29 abril 2015

ARtMENIANS - debate sobre o filme (2)

Para continuar a conversa, transcrevo um comentário ao post anterior:

"Este filme levou-me a vários pensamentos.
Lembrei-me da preocupação de Ratzinger quanto à homogeneização e suas consequências. Afirmava ele que o que enriquecia a humanidade era precisamente a diversidade de culturas e não o contrário.
Impressionou-me o empenho do povo arménio na preservação da sua cultura. A consistência, a fidelidade. Perguntei-me quantos artistas abdicariam de uma carreira promissora para ficarem com os seus, porque são necessários aos seus. 
Chamou-me a atenção todos os pormenores a bem da memória: o escrever no livro, o livro que teve que ser rasgado por ser demasiado pesado, a menina que declama o poema de Charent ( e simultaneamente penso que a maior parte dos jovens não sabe o hino nacional), o memorial.
Não pude deixar de sorrir pela felicidade estampada no rosto daquela mulher que tem uma janela virada para o Monte Ararat e a esperança que não morre.
O director que sabe que a cultura é a coluna vertebral de um povo.
E como não poderia deixar de mencionar, a música de uma belíssima melodia. A melodia da peça de entrada, cujo nome infelizmente não fixei, cantada pelo coro, transmitia serenidade, assim como que um reencontro do homem com a sua essência. (Desculpe esta divagação!)
Disseram-me um dia: "Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música."
Está tudo dito."

Palavra puxa palavra, vamos por partes:

Homogeneização e diversidade: há um apontamento muito interessante no livro "The Armenians: From Kings and Priests to Merchants and Commissars", de Razmik Panossian (que é o director do Departamento das Comunidades Arménias na Fundação Gulbenkian), no qual ele refere que na família do seu avô, habitantes da Turquia em fins do séc. XIX, se falava cinco línguas. Depois do genocídio, houve um endurecimento e um empobrecimento cultural. A diversidade combinada com coexistência pacífica permite uma comunhão que é positiva para todos.

O exemplo do pintor Saryan, e também o do escritor Charents (que numa viagem a Itália convence um amigo, escritor arménio exilado, a ir viver para a Arménia, porque "o lugar dos escritores é junto do seu povo"), ou a de um grupo de músicos arménios que - na Moscovo soviética, numa época que luta contra as ideias nacionalistas - criam um quarteto que divulga a herança musical do seu povo, também me impressionaram: a Arte vivida como serviço.
Durante os anos do genocídio, e depois, durante o período soviético, o Saryan pintava flores, árvores floridas, e paisagens da cultura arménia para dar esperança ao seu povo e a coragem de resistir. Um dos seus quadros, pintado no período estalinista,  quase parecendo uma cena ingénua, é afinal uma grande provocação: uma aldeia, uma igreja com a porta aberta, e uma mulher a entrar nela.

(fonte)

Durante a II GM, quando o seu filho estava na frente de batalha onde morreram milhões de soldados soviéticos, pintou esta cena familiar, que tem no centro um damasco (o damasco, prunus armeniaca, é um dos símbolos dos arménios):


Outro quadro da mesma época, de um optimismo tal que chega a ser doloroso (1942, "Damasqueiro em flor"):



Sobre a música: a música inicial é do Requiem de Tigran Mansurian. Gostei muito do que Andrew Redmond, um dos cantores do coro, disse sobre este início do requiem: como se fosse o eco das vozes há muito extintas. E só depois começa o requiem "normal".
Aqui pode-se ouvir todo o requiem, gravado a partir da transmissão radiofónica da estreia mundial, em Berlim:



Uma das minhas passagens favoritas é a Lacrimosa (por volta de 23:00). O Tigran Mansurian disse que era a parte que lhe impunha mais respeito. Penso que passou a prova com distinção.

"Se quiseres conhecer a alma de um povo, conhece a sua música." - também gostei imenso do que o Jordi Savall disse sobre isso: ao tocar a música de um povo, de certo modo entra-se na alma e na História desse povo.

