09 junho 2011

fazendo a minha História

Ainda outro dia estávamos cheios de medo do bug do milénio, e já passou a primeira década do século. Olhando para trás, vejo momentos memoráveis: o dia em que o Matthias se riu pela primeira vez de uma anedota - uma gargalhada aberta de neurónios; o musical que nos revelou a voz da Christina; o sol de Arches National Park a nascer na nossa tenda, a desaparecer por trás do Delicate Arch; o 11 de Setembro em San Francisco: a notável reacção da escola dos miúdos, a oração dessa tarde na paróquia universitária, com o Evangelho lido por estudantes árabes, a oração ecuménica em frente ao City Hall perante uma multidão de pessoas de todas as confissões unidas num mesmo desejo de Paz; o encontro com sobreviventes de Buchenwald. Entre tantos outros momentos especiais.

De todas essas horas de vigília ergue-se uma, a mais solitária, que - como no poema de Rilke - sorrindo diferente das suas irmãs se oferece silenciosamente ao eterno.

Aconteceu durante as comemorações da libertação de Buchenwald, de que falei ontem. Pediram-me para acompanhar um sobrevivente judeu numa visita à cidade. Um homem que, tendo apenas quinze anos no fim da guerra, fora testemunha de Auschwitz e sofrera os terríveis transportes. Íamos passeando, e ele entretecia a sua própria história no que víamos: se a guia mostrava uma praça, ele lembrava-se de a ter visitado com os outros miúdos do campo após a libertação; se ela falava da passagem de Wagner pela cidade, ele contava o momento mágico em que o Navio Fantasma ecoou entre as barracas. Falámos das comemorações, e ele criticava: o ambiente de feira, os sobreviventes usados como decoração. Que teria sido muito mais digno se tivessem repetido a formatura na parada do campo, em memória desse momento solene após a libertação, quando se alinharam voluntariamente uma última vez para cantar o hino dos prisioneiros. Eu ouvia-o, com uma pena imensa por sentir que se desperdiçara uma oportunidade única. E então começou a cantar:

O Buchenwald, ich kann dich nicht vergessen,
weil du mein Schicksal bist.
Wer dich verließ, der kann es erst ermessen.
wie wundervoll die Freiheit ist!

(Oh Buchenwald, não posso esquecer-te,
porque és a minha sina.
Só quem te abandonou pode realmente saber
como é maravilhosa a liberdade!)

(melodia)

De todas as horas da última década, é esta o meu solitário: algum dia esquecerei a súbita frescura da sua voz, a melodia, a comoção com que entoava "liberdade"?

***

Anos mais tarde, Anne Sofie von Otter fez um CD com músicas de Theresienstadt. Canta muito bem, mas não é a mesma coisa. Não é a mesma coisa.

8 comentários:

SofiAlgarvia disse...

Helena: Bolas! Estou pr'áqui a conter as lágrimas...
Ouvir essa melodia, cantada por quem a "viveu" deve ser um momento tão forte, como um suspiro de fim de vida, de fim de ciclo...

Helena Araújo disse...

Foi muito forte, mesmo, Sofia.
Inesquecível.

sem-se-ver disse...

a melodia é lindíssima (e tão alemã...), a letra poderosa. mas tem mais versos, certo? acompanhando a musica com ela, faltaram-me uns tantos, mesmo repetindo a quadra ou só 2 versos dela.

(um beijo para a christina, tinha-me passado esse post sobre ela :) parabéns!)

Helena Araújo disse...

sem-se-ver,
sim, é muito mais que isso.

A canção foi feita por dois prisioneiros austríacos, Fritz Löhner-Beda (escritor judeu assassinado em 1942 em Auschwitz) (http://en.wikipedia.org/wiki/Fritz_L%C3%B6hner-Beda) e Hermann Leopoldi (judeu, compositor, cabaretista e humorista - teve mais sorte: conseguiu ser "comprado" de Buchenwald, pela mulher que entretanto tinha fugido para os EUA). Olha aqui um exemplo da sua música: http://www.youtube.com/watch?v=g_rZhF4JPpQ


A letra completa:
(vê este link: http://claude.torres1.perso.sfr.fr/GhettosCamps/Camps/LeopoldiBuchenwaldLied.html)


Wenn der Tag erwacht, eh´ die Sonne lacht,
Die Kolonnen ziehn zu des Tages Mühn
Hinein in den grauenden Morgen.
Und der Wald ist schwarz und der Himmel rot,
Und wir tragen im Brotsack ein Stückchen Brot
Und im Herzen, im Herzen die Sorgen.

O Buchenwald, ich kann dich nicht vergessen,
Weil du mein Schicksal bist.
Wer dich verließ, der kann es erst ermessen
Wie wundervoll die Freiheit ist!
O Buchenwald, wir jammern nicht und klagen,
Und was auch unsere Zukunft sei -
Wir wollen trotzdem "ja" zum Leben sagen,
Denn einmal kommt der Tag -
Dann sind wir frei!

Unser Blut ist heiß und das Mädel fern,
Und der Wind singt leis, und ich hab sie so gern,
Wenn treu, wenn treu sie mir bliebe!
Die Steine sind hart, aber fest unser Schritt,
Und wir tragen die Picken und Spaten mit
Und im Herzen, im Herzen die Liebe!

O Buchenwald ...

Die Nacht ist so kurz und der Tag so lang,
Doch ein Lied erklingt, das die Heimat sang,
Wir lassen den Mut uns nicht rauben!
Halte Schritt, Kamerad, und verlier nicht den Mut,
Denn wir tragen den Willen zum Leben im Blut
Und im Herzen, im Herzen den Glauben!

O Buchenwald ...

Helena Araújo disse...

E obrigada pela parte que diz respeito à Christina!

sem-se-ver disse...

e pronto, tu a trautear joao gilberto, e eu o buchenwald, cantado com muita convicçao sem perceber a letra!! :D

(que hino bonito, caramba)

sem-se-ver disse...

para acrescentar ao assunto:

http://holocaustmusic.ort.org/places/camps/central-europe/buchenwald/buchenwaldlied/

(arrepia)

Helena Araújo disse...

As coisas que tu encontras!
Obrigada. Apesar do arrepio, muito obrigada.