26 julho 2020

ou não

Esta manhã Brest acordou em pleno verão: céu azulíssimo, sol como deve ser, tudo a preceito.
Fiquei na dúvida: será mais avisado preparar-me para ir à praia, ou tentar arranjar rapidamente um escafandro em segunda mão?
Ao pequeno-almoço chegaram as nuvens: enormes, brancas, densas. Uma hora mais tarde, toda a cidade estava na penumbra.

Se bem entendo os sinais que me fazem: provavelmente vai ser uma tarde fantástica de praia.
Ou não.


25 julho 2020

imensíssimo mar




Hiroshi Sugimoto, 'Atlântico Norte, Cape Breton', 1996.

Encontrei esta imagem no mural de facebook da artista Bia Wouk, que a descreve assim:

"A série de mares de Sugimoto é metafísica, uma destilação da paisagem, uma exploração dos limites físicos e espirituais. O tempo de exposição de cada foto é de muitas horas, captando todas as mudanças sutis no mar e na luz durante um dia e uma noite. O resultado é uma meditação zen."


Para mim, o resultado é um buraco negro: impossível resistir.
(Ah, se a Ikea se lembrasse de vender isto imprimido sobre uma tela enorme!)
(Oh, acabei de descobrir que foi leiloado pela Christie's por 150 mil dólares. Suponho que já sei porque é que a Ikea não se lembrará nunca de vender esta imagem.)

E eis que descubro que outros seguiram o exemplo de Hiroshi Sugimoto, e fizeram trabalhos também muito apelativos. Por exemplo, 
Daniel Fuller // Meditation on Blue. 



Uma pessoa vê isto e começa a sonhar: "ah, se se arranjasse uma janela em frente ao mar..." e "ah, se eu conseguisse aprender a fotografar assim!"

Sendo que "aprender a fotografar assim", no meu caso, é ainda mais difícil que arranjar uma casa com uma boa janela para o mar. 

Portanto: será que alguém me arranja o contacto da pessoa responsável pela escolha dos produtos de decoração da Ikea? Com whatsapp, faz favor, para não gastar o meu dinheiro todo a ligar para a Suécia.


a Bretanha (des)igual a si mesma

Na noite passada dormi com a janela aberta, e antes de adormecer fiquei a olhar para as nuvens densas que passavam cheias de pressa. Era estranho, porque não havia vento nenhum mas elas passavam baixas e velozes. 

Hoje amanheceu cinzento. "Óptimas notícias!", pensei eu, "daqui a nada muda, vai ser um belo dia" - e pus um vestido leve para ir à feira semanal de Saint Renan (o meu novo vício aos sábados) e seguir depois para dar um mergulho nas águas verde-paraíso do Aber Benoît, e apanhar uns bigorneaux para o jantar. 

Como previsto, daí a nada o tempo mudou. Sim, mudou - mas para pior. Quando saí de Saint Renan, a caminho da praia Sainte Marguerite, a chuva desbragou-se toda, como se a Bretanha se quisesse desforrar num dia só de todas as semanas de verão que já nos deu. 

Era tão forte que perdi até a vontade de ir visitar algumas igrejas que tenho na minha lista.
"Não, nem pensar. Este tempo pede chá e gâteau breton, e o conforto de casa", decidi.
Dei meia volta e regressei a Brest. 

Quando estacionei o carro em frente de casa, parou de chover. E quando comecei a fazer o chá, o sol abriu a prometer uma linda tarde. 

Alguém arranje de mandar o São Pedro bretão a um psi, que este comportamento não é normal. 

 

24 julho 2020

a turista acidental



Quando fiz as malas para vir para a Bretanha tive o cuidado de incluir poncho, impermeável e galochas. Mas o aquecimento climático (ou então deu a senilidade precoce do São Pedro) trocou-me as voltas. Durante o confinamento, raramente choveu. E mesmo depois, tem dias. 

Isso mesmo: tem dias. Eu é que me esqueço - e esqueço-me sempre de levar o impermeável. 

Hoje, por exemplo: vesti-me de verão, e pus-me a caminho de Pont-Aven. Depois do almoço - justamente quando queria dar um passeio pelo Bois d'Amour até à capela onde o Gauguin encontrou o seu "Cristo amarelo" - começou a chover. Ora, fazer uma caminhada de vinte minutos à chuva não tem graça nenhuma, pelo que entrei numa loja de turistas para comprar um impermeável bretão.
De qualquer modo já andava há meses a namorá-los, será hoje? será amanhã? - foi hoje. 

Escolhi depressa, mas demorei um bocadinho mais a pagar, porque o leitor de cartões estava esquisito. Quando saí da loja, já tinha parado de chover. 

É a Bretanha...

Em todo o caso: já cá canta um impermeável. Que isto de ir à Bretanha e não comprar um impermeável é como ir a Roma e... e... não comprar um daqueles globos com neve a cair no Coliseu. Ou outra porcaria qualquer para turistas.


23 julho 2020

P.E.I.D.A.

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Encontrei este vídeo no mural de facebook do Vasco Pimentel, com um comentário a dizer assim:

"Ergue-ma até dizer chega."

A gente ri-se muito e partilha, claro. Mas não consigo evitar um certo sabor amargo: é óbvio que eles escolheram este nome para a gente se rir muito e partilhar. Hoje em dia, em termos eleitorais, andar nas bocas do mundo é o plano B para quem não consegue ter participação num programa de televisão, ou até um programa seu.

Beeem, mas já que me ri e partilhei, partilho mais algumas piadinhas:

 

Do Paulo Pinto, no facebook:

"a moda dos partidos-interjeição parece ter pegado. Primeiro foi o populista Chega! (que integrava a coligação Basta!) e agora o nacionalista Ergue-te!. Aguardo ansiosamente pelo radical Toma!, pelo anarquista Foda-se!, pelo europeísta Yess! ou pelo pacifista Tásse!"

 

 

Também havia alguém que dizia:

"Ergue-te!

o partido do Comprimido Azul"


 

E o Jovem Conservador de Direita, com a habitual precisão cirúrgica:

"O país soube ontem que o PNR passou a chamar-se Ergue-te. Fico surpreendido, pensei que o PNR já nem existia; pensei que os chegófilos os tinham afogado como vulgares migrantes do Mediterrâneo. E se era para afogar migrantes, até o Dr. Pinto-Coelho concordaria. É uma excelente notícia, como quando sabemos todos os anos que o Dr. Vasco Granja morreu, mas permite-nos recordar o Dr. Vasco Granja.