A propósito, o Tigran Mansurian refere em especial o Kyrie. Ele escreveu o Kyrie como uma dança aflitiva de um povo à volta do seu Deus. Um povo que vive permanentemente sob ocupação e é perseguido não canta "Senhor, tem piedade de nós" da mesma maneira que um povo que vive no seu território e em paz.

O que nos faz voltar aos livros medievais, e a um comentário da Meliné Pehlivanian, a senhora que nos apresentou alguns livros na biblioteca berlinense. Dizia ela que, ao ver o tamanho dos livros que há nos mosteiros medievais da Europa central, se deu conta da paz que havia nesta região. Aqueles livros enormes eram feitos para ficar onde estavam. Ninguém tinha de agarrar neles a correr e fugir para salvar a vida. Ao contrário dos livros arménios, feitos memória portátil.


28 abril 2015

pura vida - uma cauda de baleia



No hotel disseram-nos muitas coisas. Que havia uma praia lindíssima, a playa Ventanas, que para ver a famosa cauda de baleia da região era preciso ter maré baixa, que a maré começava a subir às nove e meia da manhã, que havia um restaurante de peixe grelhado fresquíssimo junto à cascata El Pavón. Parecia que sabíamos tudo, e não sabíamos nada, afinal. A praia Ventanas ficava a milhas da cauda de baleia, a maré só subia ao meio dia, o restaurante era demasiado longe. Depois de uma hora a bater com a cabeça nas paredes (ou com o carro nas curvas da estrada) conseguimos chegar enfim à praia de Uvita. Essa praia, como tantas outras na Costa Rica, está integrada num Parque Natural, e é preciso pagar para entrar. Pagámos, que remédio. Fizemos um longo passeio pela praia até chegarmos à formação rochosa em forma de rabo de baleia, mergulhámos e brincámos naquela água quentíssima. Já tomei banhos de imersão com água mais fria, era tão estranho que começámos a avisar onde é que a água estava um bocadinho mais fresca, e juntávamo-nos todos lá em grande galhofa. Gentes nórdicas...
Regressámos a terra seca no momento em que as ondas já se cruzavam sobre a língua de areia.

Era Domingo de Páscoa. Queríamos ir almoçar ao tal El Pavón, mas o Matthias viu a soda onde a família dele come sempre que passam por ali, e acabámos sentados a uma mesa coberta de diversos ceviches deliciosos, num restaurante simples junto à estrada, sobre a encosta da floresta prodigiosa, em frente ao mar.




Uma cena muito típica na Costa Rica: pessoas com guarda-chuva a fazer de sombrinha.


 

 A língua de areia que leva à "cauda de baleia" na maré baixa.



 A "cauda de baleia": uma formação rochosa em frente à praia.




 O regresso a terra seca quando já se cruzavam as águas sobre a língua de areia.




Na floresta junto a este rio havia uma tabuleta naif muito bonita onde estava escrito:
"peligro, cocodrilo"




pura vida - a caminho do Pacífico



No aeroporto, o senhor do rent-a-car avisou-nos que, por ser o fim-de-semana da Páscoa, a auto-estrada para o litoral podia estar fechada, porque, para facilitar o regresso à capital, a partir de determinada hora usam todas as vias para a direcção litoral-San Jose. Mas que não tinha mal, porque o caminho pelo meio da montanha é lindíssimo.
Passámos a primeira noite em San Jose, num hotel chamado "Casa 69". O Matthias comentou que a princípio desconfiou que seria outra coisa, e rimo-nos. É bom ter filhos grandes com os quais nos podemos rir destes disparates.
De manhã, sábado da Semana Santa, passeámos pelo centro, que estava calmo e desafogado. Vi numa loja uma espécie de gelados feitos de arroz doce com vários sabores. Se quisesse aproveitar este nicho de mercado, aposto que nunca me iria faltar como cliente...
Entrámos no mercado, que é onde melhor sinto as cidades que me são novas. O de San Jose é desarrumado: as lojas para turistas ao lado das bancas de legumes, os corredores estreitos e labirínticos. E por todos os lados pessoas sentadas em frente a balcões simples, a comer almoços com aspecto delicioso. Por mim ficava ali o dia todo, mas tínhamos de nos largar à estrada, para ir dormir numa praia do Pacífico.

