05 outubro 2018

insultar o Ronaldo é que não!

Um dos mais curiosos argumentos que ouvi em Portugal para desacreditar a mulher que acusou Ronaldo de a ter violado é este: "se foi ao quarto dele, já sabia ao que ia".

Antes de mais, que fique bem claro: parece-me mal que andem por aí a insinuar essas coisas contra o Ronaldo! Quem diz que ela não devia ter ido ao quarto dele porque já sabia o que podia acontecer está implicitamente a afirmar que o Ronaldo é homem para violar qualquer mulher que lhe entre no quarto. Tenham paciência, mas: insultos ao Ronaldo é que não!

É que insultam e condenam o Ronaldo ainda antes de os juizes terem começado a olhar para o caso, e dão cabo da minha auto-estima: é muito triste chegar a esta idade sem ter percebido que todos os homens que me convidam para os seus aposentos me querem e podem violar.

(Tenho andado tão enganadinha!)

De caminho também fiquei a suspeitar que talvez não seja uma mulher santa, porque "santas não aceitam convites para entrar no quarto de hotel de um homem" (mesmo que o convite seja dirigido a um grupo, como foi o caso naquela fatídica noite em 2009). Pelas críticas que fazem a Kathryn Mayorga depreendo que tenho andado a recusar sempre pelos motivos errados - porque não me apetece ou porque tenho mais que fazer. Pelos vistos o único motivo certo para recusar ir aos aposentos de um homem é partir do princípio que ele me quer violar.

(Não serei santa, mas sou uma santinha: incapaz de ver maldade nos outros até prova em contrário)



Outra das estratégias da defesa do Ronaldo explora o currículo da mulher que o acusa: "se fazia aquele trabalho, não se pode queixar". Não sei o que é "aquele trabalho", mas sei que a dignidade humana está acima de qualquer vínculo laboral. Um trabalho que implique tamanha suspensão dos direitos da personalidade não é um trabalho - é escravatura.

(Talvez fosse conveniente as pessoas que recorrem à prostituição e a serviços de escort informarem-se um pouco mais sobre a legislação em vigor, não vá de hoje para amanhã alguém resolver instaurar-lhes um processo criminal. Que isto os tempos estão maus, já não se pode fazer descansadamente o que sempre foi costume...)

Em suma: na gritaria provocada pela acusação contra Ronaldo descubro que em Portugal o machismo e a falta de respeito pelas mulheres são ainda mais generalizados do que pensava.

(O que me inspira para uma ideia peregrina: a Europa podia resolver o problema da integração de refugiados de forma bastante simples. Em vez de tentar mudá-los e adaptá-los às regras da sociedade que os acolhe, dividia-os por países em função da mentalidade. Para Portugal iriam os refugiados que vêm de regiões onde se entende que a mulher tem de se dar ao respeito, tem de cobrir o corpo para não provocar os homens, deve evitar o contacto com homens que conhece mal porque "já se sabe o que é que os homens querem", e é culpada do que lhe possa acontecer se entrar na "toca do lobo". Esses refugiados seriam recebidos de braços abertos pelos muitos portugueses que ainda pensam como eles, e estariam desde logo bem integrados na sociedade de acolhimento...)

(Estava a brincar, claro. Era só o que faltava deixar vir os de fora para tratar mal as nossas mulheres! Como é óbvio, essa tarefa é um direito exclusivo do macho ibérico, a quem pertence a coutada. Humpf!)

O que me custa mais nisto tudo, mais ainda do que ver o nosso querido Ronaldo envolvido numa história sórdida - e agora estou a falar muito a sério: o modo como se tem atacado esta mulher para defender o Ronaldo representa um ataque generalizado às mulheres vítimas de violência sexual (são umas levianas e calculistas), aos homens (coitadinhos, não passam de uns brutos dominados pela testosterona) e àquilo que se pensava ser a sociedade portuguesa no século XXI (imbuída de valores democráticos, moderna, igualitária).

3 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

Não sabendo como a história se passou, tenho de me bastar com o "suponhamos"...
Estiveram juntos,fizeram o que quiseram,tudo bem,são maiores e vacinados.Não houve violência,não houve ameaças...continuemos a supor:tempo passado a senhora sentiu-se lesada,utilizada,abusada,contata Ronaldo, solicita uma compensação financeira que lhe é facultada!
Relações sexuais compensadas com dinheiro? Como se chama esta atividade ?
Ao meter dinheiro nesta história, um e outro entraram, de imediato, no lupanar!

Helena Araújo disse...

Se é para entrar no "suponhamos", podia ter poupado o trabalho de escrever tudo isso.
Não leu o artigo do Spiegel, pois não? Por exemplo, não leu a referência à carta que ela fez questão que o Ronaldo lesse nas duas semanas seguintes, pois não? É que o artigo do Spiegel já lhe explica em que é que as suas suposições estão erradas.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

Estamos na realidade a discutir a casca da cebola: dentro do "fait-divers" pitoresco de uma historieta de celebridades excêntricas está a investigação de (mais) um alegado crime grave; dentro da história policial está uma candente questão moral, de atitudes e comportamentos; dentro da questão moral e civilizacional está a questão social do interesse mórbido e excessivo por histórias de famosos, sobretudo ligadas às suas desgraças e infortúnios; dentro da coscuvilhice mórbida encontra-se o desmesurado poder da comunicação social, no tocante a condicionar as atenções do público; dentro do imenso poder mediático nas Sociedades modernas está a auto-estima de um Povo pobre, pequeno e quase insignificante, mas que crê ter tido um dia uma importância planetária; dentro da magna questão da identificação e afirmação dum Povo, duma Língua e duma Cultura está ainda a grande problemática da Educação das Crianças e dos Jovens e de como os modelos ditos "de sucesso" tendem a deformar as suas expectativas de vida e assim por diante...

Eu prefiro esperar por alguma eventual condenação (ou absolvição) judicial e, até lá, presumir naturalmente a inocência do possível acusado e não o julgar pelo que oiço dizer dele, mas sem lhe atribuír também demasiada relevância naquilo que supostamente deve (ou não) representar para os portugueses.

Sim, até porque «I remember Laura Diogo», ou seja, a Oeste (da Ibéria) nada de novo...