Este rebranding da União Nacional, outrora PNR, demonstra progresso. Tenho dúvidas é que as 17 pessoas que ainda apoiavam o Dr. Pinto-Coelho aceitem. O Dr. Pinto-Coelho deve ter preparado uma sessão de slides e acetatos e terá dito: "Nós éramos a Kas Cola da extrema-direita e fomos ultrapassados pela Spur Cola. Temos de nos adaptar e ser mais como a Spur Cola. Aliás, nós nem somos como eles, eles é que são como nós, mas mais eficazes. Por isso, temos de nos identificar como outra coisa, apesar de termos nascido uma coisa. Ergue-te!" E ergueram-se todos, apesar da idade.

É claro que há quem diga que o nome do partido parece um anúncio de disfunção eréctil. E de certa forma é. Se pensarmos na democracia como um útero à espera de carregar no ventre partidos políticos que a inseminam, o PNR sempre foi o pénis flácido porque não consegue excitar-se com democracia. Fica ali, como um apito, feito de pano, a fazer de conta que quer muito, mas acaba por se retrair e parecer uma pequena vagininha, uma portinha USB, penetrada por outros partidos que disfarçam melhor.

O travestismo pode salvar o PNR. E pode salvar-nos da extrema-direita (que não existe). Quantos mais partidos houver, mais polarizado fica o voto. Se tivermos o Chega, o Ergue-te e, em breve, numa última tentativa de sobrevivência, o CDS, o voto fica polarizado e haverá menos hipótese de elegerem deputados. É claro que o CDS terá de mudar de nome também. Por exemplo, poderá ser baptizado como o Pilão da Democracia, numa alusão a um utensílio de cozinha que serve para esmagar ingredientes. É claro que tem também uma alusão a masculinidade, tão presente no Dr. Nuno Melo e no Dr. Chicão. Acima de tudo, ficam lado a lado com outro utensílio de cozinha que todos eles amam."

 

 

22 julho 2020

QI

Apareceu-me no facebook um teste para aferir o meu QI. Durava 20 minutos, mas como era ao fim do dia, e eu até tenho uma certa curiosidade por este tipo de perguntas, decidi lançar-me a ele. Consegui responder a todas as questões menos uma. Ainda tinha 7 minutos, mas não me apeteceu pensar para tentar responder à última - tanto mais que aquilo era apenas mais uma gracinha no facebook. Quando fui ver o resultado, descobri que tinha de pagar quase 20 dólares para receber um certificado. Sem isso, fico sem saber o meu QI.

Só então fui ler as letras pequeninas: "patrocinado".
De modo que, sim, fiquei a saber o meu QI: 50, no máximo...


21 julho 2020

"operação valkíria"