Tal como nos tinham avisado, a auto-estrada estava fechada, pelo que fizemos todo o caminho até à costa numa estrada de terra batida (enfim, pedra batida) que ia conquistando o caminho pelo meio dos montes e da selva. Tal como o senhor dissera: lindíssimo.

Há muitos anos, numa daquelas férias na praia em que desligava o cérebro e lia as selecções do Reader's Digest, li um artigo sobre a Costa Rica que me deixou a impressão de ser a terra prometida. "Tão fértil que tudo pega de estaca, até os postes de electricidade", estava escrito. Foi há quase meio século, e nunca mais o fascínio dessa terra me largou. E ali estava eu, a atravessar a selva prodigiosa, como se fosse um sonho. Até que, a pouco e pouco, a selva começou a mostrar as agressões de que é vítima: carecadas enormes nas encostas íngremes, um verde seco que era pasto de vacas magras. Lembrei campanhas diversas contra as queimadas, denúncias sobre o modo como se destrói a floresta tropical para ganhar pasto para os futuros hamburgers baratos das cadeias de fast food dos países ricos. Voltei ao artigo das Selecções: talvez não fosse inspirado pela poesia, mas pela cobiça.

Numa curva da estrada no meio da montanha aprendemos a nossa segunda palavra-chave para estas férias: "soda". Restaurantes simples, frequentados pela população local, com comida tradicional, saborosa e a preço acessível. Pedimos "casados",  e um caldo de carne muito macia, acompanhada por legumes que tentámos decifrar.

(o lavatório desta soda ficava do lado de fora da janela)

Chegámos ao Pacífico ainda a tempo de dar o primeiro mergulho das férias antes do pôr-do-sol, numa água maravilhosamente morna.
Na Costa Rica a noite cai cerradíssima às seis da tarde. Esta mistura de temperaturas de Verão e horários de Inverno deixa-nos um pouco desconcertados. Sentindo que era tardíssimo, apesar de não ser ainda nem sete da noite, jantámos no nosso hotel, o Tucan Lodge em Uvita. É um sítio agradável: meio hippie, meio latino, com um ar muito genuíno. Simples, descontraído e acolhedor. A vida acontece no salão central, que mais não é que um telhado enorme sobre o espaço entre os edifícios compridos laterais onde estão os quartos. Sentados no restaurante, deitados na rede, a jogar snooker ou simplesmente por ali, olhamos para a vegetação diversa e frondosa do jardim que vem até aos nossos móveis, sem saber muito bem onde acabamos nós e começa a natureza. Ali, a senha da internet é - e como poderia ser outra? - "pura vida".  Santo-e-senha destas férias.





ARtMENIANS - andar descalço


(fonte) (1)


Ainda a propósito da Cultura, havia uma passagem da entrevista da neta do Charents (o escritor que acabou por ser torturado e morto pelo estalinismo, porque não escrevia nos conformes), que também tivemos de deixar de fora (eu bem digo que o filme podia ter 5 horas), na qual ela contava que a família do Charents não tinha muito dinheiro. Apesar das dificuldades, ele estudava na universidade. Um dia o pai mandou-lhe dinheiro para comprar uns sapatos, e ele gastou-o em livros. O pai ralhou:
- Vais andar descalço!
- É melhor andar descalço nos pés que no cérebro, foi a resposta.


(1) Charents retratado por Saryan. Neste retrato, Saryan recupera uma das máscaras egípcias do quadro que pintou como reacção ao genocídio.

ARtMENIANS - debate sobre o filme



Tenho recebido mensagens de pessoas que manifestam vontade de falar sobre o filme. Na impossibilidade de nos juntarmos numa sala a conversar, fica aqui a proposta: podemos usar a caixa de comentários deste post.

