16 julho 2020

Locronan (1), ou: o local de Ronan


Em Maio, na primeira fase do desconfinamento francês, durante quatro dias Plomodiern foi a nossa base para explorar a península de Sizun. E Locronan foi a primeira localidade que visitámos. Planeávamos parar lá um bocadinho, no caminho para Quimper - acabámos por ficar o dia todo.

Locronan nasceu numa região de floresta de relevo acidentado e com vista para o mar, que foi durante muito tempo um palco importante dos rituais druídicos - e, de certo modo, ainda o é. Na sua floresta, Névet, encontramos a memória de um nemeton: um quadrilátero com cerca de 12 km de perímetro, e 12 pontos que provavelmente corresponderiam aos 12 meses do ano, estariam assinalados por menires e seriam associados, cada um deles, a uma das divindades do panteão celta.

O cristianismo foi-se instalando à volta do nemeton, mas não ousava invadi-lo. Até que o nosso santo de hoje entra em campo: Saint Ronan, nascido na Irlanda por volta de 600, estava a viver em Saint Renan, nas proximidades de Brest, quando um anjo lhe apareceu em sonhos e lhe deu a entender que devia ir para o nemeton da floresta de Névet. Ronan instalou o seu eremitério naquele lugar, assim dando origem ao nome Locronan: Locus Ronani ou Lok Ronan: lugar [do eremitério] de Ronan.


Conta a lenda que um dia, estando Ronan a rezar na floresta, viu passar um lobo com uma ovelha na boca, e atrás deles um homem desesperado. Cheio de compaixão, salvou a ovelha - o que marcou o início de uma bela amizade entre o local e o forasteiro. Quando o homem se converteu ao cristianismo, a sua mulher, Kebenn, ficou furiosa e decidiu vingar-se. Foi ter com o rei Gradlon e acusou Ronan de ter morto a sua filha. Depois de muitas peripécias, o rei aceitou ouvir a versão de Ronan, acreditou nele e acabou por descobrir o baú onde a mãe escondera a menina. Tragicamente a criança morrera sufocada enquanto esperava que o imbróglio se resolvesse. Nada que o santo não pudesse resolver! Ronan ressuscitou a criança, e pediu clemência para Kebenn.




Muitos anos depois os caminhos de Ronan e Kebenn voltariam a cruzar-se, após a morte daquele. Todas as igrejas gostariam de ter o seu corpo, mas por conhecerem bem o mau génio do santo nenhuma queria correr o risco de sofrer algum cataclismo causado pela fúria de ter sido sepultado onde não queria. Para decidir o local da sepultura, puseram o seu caixão num carro puxado por dois bois, e deixaram-nos partir sem condutor. Onde parassem, ali enterrariam o santo. Acontece que os dias foram passando, os bois continuavam a andar, e chegou o domingo de Páscoa. Foi quando os bois se cruzaram com Kebenn, que estava a lavar roupa, alheia aos deveres do dia santo. Furiosa por ver o antigo inimigo passar no seu território, Kebenn desatou a rir maldosamente. Tudo teria ficado por conta da liberdade da expressão se não fosse os bois terem passado pelo meio da roupa, desgraçando o trabalho todo. Com a tábua de lavar, Kebenn partiu o corno a um deles, e pôs-se a perseguir o carro e a soltar imprecações. Ora, o que é demais é exagero: a terra abriu-se e engoliu a bruxa, no meio de muito fogo e fumo, no lugar que passou a ser conhecido por "o túmulo de Kebenn", e está agora assinalado com uma cruz, a Croas-Kebenn. O corno caiu no topo da colina, num lugar a que deram o nome de Plas-ar-Horn, a "praça do corno", e onde construíram uma capela. O santo, esse, foi enterrado no lugar onde os bois finalmente pararam, que é hoje a praça principal de Locronan, e no tempo dos romanos era o ponto onde se cruzavam duas rotas importantes. Sábios bichos, a cultura geral que eles tinham!    



Kebenn será possivelmente a última druida da região, ou, ao menos, uma metáfora para a resistência da ordem antiga à nova ordem cristã. Ronan, astuto, em vez de afrontar as tradições antigas, apropriou-se delas. Todos os dias percorria descalço 6 km do nemeton, andando - tal como os celtas - no sentido do movimento do sol. Aos domingos, fazia os 12 km completos. Tanto andou que fez do nemeton um terreno sagrado do cristianismo. Nos doze pontos do percurso, os santos cristãos substituíram as divindades celtas, e os menires foram trocados por cruzeiros. A procissão "Troménie" de Locronan repete os passos e o percurso dos druidas. De seis em seis anos, em Julho, tem lugar a Grande Troménie: uma enorme procissão de pessoas vestidas com os trajes tradicionais, carregando andores e erguendo estandartes percorre os 12 km do antigo nemeton. Nos restantes anos, o circuito é o dos dias úteis da semana de Saint Ronan: 6 km. Tanto a grande como a pequena Troménie terminam na Croas-Kebenn, a cruz da sepultura de Kebenn - e diante dessa cruz nenhum bretão se persigna.

Em Locronan, outras tradições pré-cristãs foram assimiladas aos rituais da religião invasora: o Pão dos Mortos, no primeiro dia de Novembro, que marcava o início do ano celta e o momento da festa em que os vivos comunicavam com os mortos; a pedra Ar Gazeg vaen, também chamada "cadeira de Ronan", que parece ser o que resta de um enorme falo neolítico, e na qual se sentam as mulheres com dificuldades de engravidar, na esperança de que o santo interceda e elas possam ter filhos; e a Árvore de Maio, que consiste em erguer na praça central de Locronan uma faia (árvore sagrada dos celtas) no dia 1 de Maio (festa do fogo de Belenos), cujos ramos serão imolados no solstício de Junho.

Foi esta árvore que ali encontramos em meados de Maio, fazendo uma triste figura com as suas folhas já bastante secas


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