20 de Julho de 1944 - Operação Valkíria Confesso que não sabia muito sobre a #Operação_Valkíria. Sabia que houve boa gente ligada ao grupo (falei disso há tempos aqui) e partia sumariamente do princípio que qualquer tentativa de eliminar o Hitler era positiva. Por causa do tema do dia fui ler a wikipedia alemã, e nesse artigo o que mais me chamou a atenção foi, por um lado, os resultados nefastos de certas tomadas de posição por parte dos outros países, e, por outro lado, a subjectividade na análise deste caso. Vou sumariar e traduzir algumas partes desse artigo:
Desde a subida de Hitler ao poder que houve tensões entre o novo regime e grupos conservadores das chefias do Exército, que eram mais ou menos resolvidas pelo princípio da sujeição militar ao primado da Política. Em Setembro de 1938, um grupo de militares estava a preparar um golpe de Estado como resposta à ordem de Hitler de invadir a Checoslováquia para se apoderar da região dos sudetas. Mas os planos desfizeram-se quando Chamberlain foi a Munique oferecer a Hitler a Sudetenland de mão beijada. O povo alemão, que se opunha a uma guerra, encheu-se de entusiasmo e regozijo pelo poder do seu Führer. Os militares perderam assim a base de apoio da qual necessitavam para realizar o golpe de Estado com sucesso. Antes da invasão da Polónia, um membro da inteligência militar alemã foi à Grã-Bretanha pedir que enviassem uma esquadra para Danzig, para servir de ameaça de uma guerra com duas frentes, de modo a travar os planos de Hitler, mas não foi ouvido. Os sucessos na invasão da Polónia e da França aumentaram ainda mais o entusiasmo, tanto ao nível do povo como das elites – nomeadamente em Stauffenberg. Este oficial tinha uma posição ambígua: começou por aprovar com entusiasmo a recusa do tratado de Versalhes mas recusou-se a entrar para o partido nazi; afastou-se do regime após os ataques aos judeus de 9 e 10 de Novembro de 1938, mas após o rápido sucesso na invasão da Polónia e da França exclamou: “quanta mudança em tão pouco tempo!” A sua ideia era vencer a guerra e depois tratar da “peste castanha”, mas mudou radicalmente de opinião ao ver os massacres de civis na frente Leste, o assassínio de três milhões de soldados soviéticos prisioneiros de guerra, e as execuções de centenas de milhares de judeus.
Em Junho de 1942, quando o exército alemão começou a dar os primeiros sinais de fraqueza na frente Leste, o jurista Adam von Trott zu Solz enviou um pedido de ajuda ao governo britânico, mas não foi levado a sério. Grupos ligados a dois oficiais provenientes de famílias nobres, Tresckow e Stauffenberg, começaram também a preparar atentados a partir de meados de 1942. Nenhuma das tentativas teve sucesso. Até ao verão de 1943 foi Tresckow quem dirigiu os atentados; a partir de Setembro de 1943, Stauffenberg tomou a dianteira. Duas citações:
„Chegou a hora de fazer alguma coisa. Mas quem ousar fazê-lo tem de ter consciência de que vai entrar na História alemã como traidor. No entanto, se não o fizer, tornar-se-ia um traidor da sua própria consciência.”
“Não conseguiria olhar de frente para as mulheres e os filhos dos caídos se não fizesse tudo ao meu alcance para impedir este sacrifício sem sentido de tantas vidas humanas.”
Depois do desembarque na Normandia, Stauffenberg pergunta a Tresckow se ainda é necessário fazer um atentado. Resposta deste: „Temos de fazer um atentado, custe o que custar. Mesmo que não resulte, é preciso fazer alguma coisa em Berlim. Já não se trata do objectivo prático, mas de mostrar ao mundo e à História que a resistência alemã arriscou a própria vida para a jogada decisiva. Comparado com isto, tudo o resto é indiferente.”
A descrição dos planos e a análise dos motivos do fracasso são muito interessantes, mas vou passar directamente à questão seguinte: como é que este movimento entrou na História.
A propaganda nazi acusou os autores do atentado de serem “cobardes traidores da pátria”, que escolheram dar uma facada nas costas da Alemanha num momento extremamente difícil para o país. Esta versão ainda tem seguidores nos nossos dias.
Como motivação comum para acção deste grupo (para lá dos princípios éticos ou da tomada de consciência perante as atrocidades), os historiadores contemporâneos apontam o “interesse nacional”. O diletantismo de Hitler estava a conduzir a Alemanha para uma tragédia cada vez maior, e importava agir para limitar a dimensão do desastre. O “interesse nacional” é uma motivação particularmente óbvia para as acções de 1938 a 1940.
Historiadores de orientação marxista vêem neste movimento de resistência uma tentativa, por parte dos aristocratas „oficiais de Hitler“, para evitar a ocupação da Alemanha, a perda das suas próprias propriedades no Leste e a perda dos privilégios da casta de oficiais. Para estes historiadores, a verdadeira resistência foi feita pela KPD e pela Rote Kapelle. Outros historiadores dão mais importância a Georg Elser e ao grupo Weiße Rose, pelo seu carácter democrático, do que à conspiração do 20 de Julho. Stauffenberg seria monárquico, e portanto não era um democrata. Joachim Fest e outros historiadores defendem que Stauffenberg era monárquico (e portanto, não republicano), mas que era com certeza um democrata.
Certo é que do grupo faziam também parte alguns nazis radicais, como:
- Eduard Wagner, co-responsável pelo assassínio de milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, e que temia consequências quando o Exército Vermelho chegasse à Alemanha;
- Arthur Nebe, comandante dos grupos de comando B (os que iam atrás do exército na frente e atacavam as aldeias de judeus – ou outras – destruindo e massacrando) e responsável pelo genocídio dos Roma e Sinti (Porajmos);
- Wolf-Heinrich Graf von Helldorff, nazi da primeira hora e que com um currículo de ataque aos judeus que já vinha de antes de 1933.
Não obstante, entre os outros membros do grupo houve vinte que assumiram perante o tribunal nazi que tinham agido para impedir o crime do Holocausto, e não cederam nessa posição nem mesmo para tentar salvar a vida. Os historiadores admitem que tenha havido um processo de tomada de consciência que os levou de uma adesão inicial ao regime a um repúdio total. Como Tresckow disse, ao despedir-se de um amigo: “Se Deus prometeu uma vez a Abraão que não destruiria Sodoma se nela encontrasse dez justos, espero que, devido a nós, não destrua a Alemanha. [...] O valor moral de um homem só começa quando ele está preparado para dar a vida por aquilo em que acredita.”
Reacções internacionais:
O atentado foi visto com um certo desprezo, uma vez que o inimigo era considerado moralmente inferior no seu conjunto. Churchill comentaria que se tratava de "lutas de extermínio entre as elites do Terceiro Reich" e que "as principais personalidades do Reich alemão estão a matar-se umas às outras, ou procuram matar-se umas às outras; mas os seus dias estão contados". Os EUA acompanhavam Churchill nessa análise. O NYT escreveu que se tratava de um ajuste de contas no contexto de um obscuro mundo de criminosos, e que este não era o comportamento que seria de esperar de um corpo de oficiais de um Estado civilizado. Num jornal militar soviético lia-se que a Alemanha não seria vencida por oficiais rebeldes, mas sim pelo Exército Vermelho e seus aliados. “Os nossos exércitos são mais rápidos que a consciência dos 'Fritzen“.
Já a alemã Marion Gräfin Dänhoff, jornalista e editora do semanário Die Zeit, apontou para o „muro de silêncio“ que o estrangeiro ergueu, apesar dos pedidos de apoio por parte de alguns membros da resistência, e critica o modo como esses países aceitaram a versão de Hitler, vendo no atentado do 20 de Junho um acto de oficiais ambiciosos.
A Alemanha depois de 1945:
Tanto na RFA como na RDA temia-se o surgimento de um nova ficção como a do „punhal nas costas“ que surgiu após a primeira guerra mundial. As populações dos dois países estavam ainda muito marcadas pela versão da propaganda nazi.
Na RFA estes oficiais começaram a ganhar boa fama a partir de meados dos anos 50, com o processo Remer (um oficial que foi levado a tribunal por ter chamado traidores aos autores do atentado – este processo acabou por confrontar a Alemanha consigo própria: para exigir respeito pelos autores do atentado era preciso que um tribunal alemão assumisse o carácter de Unrechtsstaat da Alemanha nazi). No entanto, a população evitava o tema. Segundo o historiador Joachim Fest, parte desse repúdio advinha do facto de os nazis ainda estarem integrados na sociedade até aos mais altos cargos, por um lado, e de, por outro lado, os jovens da revolução de 68 terem dificuldade em aceitar dar tanta importância à resistência ao fascismo com origem num grupo de nobres e generais, fascistas e criminosos de guerra, em vez de de operários, camponeses, mulheres, prisioneiros e desertores. A crescente liberdade dos meios de comunicação contribuiu para melhorar a fama deste grupo de resistentes, e o simples facto de terem existido permitiu à Alemanha libertar-se da tese da culpa colectiva (expresso por exemplo num discurso pseudo-cristão no qual se comparam os membros deste grupo que pagaram com a sua vida a uma espécie de “cordeiro de Deus” que redimiria os alemães do seu pecado). Ou como Tresckow dissera uns anos antes: “se houver 10 justos em Sodoma...”
Os partidos políticos mantiveram uma posição dúbia em relação ao atentado, porque não queriam afastar nenhum possível eleitor, nem sequer os antigos simpatizantes dos nazis. Em 1946, Adenauer manifestou-se radicalmente contra a atribuição de uma pensão às viúvas dos condenados pelo atentado. Mas oito anos mais tarde anunciava num discurso na rádio: "Quem, por amor ao povo alemão, se comprometeu a quebrar a tirania, como as vítimas de 20 de Julho, é digno da estima e da veneração de todos".
Na RDA, a narrativa era bem diferente: os autores do atentado eram „agentes reaccionários do imperialismo americano“. A conspiração teria sido „na sua totalidade e na sua essência um empreendimento radicalmente reaccionário para salvar o imperialismo alemão e o poder dos monopólios antes de serem esmagados". Mais tarde, no sentido da teoria marxista da história, foram passados para a categoria de "idiotas úteis", ou seja, como elementos originalmente inimigos da classe trabalhadora que tinham, contudo, apoiado involuntariamente o exército soviético a vencer na sua luta contra o fascismo. Por volta de 1980, as chefias do partido único SED recordaram a sua tradição prussiana e fizeram uma avaliação cautelosamente positiva dos participantes do dia 20 de Julho. No filme “ Libertação”, que foi produzido sob a direcção da União Soviética de 1969 a 1972, o atentado ocupa bastante espaço e é apresentado de uma forma claramente positiva.
Hoje em dia, em toda a Alemanha é reconhecido o mérito destes resistentes.