Para começo de conversa, copio para aqui uns excertos do facebook, da Ivete Mora, que transcreveu parte da entrevista do director do Cafesjian Center for the Arts, quando respondia à pergunta "porquê investir em cultura num país com dificuldades económicas tão grandes?" A resposta dele:

"A cultura é como um espelho onde as pessoas se podem ver. É um reflexo.... E a cultura, que unifica todas as formas de arte, é uma forma de moldar as pessoas. E quando as pessoas percebem o poder desse instrumento, e querem fazer uma mudança, começam a investir nessa área, para que essa mudança possa acontecer"

E o comentário no facebook: "O desinvestimento é, claro, a outra face da moeda, com resultados opostos: é a lógica..."

É por aí: um país bem mais pobre que o nosso, com dificuldades bem maiores, mas que desde sempre percebeu que a Cultura é um bem essencial.


27 abril 2015

de verde tenro






Há 3 semanas, quando saímos para a Costa Rica, nevava em Berlim.
No regresso, a cidade recebeu-nos vestida de verde tenro. E já não era sem tempo!

Ontem não chegámos a tempo do Karaoke no Mauerpark (é que quando lá chegámos começou a chover, e optámos por ir ao Kauf Dich Glücklich controlar a qualidade da doçaria - por este andar, qualquer dia em vez de cuidar da minha linha tenho de cuidar da minha circunferência...).
Como ia dizendo: o Karaoke já tinha acabado, mas ainda pudemos ver as árvores de primavera tocadas pela luz baixa do pôr-do-sol. 
E depois ainda dizem que a outra é que é a cidade maravilhosa...










26 abril 2015

domingo na província

Hoje tinha de cortar umas árvores infestantes que estão a crescer no jardim. Como não temos serra, fui pedir uma emprestada ao vizinho. Ele não tinha, a vizinha ao lado não estava em casa, fui bater à porta do terceiro, que já fica um pouco longe da minha zona de conforto. Ele convidou-me para entrar, ficámos na conversa, eu às tantas disse ao que vinha, ele perguntou se queria uma serra manual ou uma eléctrica, eu "hã?" - daí a nada era ele quem estava a cortar as minhas árvores. Pelo meio começámos a falar da relva, a dele foi semeada agora, está a começar a crescer. Anda à procura de uma máquina de cortar relva, queria uma manual, e eu disse-lhe logo que temos uma assim, que usamos a meias com o primeiro vizinho, fui buscá-la, e ele experimentou-a na nossa relva (que bem estava a pedir mas o Joachim tem andado com dores de costas). Eu dizia-lhe a rir "experimenta mais um bocadinho, para teres a certeza que gostas" e ele experimentou tanto que praticamente me cortou a relva toda, rindo sempre. Enquanto experimentava eu trouxe para a rua uma mesa de bistrot e bolo de chocolate, o primeiro vizinho trouxe cafés, as famílias de todos juntaram-se a nós, chegou outra vizinha. Passou um casal de reformados que adora o Fox, e levaram-no de passeio. 
O Joachim e o primeiro vizinho retiraram-se teatralmente para deliberar se passavam a usar a máquina da relva a três. Um dá a máquina de cortar, outro dá a máquina de aparar as beiras, o terceiro tem uma fantástica serra eléctrica. Negócio fechado no meio de muitas gargalhadas.
Bela maneira da passar uma manhã de domingo.
(também já plantei amores-perfeitos que me deram, uma caixa enorme deles, e apanhei a relva cortada) (enquanto estava a trabalhar no jardim passou um amigo do Fox, e eu fiquei um bocadinho à conversa com a dona dele) (agora é hora de sair para o Karaoke no Mauerpark, bela maneira de passar a tarde de domingo) (já disse hoje que adoro viver em Berlim?)



24 abril 2015

a equipa que produziu, realizou e bla bla bla [ARtMENIANS, estreia hoje na RTP2, por volta das onze da noite]


Já contei que o nome do documentário é uma criação da Ana Vieira. A Ana, que vale o seu peso em ouro - e podia pesar o dobro. Também é dela um momento extraordinário do filme, quando se fala das crianças orfãs, e do trauma que é herdado pelas gerações seguintes. Gostava muito de saber o que é que a Ana toma no café da manhã, que lhe permite continuar criativa, calma e bem disposta 24 horas mais tarde. Ou 36. Ou 48, que eu vi.

