valha a pena! Dois, por favor.
Riram-se todos.
Sem clientes, o dono do café tinha todo o tempo do mundo para estar connosco. Sugeriu-nos que fôssemos espreitar por cima de um muro ali perto - fomos, e descobrimos uma estátua em granito do Saint Ronan. Pareceu-me banal, mas ele tinha tanto gosto nela que às tantas será uma peça preciosíssima e secreta da terra.
Depois disse-nos que nos ia mostrar algo realmente especial. "Sabem como é, em qualquer igreja que se preze tem de haver elementos pagãos. Nós temos aqui um que é um luxo."
Seguimos pelo cemitério, contornámos a igreja, e do lado de lá, num dos cantos da torre que sustentaria a flecha, deparámo-nos com isto:
O Joachim voltou para a esplanada do café, onde entretanto se tinham juntado alguns moradores. Eu dei uma volta pelo cemitério, com as suas cruzes antigas e um belo calvário em granito, e fui ter de novo com o lojista conversador.
- Já que sabe tanto sobre a História da Bretanha, será que me pode explicar as duas sereias à entrada da igreja de Plomodiern?
- Essas não conheço, mas provavelmente é mais do mesmo: qualquer igreja bretã que se preze tem de ter algum elemento não cristão.
- E o que sabe dos quartos alugados pelos pintores em Pont-Aven, onde ainda hoje se pode pernoitar?
- Disso não sei nada. O melhor é perguntar lá. Mas veja lá como pergunta, porque a resposta mais provável é dizerem-lhe "sim, sim! É na casa da minha avó. Venha comigo!"
(Mais tarde, descobri que não era em Pont-Aven. É em Belle-Île: é possível ficar a dormir na casa onde o Monet viveu quando andou a pintar na ilha.)