"unissexo" (3)

Um tema fracturante dos nossos dias são as casas de banho públicas #unissexo.
Habituados a um mundo binário - menino ou menina, homem ou mulher, azul ou cor-de-rosa - não nos apercebemos do sofrimento daqueles que não cabem nestas categorias.

Há tempos traduzi no meu blogue um texto que me sensibilizou para esta questão. Se quiserem ler, está aqui.

Em Portugal já vi, curiosamente, casas de banho unissexo em vários centros de encontros da Igreja Católica. Parece que o futuro, além de possível, é tranquilo.

Já em França tenho visto várias casas de banho públicas que separam homem/mulher, mas têm os urinóis na parte comum, onde estão também os lavatórios.

Ora bem: urinóis na parte comum, antes de separar por sexos, é mais ou menos como usar máscara contra o coronavírus e deixar o nariz de fora...


20 julho 2020

carne para canhão

Se bem entendi: Artur Mesquita Guimarães, pai de seis filhos, escolheu usar dois deles para fazer um braço de ferro com o Ministério da Educação. O pai entende que a matéria dada na nova disciplina "Cidadania e Desenvolvimento" (ver os temas no gráfico acima) deve ser do exclusivo foro feudo dos pais. Em vez de usar os mecanismos que o Estado de Direito põe à disposição de todos (exposição, pedido de dispensa a determinados temas, pedido de providência cautelar, processo em tribunal), simplesmente não deixou que os seus filhos frequentassem as aulas dessa disciplina, apesar de conhecer perfeitamente as consequências dessa decisão (que é: reprovar o ano por faltas). Entre uma atitude de cidadania e uma atitude prepotente de atroz primarismo, escolheu a segunda: "os filhos são meus, faço com eles o que muito bem me apetecer". Belo exemplo que dá aos filhos... - e logo aquele pai que, ironicamente, reclama para si o papel de educador absoluto, sem interferências do Estado.
Procurei na net detalhes que justificassem a posição de Artur Mesquita Guimarães. Não encontrei nenhuma informação sobre falha concreta da escola ou dos professores dessa disciplina. Encontrei o que parece ser um documento - infelizmente truncado - da Assembleia da República, de 14.4.2009. Aparentemente, o problema de Artur Mesquita Guimarães, já em 2009, era a inclusão da Educação Sexual no currículo escolar. Não uma orientação em particular, mas a Educação Sexual, tout court. Que entenderá ele por "Educação Sexual"? Que tipo de perversidades e perigos intui ele sob esse nome? E que pouca confiança terá nas suas capacidades como educador, para temer que meia dúzia de aulas na escola possam deitar por terra todos os princípios que laboriosamente inculca aos filhos? Ao ser agora confrontado com as consequências das escolhas que fez, e que conhecia perfeitamente quando tomou a decisão, Artur Mesquita Guimarães escreveu uma Carta Aberta que foi publicada - oh, surpresa! - no site "Notícias Viriato" (classificado como "meio de desinformação" na lista de vigilância do MediaLab do ISCTE). Partilho-a no fim deste post: é a segunda fase da sua estratégia no braço de ferro que decidiu travar com o Estado português. Na terceira fase da sua estratégia está a contar connosco, muito bem manipulados por ele: uma turba enfurecida que se erga contra aquilo a que ele chama o "totalitarismo" do Estado. Já arranjou uma amiga para publicar no Observador um artigo a seu favor, e que é particularmente elucidativo na parte em que usa a escola pública da Califórnia como exemplo: "Até nas outras disciplinas, como ciência ou filosofia, o professor tinha cuidado para não interferir com a liberdade de pensamento individual dos alunos e respectivas famílias". Sim, leram bem: professores de ciências que têm o cuidado de ensinar ciência sem interferir com a liberdade de pensamento individual! Infelizmente, isto não é inventado. Eu própria vi, em 2001, numa reunião de pais em San Francisco: a professora primária da minha filha a gaguejar para explicar porque é que pôs um poster sobre a evolução das espécies na parede da sala de ciências daquela escola. É caso para dizer: "quem tem amigas assim, não precisa de inimigos". O texto de defesa da posição deste pai, no Observador, já aponta para o que pode acontecer a seguir, se o Ministério da Educação ceder neste braço de ferro. De hoje para amanhã, os filhos dos terraplanistas podem deixar de frequentar as aulas de Geografia, os filhos dos anti-vax podem deixar de frequentar as aulas de Ciências, os filhos dos apologistas do Estado Novo podem deixar de frequentar as aulas de História.
Mas foquemo-nos no que é realmente importante: a situação destes dois menores, encurralados entre as regras do Estado e a prepotência do pai. O que sentiriam todas as vezes que faltaram às aulas daquela disciplina? O que sentiram quando a escola avisou os pais de que os filhos iam perder o ano por faltas? O que estão a sentir agora que foram confrontados com as consequências da decisão dos pais, e reprovaram por excesso de faltas injustificadas? Como será viver na situação de refém dos próprios pais, que abusaram do seu poder de educadores e puseram em causa o bem-estar dos filhos, servindo-se deles como alavanca para aumentar os efeitos mediáticos da sua guerra ideológica contra o Estado? Alguém informe esse pai que numa sociedade democrática se pode debater tudo, mas não se pode fazer tudo. Que "objecção de consciência" é um conceito muito sério, e não se aplica a birras como este espernear descontrolado para impor que só os pais tenham o direito de falar de certos temas com os filhos. Alguém lhes diga que os pais não são proprietários dos filhos. Alguém (nomeadamente os serviços de protecção de menores) explique a essa família que o primeiro dever dos pais é proteger os filhos, o exacto contrário de se servir deles como carne para o canhão das suas guerras ideológicas.