Podia contar muito sobre o Pedro Magano, mas fico-me apenas por dois apontamentos: o ar tão contente dele quando, no fim da nossa primeira viagem à Arménia, me dizia que tinha ali material de que o Ricardo ia gostar muito. E o que lhe custou a segunda viagem, o trabalho intenso durante mais de quatro semanas, as saudades da filhinha, que nessa altura tinha meia dúzia de meses.

O Pedro Ferreira, a sua enorme competência e a sua ainda maior paciência. Os seus olhos brilhantes ao passar-me com orgulho o filme já quase terminado, avisando-me que depois do tratamento de cor e de som aí é que ia ser. O seu entusiasmo - talvez lhe possa até chamar amor - por alguns momentos do filme, a alegria que nem a maratona da montagem conseguiu abafar. 

E o José Pedro Rosado (mais um Pedro! será que o Ricardo escolhe pelo nome as pessoas com quem trabalha?) que fez algumas animações extraordinárias. Que me faz sorrir com a sua animação para ilustrar o mito da origem dos arménios (digam vocês: que vos ocorreria como animação para um texto como o que se segue? "A arca da Noé pousou no monte Ararat, Noé e os seus filhos desceram para o vale e começaram a fazer o primeiro vinho do mundo. Noé falava com Deus na mesma língua em que falava com os seus filhos."), e que, depois de me aturar muitas variações de "este mapa mais assim, aquele mapa mais assado", fez uma animação que sintetiza muito bem as andanças de quase três mil anos de História dos arménios. 

A Elke Hartmann, a historiadora que nos ajudou imenso com os textos históricos e aparece várias vezes ao longo do filme. Ela fala, para além dos corriqueiros alemão, inglês e francês, o arménio, o árabe e o turco (e russo, se bem me lembro). Fala e escreve. Mostrava-me fotografias de comícios dos Jovens Turcos, "olha para isto, os cartazes dizem o mesmo, só que o dos turcos está escrito com letras árabes e o dos arménios está escrito em turco com letras arménias", e logo a seguir comentava a actualidade, falava-me do IS e dos primeiros salafitas, que começaram por ser uma espécie de Martinho Lutero no contexto muçulmano, e eu a ouvir, pensando que adoraria ser sua aluna. A Elke, com quem gravámos uma entrevista de quase duas horas, que nos deixou fascinados e ao mesmo tempo preocupados, sem saber o que cortar de todos aqueles tesouros. 

E, last because first, o Ricardo Espírito Santo. O ar emocionado com que me olhou em silêncio quando entrei na sala onde ele estava a ver pela primeira vez o filme completo.
O Ricardo, apanhado entre dois fogos terríveis: eu, e as Finanças.
Eu, que comecei a carburar demasiado tarde criando um stress terrível à equipa, eu que não conseguia cortar nada, e que dizia em tom tétrico "ai! despedaças-me o coração!" de cada vez que ele sugeria tirar uma ou outra coisa.
E as Finanças, que resolveram perseguir impiedosamente a Terra Líquida Filmes como se se tratasse de terríveis criminosos. Não sei como é que o Ricardo conseguiu a força para lutar tendo contra si a máquina poderosíssima e cega do Estado. Por trás do documentário sobre os arménios, que tentámos fazer o melhor que soubemos, há a história de um milagre de resistência quotidiana: um homem que encontra em si a força que lhe permite continuar a fazer o seu trabalho, aguentar a sua empresa viva e manter os empregos dos colaboradores, apesar de essa empresa estar a ser perseguida pelo Estado.


a cultura como estratégia de sobrevivência [ARtMENIANS, hoje, RTP2, por volta das onze da noite]



Quem inventou o nome ARtMENIANS foi a Ana Vieira, numa estrada em Nagorno-Karabakh. Andávamos há dias aflitos a tentar encontrar um nome realmente bom, a Gulbenkian pressionava para poder publicar os seus programas, eu hesitava. Quando ouvi ARtMENIANS pela primeira vez, também hesitei (ninguém sabe, mas o meu verdadeiro nome não é Helena, é Hesita Araújo). À segunda vez senti-me conquistada: é isso mesmo! Arte para designar cultura, e cultura como estratégia de sobrevivência.