(Ah, sim, quase me esquecia: o perigo do "marxismo cultural". Essa questão resolve-se facilmente: apresentem casos concretos de algo que foi ensinado pelos professores desta disciplina e é contrário aos valores básicos da nossa sociedade.)
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Carta Aberta a Secretário de Estado da Educação
Exmo. Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação
Prof. Doutor João Costa
Pela presente venho apresentar-lhe os meus sinceros agradecimentos!
Eu sou aquele pai e, naturalmente, também encarregado de educação, que não autoriza a participação dos filhos na disciplina, recentemente criada, de “Cidadania e Desenvolvimento (CD)”.
Não à revelia, tendo em conta que disso demos conhecimento à Escola e não só - grande parte da troca de correspondência com a escola foi com conhecimento do Sr. Ministro da Educação e da DGEstE – mas oportuna e atempadamente, desde que a disciplina foi introduzida.
Nada temos a temer
Acontece que, na semana passada, mais propriamente no dia 27 de Fevereiro, foi-me entregue, a mim e à minha esposa, em mão própria, com direito a “Certidão de Notificação”, um Despacho subscrito por V. Exa. a 16 de Janeiro de 2020, acompanhado de outra documentação com ele relacionada, da IGEC e da DGEstE, pelo crime de lesa majestade que eu e a minha esposa teríamos cometido ao não deixar os nossos filhos participar na disciplina acima referida.
Estou-lhe agradecido, particularmente, porque esta documentação retrata inequivocamente a intenção ditatorial do Estado em, abusivamente, ocupar/invadir o espaço educativo consagrado na Constituição da República Portuguesa aos PAIS. É uma espécie de tique que já se arrasta de há uns anos a esta parte, embora agora com um avanço significativo na criação da recente disciplina, CD, elevada ao estatuto de curricular (!).
É de estranhar a falta de cuidado nas medidas preconizadas a aplicar aos meus filhos - retrocederem de ano a) e aí ficarem retidos, até que os pais decidam deixar que participem em CD - contrariando a apregoada sensibilidade do Sr. Ministro da Educação quanto à discriminação dos jovens que por qualquer motivo (coitadinhos) fiquem retidos no ano lectivo. Parafraseando o Fernando Pessa: “E esta, hein?!”.
Curiosamente, na documentação que me/nos foi apresentada, em jeito de conclusão, refere-se ainda que urge legislar no sentido de eliminar totalmente a acção dos pais junto da escola, naquilo que contraria a intenção educativa do Estado sobre os nossos filhos. Parece que ainda há por ali uma brecha, particularmente, na obediência que os filhos devem aos pais e nas sanções a aplicar aos pais que não alinhem com o sistema. Profundamente lamentável!
Recentemente alguém disse: “Filhos do Estado, NÃO!” – E EU SUBSCREVO.
Pois bem, Exmo. Senhor Secretário de Estado, desde já deve ficar a saber que, pelas obrigações e direitos que me competem enquanto pai, estarei à altura das minhas responsabilidades - pelo bem dos meus filhos, pelos direitos dos pais e pela liberdade das famílias.
Creia-me verdadeiramente agradecido.
Brufe VNF, 01 de Março de 2020
Artur Mesquita Guimarães
CC 6592742 7ZY4
Obs.: esta carta poderia ser fechada, mas optei por que fosse aberta porque certamente dá conta do grito silencioso de muitos pais que, por medo e/ou por ameaças, ficam inibidos de exercer a sua vontade em liberdade, junto da escola dos seus filhos, no que se refere a este assunto.
a) Ambos os meus filhos obtiveram a média de 5 valores no ano transacto e, no registo de avaliação do 3º período, em apreciação global de cada um pode ler-se: “aluno empenhado, interessado e responsável” e “aluno muito interessado, empenhado e participativo. É bastante responsável”


"unissexo" (2)

Partilho o post da Ana Martins, uma das colegas da Enciclopédia Ilustrada:


A roupa #unissexo surge nos EUA nos finais dos anos 60. Estava na moda a ideia da juventude rebelde que quebra padrões - e nada mais jovem e mais rebelde que quebrar as barreiras de idade, género e classe social. Juntando a isto as roupas que dois jovens actores, Dean e Brando, usavam no grande ecrã na década anterior, assim surgiram as duas primeiras peças unissexo, as T-shirts e os jeans.
Todo um novo conceito de liberdade estava aqui implícito. "No sentido óbvio, unissexo significava libertação do género, mas, mais importante, a sua associação com o futuro - ao rejeitar as hierarquias tradicionais e as atitudes antiquadas - fez dele uma importante força motriz da moda".
Um dos designers que mais promoveu a noção de unissexo, querendo retirar a noção de vergonha e de sexualização do corpo humano que, segundo ele, tirava o foco do essencial, o humano que o habitava, (não há como não gostar deste homem!), foi Rudi Gernreich, um jovem judeu austríaco que fugiu com a mãe para L.A. no início da II GG.
Uma crítica de moda escreveu que Gernreich "tinha dois objectivos para os seus projectos: um era criar roupa moderna 'para o século 20 e além' e o outro tornar-se 'um comentarista social, que apenas passou a trabalhar no meio de roupas'. Bom, no primeiro falhou redondamente. Melhor, falhámos nós enquanto sociedade: já estivemos lá, já estivemos no caminho certo, mas decidimos voltar bem atrás no caminho e escolher a via da diferenciação, o que alegremente nos levou a estereótipos de género que hoje cultuamos (como somos burros!!!)
Foto: Outra das (muitas) inovações dos anos 60 foi o futurismo, e como se imaginava a evolução do Homem depois da conquista da Lua. Os modelos unissexo de "Espaço 1999" foram criação de Gernreich.


"unissexo" (1)

Alguns apontamentos sobre vestuário #unissexo:

1. Na época em que eu era adolescente, o hábito de usar roupa #unissexo deu imenso jeito aos meus pais: com cinco filhos entremeados rapaz/rapariga, a roupa passava directamente de uns para outros sem maiores apertos da carteira: calças da ganga e de bombazine, t-shirts e camisolas, camisas velhas do pai, kispos - assunto resolvido. 
A roupa servia apenas para vestir. Não tinha exibições parolas de marcas, não era statement de nada. E aparentemente os adolescentes não precisavam de se escorar na roupa para descobrirem qual era o seu género.

1 bis. Por causa da última frase lembrei-me daquela anedota dos bebés na maternidade:
- Tu és menino ou menina?
- Eu sou menina. E tu?
O outro levanta o cobertor, olha para baixo, e diz:
- Sou menino.
- Como é que sabes?
- Tenho meias azuis.

2. Não vai há muitas décadas, as crianças vestiam-se todas de igual até determinada idade. Nas fotografias antigas não dá para ver, naquela ranchada de crianças de caracóis e vestido, quais são os rapazes da família. O #unissexo das crianças de antigamente era mais feminino ("feminino" para os critérios de hoje)

3. Vá-se lá saber como, em algum momento começou a ser de novo importantíssimo separar a roupa em termos de menino e de menina. O estilo "decorativo" instalou-se na secção da roupa para meninas, e o estilo "aventura e acção"na secção dos meninos. Nos EUA, então, o fenómeno é avassalador: as diferenças chegam ao ponto de, nos palcos das festas dos infantários e das escolas primárias, as meninas estarem todas vestidas de bonecas pirosas, com sapatos de verniz ou quejandos, e os rapazes estarem em estilo "tá-se bem" e com sapatos de desporto.
O vídeo que partilho mostra uma miúda a queixar-se do sexismo contido nessa diferença de vestuário: "os rapazes têm t-shirts a dizer "think outside the box", e nós temos t-shirts a dizer "Hey". Qual é a parte de Hey que é inspiradora?"

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Não sei - não sei mesmo - mas admito que esta separação crescente seja resultado dos interesses do mercado: criar produtos diferentes e tendências novas para as famílias comprarem cada vez mais. E não é apenas a roupa: os quartos das crianças também têm linhas para o menino (camas em forma de carro ou de barco, papel de parede com riscas azuis, etc.) e linhas para a menina (se vos falasse dos quartos de menina que vi em famílias americanas... A perversão total: móveis de plástico a imitar a linha de móveis da Barbie, como se a menina que cresce naquele quarto fosse ela própria a boneca de formas inspiradas em fantasias pornográficas).

A perversão vai, obviamente, muito além do mundo das crianças e das roupas. Há alguns anos a Bic criou uma esferográfica para mulheres, "bic for her" - igual à esferográfica unissexo, mas um pouco mais fina e com um aspecto "feminino" e, claro, mais cara. Os comentários que os clientes da Amazon fizeram a essa produto foram um excelente momento de humor.


4. Há tempos a Zippy criou uma colecção de roupa infantil sem género: prática para se movimentar e brincar, fácil de passar de irmãos para irmãs e vice-versa. Grande escândalo: a Zippy a fazer ideologia de género e marxismo cultural!
Não dá para acreditar, mas aconteceu.
As pessoas que acusam a Zippy de estar a perverter os costumes com uma linha infantil unissexo não se dão conta de que esses costumes são relativamente recentes, por um lado, e de que, por outro lado, impor cores e formatos (de enfeites para elas e de roupa prática para eles) também é uma formatação e uma violência para a individualidade das crianças.

5. Para reduzir despesas às famílias e para acabarem com as tensões do exibicionismo de marca na escola, algumas escolas alemãs decidiram aderir a colecções de vestuário escolar com peças de corte e cores diferentes, que permitem a cada aluno vestir de forma personalizada. À excepção das saias, são peças unissexo.
Um exemplo: https://bit.ly/2BdAYtU

6. As calças já não são "roupa de homem" - transformaram-se em roupa unissexo. Gostava que, do mesmo modo, um dia destes as saias também passassem a ser unissexo. Tanto mais que, pelos vistos, usar calças pode afectar a fertilidade dos homens. E ninguém diga que um homem de saias é menos homem. É ver os escoceses, é ver os punks, é ver os árabes de djellaba. 


Locronan (4), ou: regresso ao futuro



Regressei a Locronan no segundo domingo de Julho, na estouvada esperança de que a Petite Troménie se realizasse como habitualmente. Ao pagar o lugar de estacionamento, as minhas ilusões caíram por terra: "este ano foi cancelado devido à covid". Espertos: não havia qualquer aviso online. O parque de estacionamento estava cheio, os restaurantes estavam cheios, as praças estavam cheias. Centenas de pessoas a comer gelados e crepes: a consumir.

Entrei num restaurante para tomar um café (e, confesso, ir à casa de banho). Junto à caixa, alguns homens conversavam alegremente com o dono do restaurante. Olharam para mim com ar de donos da casa, muito bem-dispostos. "Que bem lhe fica essa máscara!", disse um deles. Os outros concordaram e riram - o piropo em tempos de covid.

Na igreja principal dei com famílias que a passavam sem ver, numa pressa de ter estado ali. Uma miúda de sete anos aborrecia-se na espera, encostada às escadas do púlpito. Olhei para a sua cara, a meio metro do primeiro medalhão que conta a história do cristão Saint Ronan e da druida Kebenn. Que espantosa história para contar às crianças que entram naquela igreja, e ninguém a conta!