Um dos elementos que mais me toca neste filme são os exemplos de intelectuais e artistas que se dão conta do seu poder para ajudar aquela gente profundamente traumatizada a reerguer-se de uma tragédia desta dimensão. Pessoas que decidem entregar o bem-estar, a carreira e - alguns - a própria vida ao serviço do seu povo. Durante a montagem do filme, chamámos-lhes "os resilientes". Entre outros, há o caso do pintor que, em vez de ir para França tornar-se um dos artistas mais famosos da sua época, fica na Arménia a pintar quadros de cores radiosas e cenas de resistência serena à ideologia soviética (se o filme pudesse ter cinco horas, incluía ainda o momento em que esse pintor, famosíssimo no espaço soviético, em vez de meter uma cunha para safar o filho na II GM decidiu mandá-lo para Estalinegrado, "porque era lá que se jogava o futuro do seu povo"). Há o caso do escritor que tinha uma mensagem para os arménios, e a disse, sabendo que lhe custaria a cabeça - como custou, literalmente (se o filme tivesse cinco horas também contaria das filhinhas dele, de 2 e 3 anos, perdidas na rua até que uns vizinhos repararam nelas, porque o pai foi levado para a cadeia e a tortura, e a mãe - pelo simples crime de ser casada com esse homem - foi levada para um campo de reeducação, onde ficou esquecida durante décadas. O charme discreto do estalinismo...). Mais recentemente, há o caso dos historiadores que, um século depois de a presença arménia ter sido apagada da Turquia, iniciam na internet um projecto de reinscrever os arménios na História e na Geografia da região que foi a sua durante milhares de anos.

Enquanto trabalhava no filme, sentia-me impressionada com o tanto que estes temas têm a ver connosco. Como, por exemplo, na entrevista ao director de um centro de arte moderna em Yerevan, lhe fiz uma pergunta provocatória: porquê gastar o dinheiro em arte, em vez de o gastar na economia de um país? A resposta dele deixou-me a sorrir, e com vontade de contar a toda a gente em Portugal e na nossa Europa de cega austeridade.

E também há aquela miúda de cinco ou seis anos, aquela miúda amorosa e séria, que numa rua de Berlim recita para nós um poema enorme de Charents:

Vá onde for, não esquecerei nossos cantos de lamento
nem os livros de antigas letras, em oração convertidos;

quanto mais fundo o sofrimento me ferir o coração

mais te amarei, Arménia órfã, queimada de sangue, Arménia minha.


Essa criança passa os seus domingos na escola arménia de Berlim, a aprender o alfabeto, a História e as canções do seu povo. Ela, como tantas outras pessoas que transportam para o futuro uma herança cultural pela qual se sentem responsáveis. 

E nós, portugueses e europeus? Que valores da nossa cultura queremos levar conscientemente para o futuro?  


23 abril 2015

simbolismos [ARtMENIANS: RTP2, 24.04, 23:25]




Se me deixassem mandar, o filme ARtMENIANS tinha pelo menos cinco horas.
Passei várias semanas a olhar para o material que tínhamos e a sentir-me o Ali Babá na caverna dos tesouros: para onde quer que olhasse, só encontrava preciosidades. O Ricardo deitava as mãos à cabeça, dizia que o filme não podia ser tão longo. Eu sentia-me angustiada: como escolher que jóias deixar de fora?

Um dos segmentos que acabámos por ter de cortar foi a descrição do modo como fazem o crisma na Santa Sé de Etchmiadzin, que depois é levado para as comunidades arménias em todo o mundo.

Esse óleo é feito com azeite puro e uma mistura de quarenta ingredientes (ervas aromáticas, flores, raízes, folhas, etc.) segundo uma antiquíssima receita. A mistura coze durante três dias num caldeirão selado. Seguidamente, é levado para o altar-mor da catedral, onde fica quarenta dias a receber as orações e os cânticos quotidianos. Na cerimónia da consagração, que só pode ser presidida pelo Catholicus, usa-se também a lança que trespassou Cristo e uma relíquia que vem do princípio do cristianismo na Arménia: a mão direita de São Gregório, o iluminador. Finalmente, junta-se ao óleo novo o que resta ainda do antigo, num gesto sempre repetido desde o primeiro crisma.  