Pensei na minha máscara, que torna o meu triste francês ainda mais incompreensível, e assim consegui resistir à vontade de abrir àquela miúda a porta para o fascínio do lugar: olha, aqui, o lobo e a ovelha, olha o ar zangado da Kebenn, olha o rei Gradlon, olha a menina morta a ressuscitar da arca onde foi metida.

É bem verdade: quem não sabe é como quem não vê. Também eu, da primeira vez que fui àquela igreja, passei pelo púlpito sem ver.




16 julho 2020

Locronan (3) ou: viagem vertiginosa às origens



Encontrámos ao cimo da rua Moal uma loja que estava aberta e vazia de gente, como a igreja. Quando nos dispúnhamos a continuar o passeio, apareceu o dono, a suplicar para que entrássemos. Mesmo que não comprássemos nada, era mesmo só pela companhia. Estava farto do silêncio. Ensaiou algumas frases curtas em alemão. Nascera em Baden-Baden, na zona de ocupação francesa. Adenauer e De Gaulle tinham imposto por decreto a amizade franco-alemã - dizia ele com um brilho trocista no olhar - e o pai dele tentava pôr o decreto em prática. A Floresta Negra fervilhava de caça, mas os alemães estavam proibidos de ter armas. O pai dele ia caçar toda aquela bicharada, enchia a mala do carro e mais um atrelado, e distribuía pela população.

- Que resta dessa amizade decretada?, perguntou. A Merkel não tem visão, gere o seu país e o mundo com mentalidade de "mãe de família". Em lado nenhum se vêem políticos com capacidade para "decretar o futuro". 

Sem pausa, mudou de tema para falar da história da Bretanha. Perguntei-lhe se me sabia explicar porque é que o cristianismo bretão tinha vindo do norte, por barco, em vez de vir do sul, por terra - e ele lançou-se numa viagem vertiginosa ao início do mundo, que pelos vistos tem estado desde sempre intimamente ligado ao povo bretão.

Se bem entendi, foi assim: quando o Jardim do Éden se transformou no deserto do Saara - uma alteração decorrente das oscilações do eixo da terra a cada 25 milénios, que terá acontecido ao longo de apenas 150 anos e foi praticamente contemporânea do Dilúvio -, os povos que viviam nessa região paradisíaca fugiram para o Egipto, levando consigo todos os seus saberes. É essa diáspora que está na origem da ascensão da cultura egípcia. Mais tarde esses estrangeiros tiveram de fugir, e foram para Israel. Acontece que entre eles havia uns bélicos e outros pacifistas. Os bélicos deram origem à narrativa bíblica, os pacifistas deram-se mal: os bélicos venderam-nos como escravos aos assírios. Quando o povo medo venceu os assírios, estas populações escravas foram libertadas e espalharam-se pelo mundo. Passaram pela Arménia (onde os estudiosos encontraram ligações fortes à cultura bretã) e vieram até ao Norte da Europa. A tribo Dan (preto, em bretão) instalou-se na Dinamarca; a tribo Ruz (vermelho, em bretão) ficou na Rússia; e a Gwen (branco, em bretão) veio para a Bretanha. Recentemente encontraram na Mongólia vestígios de um povo misterioso que ali se teria instalado na mesma época em que estas tribos andavam em fuga. Eram peritos no trabalho do bronze, e tinham megálitos. Bem podiam ser primos dos bigoudens, que são mongóis: têm traços asiáticos no rosto, e até a marca mongol nas costas.

Saímos da loja um pouco atordoados com esta história vertiginosa.
Tão atordoados que só alguns dias mais tarde caí em mim: como é que um povo com saber suficiente para fazer os templos do Egipto perdeu pelo caminho os seus conhecimentos, ao ponto de na Bretanha não conseguir mais do que erguer uns menires e uns dólmenes?


Locronan (2), ou: um passeio de vários séculos






O burgo de Locronan nasceu a partir de um núcleo de beneditinos do séc. XI, e tornou-se um importante centro de peregrinação. No séc. XV a cidade começa a enriquecer também com a produção de lonas para velas de navios, que ao longo dos séculos seguintes viriam a ganhar enorme fama e a ser exportadas para vários países. Diz-se que eram de Locronan as velas que levaram Cristóvão Colombo ao outro lado do Atlântico. A abastança daquela época está bem reflectida na riqueza das suas casas de granito e das suas igrejas. Mas, a partir de fins do séc. XVII, com a concorrência de outras regiões e o início da produção industrial, o sistema económico de Locronan entrou em declínio. Com a pobreza vem o esquecimento. A cidade adormece para um sono de cem anos, do qual só desperta no séc. XX, com um beijo do príncipe Turismo. Hoje em dia vive sobretudo das enormes massas de turistas interessados em saborear a perfeição daquele antigo cenário urbano. Volta e meia também é usada pelo cinema ("Chouans!" de Philippe de Broca (1987), "Tess" de Roman Polanski (1979) e "Un long dimanche de fiançailles" de Jean-Pierre Jeunet (2004), entre outros).   

À entrada de Locronan há estacionamento para quase mil carros, mas quando chegámos estava vazio. A cidadezinha de oitocentos habitantes respirava suavemente ao sol desta Primavera tão atípica para a Bretanha. Descemos pela esquerda da rua principal para ir visitar a igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. Estava aberta, e vazia de gente. 


Junto à igreja há uma bela fonte, dedicada a Santo Eutrópio, padroeiro dos hospitais, com poderes para curar todas as doenças. Todas! Um santo tão poderoso só pode ser sinal da importância que esta fonte teria no tempo dos druidas. E não a perdeu: nos anos da Grande Troménie, era costume dos habitantes de Locronan mergulharem na fonte as relíquias do santo, para distribuir depois por todos essa água tornada capaz de curar qualquer maleita.  
(Volta, Kebenn, porque no fundo nunca chegaste a sair desta região.) 

A igreja de Nossa Senhora da Boa Nova começou a ser feita no século XV, e é composta de duas partes: um para os crentes, junto à porta principal, e outra para os frades, do lado do altar. Junto ao arco que separa as duas zonas há uma cena da descida da cruz esculpida em granito, e que pela sua dimensão exagerada para o espaço me faz suspeitar que terá sido criada para um Calvário exterior, e em algum momento deixada ali. 


Quem não está ali por acaso é a imagem de Nossa Senhora da Boa Nova, do século XVI, a abrir a camisa para aleitar o filho. De um lado mãe de filho entregues à vida simples dos humanos, do outro lado o mistério teológico da trindade: pai, filho e espírito santo. 




Em 1985 a igreja foi enriquecida com vitrais de Alfred Manessier. Este que mostro, sobre o altar principal, pretende representar a Virgem a abrir o seu manto para acolher os fiéis.   


Subimos a rua Moal - que era a antiga rua das tecelagens de onde saíram as velas dos navios de muitos descobrimentos e de muitos corsários europeus - e cruzámo-nos com dois casais de turistas que nunca mais me desimpediam a paisagem para tirar a fotografia sem eles lá dentro.

(Impressionante como nos habituamos depressa ao luxo - noutra altura qualquer, aquela rua estaria apinhada de gente e eu teria de me contentar com fotografias dos pormenores: o telhado de colmo contra o granito da empena, a chaminé, a placa por cima da porta...)

Na rua Moal vê-se bem o que a História deixou pelo caminho: vários portais ricos de casas, que agora pouco mais são do que ruínas. Seriam as antigas tecelagens de onde saíram as velas que abriram os mares dos séculos XV e XVI.







Ao cimo da rua Moal desembocámos num cruzamento onde havia várias lojas. Numa delas tivemos uma bela conversa com o dono, que merece um post só para si.  

Entrámos numa marroquinaria cujo dono - bom vendedor! - quase me convenceu a comprar palmilhas de pele para evitar fungos nos pés (os taninos, louvava ele), e uma braçadeira larga de couro lindíssima, boa para evitar tendinites. Não comprei, mas talvez volte lá e dê uma segunda oportunidade à tentação. 

Continuámos o passeio: subimos parte da colina, e descemos pelo lado oposto da cidade, saboreando cada momento da tranquilidade do lugar. 


À entrada da aldeia encontrámos um homem que nos perguntou se queríamos ovos biológicos a um euro cada, e apontou para as suas galinhas: dois pobres bichos aninhados num canto  da rua. "Não teme que os carros as atropelem?", perguntei. "Desde há quase três meses que não há carros", respondeu. 

Descemos para a igreja principal. As igrejas, melhor dizendo: quando a maior estava terminada, no início do século XV, fizeram uma nova, a capela do Pénity, só para o túmulo de São Ronan. Esta capela é bem mais delicada que a igreja maior e, ao contrário da primeira, conseguiu conservar a sua flecha.
Um dia hei-de investigar o que aconteceu a tantas das flechas das igrejas bretãs. 





As duas igrejas são um autêntico museu de arte sacra dos últimos 600 anos. Este conjunto da "descida da cruz", por exemplo, em pedra policroma, semelhante ao que já víramos na igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. A expressividade daqueles rostos lembra as cenas da Paixão de Lucas Cranach, o velho: contemporâneo deste escultor. 





Esta simpática Nossa Senhora, não sei de que século: calma, orgulhosa e autoconfiante a apresentar o seu filho ao mundo:


Um Ecce Homo do século XV; e uma Pietà não sei de que século, com um Jesus cujo penteado me intrigava - mas foi só até conhecer o do Manso Neto. 



O túmulo de Saint Ronan, escultura em pedra do século XVI, mostra o santo, que mesmo depois de morto continua a dominar um dragão, espetando-lhe o báculo na boca. Na Idade Média, o dragão era um símbolo do Mal, e esta insistência em dominar o dragão será com certeza uma variação do tema "Kebenn".   




Um detalhe do altar do Rosário, lindíssimo, do atelier de Maurice Leroux, Landerneau (1668):


Sobre o santo que se segue não encontrei nenhuma informação, mas com este ar de galã deve ter contribuído bastante para fortalecer o fervor de algumas crentes:


Um dos estandartes da procissão "Troménie" (e eu a perguntar-me como é que levam estas preciosidades para dar uma voltinha de 12 quilómetros ao vento e à chuva da Bretanha):






Mais alguns detalhes disto e daquilo:




Para terminar, um bocadinho de efeitos psicadélicos da Idade Média.
Que não se pense que os nossos avós levavam uma vida sensaborona!




O Joachim parou num café na praça ao lado da igreja. Estavam a servir à porta, segundo as regras da primeira fase do desconfinamento. 
- Quanto custa um café?
- 15 euros. 
- Ah, bom. Espero que valha a pena! Dois, por favor. 
Riram-se todos. 

Sem clientes, o dono do café tinha todo o tempo do mundo para estar connosco. Sugeriu-nos que fôssemos espreitar por cima de um muro ali perto - fomos, e descobrimos uma estátua em granito do Saint Ronan. Pareceu-me banal, mas ele tinha tanto gosto nela que às tantas será uma peça preciosíssima e secreta da terra.

Depois disse-nos que nos ia mostrar algo realmente especial. "Sabem como é, em qualquer igreja que se preze tem de haver elementos pagãos. Nós temos aqui um que é um luxo." 
Seguimos pelo cemitério, contornámos a igreja, e do lado de lá, num dos cantos da torre que sustentaria a flecha, deparámo-nos com isto: 



O Joachim voltou para a esplanada do café, onde entretanto se tinham juntado alguns moradores. Eu dei uma volta pelo cemitério, com as suas cruzes antigas e um belo calvário em granito, e fui ter de novo com o lojista conversador. 

- Já que sabe tanto sobre a História da Bretanha, será que me pode explicar  as duas sereias à entrada da igreja de Plomodiern?
- Essas não conheço, mas provavelmente é mais do mesmo: qualquer igreja bretã que se preze tem de ter algum elemento não cristão. 
- E o que sabe dos quartos alugados pelos pintores em Pont-Aven, onde ainda hoje se pode pernoitar?
- Disso não sei nada. O melhor é perguntar lá. Mas veja lá como pergunta, porque a resposta mais provável é dizerem-lhe "sim, sim! É na casa da minha avó. Venha comigo!"

(Mais tarde, descobri que não era em Pont-Aven. É em Belle-Île: é possível ficar a dormir na casa onde o Monet viveu quando andou a pintar na ilha.)