No filme Ararat, de Atom Egoyan, há uma cena em que um rapaz descendente de arménios fala com um polícia sobre a História do seu povo, e se refere à batalha de Avarair, que foi em 451 d.C.
O polícia, americano, espanta-se:
- Isso foi há muito tempo.
- We go way back, responde o rapaz.

É isso. They go way back: o crisma usado nas comunidades arménias em todo o mundo é tocado pela lança que vem do princípio do cristianismo e pela mão do fundador da Igreja Apostólica Arménia, e tem os restos de todos os crismas da História da Igreja Arménia. Mais simbolismo que isto é difícil.
É difícil, mas é possível: esta cerimónia ocorre de sete em sete anos. No cristianismo, o sete representa a unidade plena entre o divino e o terreno - 3 + 4 = a Trindade e os quatro pontos cardeais. O óleo com que ungem os baptizados simboliza a união perfeita do céu, da terra e do tempo.


22 abril 2015

ARtMENIANS - RTP2, 24.04.2015



O ARtMENIANS passa amanhã na TV pública arménia, às 23:00, e no sábado às 17:25.
Disseram-me que em Portugal passa na RTP2 na sexta-feira, dia que marca o centenário do genocídio dos arménios, e constou-me que será antecedido de um debate sobre esse tema. Mas ainda não vi nada disso anunciado no programa online. É muito estranho - será o meu google está avariado?

[ ADENDA: entretanto, já está anunciado aqui. Amanhã, dia 24, às 23:25. ]

No outro extremo da Europa, a empresa de TV dobrou o filme e fez este trailer para o anunciar.

(Bem sei o que está no filme, até assisti às filmagens e tudo. Bem sei quem arranjámos para substituir a Angelina Jolie, que infelizmente não tinha tempo nessa altura porque andava a tratar do casamento. Mesmo assim, ver-me agora dentro de um filme anunciado em arménio é um bocadinho estranho. Quase me sinto como aquele miúdo ao sair do dentista: "is this real?")


21 abril 2015

a vida continua



A penúltima coisa de que me lembro, na Costa Rica, foi nós sentados no Bread & Chocolate, em Puerto Viejo, a comer uns brownies prodigiosos. A última coisa de que me lembro foi do ar de maturidade do Matthias a aturar a sua mãe chorosa. Bem, antes disso também houve um momento muito engraçado, quando ele anunciou "pai, tenho uma notícia trágica para ti!" e eu disse, sobressaltada, "o que é que aconteceu ao Bayern?", e era isso mesmo - o Matthias decidiu que já não quer ser adepto do Bayern. Uma notícia trágica para o Joachim, ficaram horas a falar sobre essa decisão. E depois dizem que as mulheres é que são difíceis de entender...

Levantámo-nos às três e meia da madrugada para ir apanhar o avião, e 22 horas mais tarde eram oito da manhã no aeroporto de Tegel. De momento não faço a menor ideia das horas que são dentro de mim.

Depois de uma soneca o Joachim foi buscar o Fox e eu fui passeá-lo. A Primavera tem andado pelo nosso lago, eu é que não tiro fotos, porque estas duas semanas na Costa Rica desencantaram-me a paisagem quotidiana. Ao fim da tarde o Joachim foi pintar e antes disso esteve a ver a nova exposição colectiva onde tem alguns quadros, eu fui ao ensaio do coro para a nova ópera do Jonathan Dove. Os primeiros cantores começaram a chegar 45 minutos antes da hora marcada, e muito antes do que estava previsto já estávamos todos prontos, de autocolante com nome ao peito e lista de presença assinada. O ambiente é bem-disposto e leve, mas de trabalho concentradíssimo - até os exercícios de aquecimento da voz são exigentes e exactos (é a Filarmonia, stupid). Durante o intervalo encontrei amigos que iam ao concerto desse dia, rimos um bocadinho e despachámo-nos para não chegar atrasados. No regresso para casa fui ao supermercado, e como não tinha saco meti tudo numa caixa de cartão. Na estação de metro dirigi-me a um dos funcionários para lhe fazer uma pergunta, e levava a caixa e as compras debaixo do braço. Ele começou a olhar para as bananas com ar de cobiça, dei-lhe uma. Aceitou, rindo aquele riso de quem sabe que abusou um pouco mas não se importa muito.
É: estou outra vez em Berlim.


12 abril 2015

o dolce far niente

Este blogue parece adormecido, e a culpa é do dolce far niente que me tem trazido muito ocupada.
Depois, quando conseguir algum tempo livre, conto.
(Para já tenho de apagar do cartäo da máquina fotográfica umas 1000 fotografias. Já tenho 2 G cheios de palmeiras e praias de água turquesa, e 3 malucos a afrontar as ondas do Pacífico ao por-do-sol.)


06 abril 2015

almoço de Páscoa em Garni

Mais do mesmo - o post que escrito há um ano, agora com as fotos prometidas:


ali para os lados do paraíso

Deixámos Geghard e fomos almoçar o nosso peixinho grelhado de Páscoa a um terraço ali para os lados do paraíso: à sombra do templo de Garni, com vista para montanhas cobertas de neve e colunas do desfiladeiro de basalto, rodeados de árvores em furioso alarde da Primavera.

Quando íamos pagar, o dono do restaurante fez-nos sentar à mesa dele, "e comam comigo, que o que aqui está é para partilhar - a gente não leva nada desta vida, para além das tábuas do caixão". Brindou várias vezes. Com vodca, claro, e a obrigação de o beber de um trago.

(Coitada da minha vida interior: com tanta desinfecção, desconfio que as bactérias das minhas vias digestivas se estão a sentir bastante combalidas.)












05 abril 2015

domingo de Páscoa no mosteiro de Geghard

Mais um dos posts que escrevi há um ano, prometendo fotografias "quando chegasse a Berlim".
Bom, vai com um anito de atraso...

mosteiro de Geghard

Todos os posts sobre a Arménia merecem fotografias, e este mais ainda. O problema é que chego ao fim do dia demasiado cansada para passar a fotos para um computador emprestado e escolher algumas para o blogue. Não perdem pela demora: quando chegar a Berlim transformo este Conversa num blogue de fotografia.
O domingo de Páscoa em Geghard merece mais que fotos - de facto, merecia um filme. É ao que andamos - e não perdem pela demora.
Geghard foi um dos primeiros mosteiros arménios, criado no séc. IV, num lugar de ritos pagãos tão poderosos que ainda hoje perduram. Apesar dos avisos da Igreja, há junto ao mosteiro alguns arbustos cheios de tiras de pano e lenços que as pessoas atam na esperança de verem um pedido atendido. Também atei um lenço, à maneira de quem atira moedas para um chafariz turístico. Mas dentro da igreja acendi velas sentidas, como se o cristianismo arménio - tão  mais antigo que o meu - fosse capaz de levar mais longe o meu apelo para o infinito. Tinha três velas, e quis rezar pela família do nosso guia, o Gor, que por estes dias vai ser pai. Uma vela para a sua mulher, uma para o bebé que vai nascer, e a terceira... hesitei um pouco, mas as coisas são como são: a terceira foi para o médico que vai acompanhar o parto. Que São Gregório o ilumine para que tudo corra o melhor possível.

Celebrar a Páscoa entre aquelas paredes milenárias, com ritos que, por menos conhecidos, me tocam como a descoberta de terra nova, sublinhados pelos antiquíssimos cânticos litúrgicos arménios - não é possível exceder o fascínio deste momento.

E no entanto... parece que na Arménia é sempre possível ir um pouco mais longe: daí a nada dou comigo numa capela mais antiga - uma sala escavada no coração da rocha, com impressionante acústica - e no meio há uma mulher que canta melodias de fora do tempo e do mundo.