24 maio 2006

incompletudes 3

Há dias assim: a autora do Contemplamento começou por reagir ao meu post "incompletudes", depois foi-se informar, reflectiu, a regressou com uma opinião mais fundada - não que seja igual à minha, mas é fruto de um trabalho honesto de pesquisa e interrogação. Se alguém achar que os blogs não servem para nada, venha cá ver este caso.
E eu fico com vontade de desligar o cérebro, e deixar que a Abrunho pense por mim e me indique o caminho.

Pelo que me apercebi, a discussão anda no Contemplamento ( I, II, III ), no Pontos de Vista, no Prozacland, e por aqui ( I, II).

E continua:

Abrunho,
Agora é a minha vez de reagir, confessando que o modo como falas dos técnicos, feitos agentes centrais da decisão, me provoca algum desconforto.
É sempre terrível invadir o campo da liberdade de uma pessoa concreta - que técnico teria a coragem e a maturidade para o fazer? Eles são apenas pessoas, como nós todos. Há sempre o risco de o médico se tornar um "cúmplice" dos futuros pais, e perder o distanciamento necessário. E os psicólogos? Não temos tantos exemplos de erros de avaliação com consequências trágicas? Por outro lado, tanto quanto sei, o papel do técnico seria colocar as questões que ajudem os futuros pais a ver as suas múltiplas ansiedades com mais clareza.
Contudo (!!!), se a opção é entre negar essa possibilidade a todas as pessoas que sofrem de infertilidade, ou aceitar que em determinados casos, avalizados por um técnico, se poderia considerar a PMA... vou pela segunda, claro.
A minha questão, como a tua, parece-me, não é negar à partida a possibilidade da PMA, mas definir os critérios para participação de terceiros numa gestação, protegendo antes de mais os direitos da pessoa que vai nascer. É fundamental que haja, como dizes, um projecto parental com potencial para formar uma criança saudável, feliz (depois podemos discutir o que é isto, que tem pano para muitas zangas).

Ao comparares este processo com uma adopção, abriste uma pista que me parece importante: nos dois casos, o binómio pais/filho é quebrado por um agente mediador, usando critérios semelhantes de "triagem".
Com uma ressalva: no caso da adopção, trata-se de remediar um mal que já é um facto (as condições precárias em que cresce uma criança concreta), enquanto que no caso da PMA essa vida não ocorre se não houver intervenção do agente mediador - e aí, não é eticamente defensável que terceiros (o Estado) participem na geração de uma pessoa, se sabem de antemão que vai crescer em condições precárias e causadoras de infelicidade.
Bem sei que a felicidade de uma criança não pode ser garantida à priori por nada, como o CA comentou num post teu. Concordo. Em compensação, há muitas maneiras conhecidas de lhe garantir a priori a infelicidade. E essas devem ser evitadas.

Tenho andado este tempo todo a evitar falar sobre os custos. Sei que os tratamentos são muito caros, mas isso não devia ser a questão central.
No entanto, há que lembrar que a sociedade é obrigada a fazer opções quando os meios financeiros disponíveis não chegam para todas as necessidades. Ou seja: sempre.
Por exemplo, se em Portugal há mulheres (com uma família "normal", seja lá o que isto quer dizer) que abortam porque não têm como sustentar mais um filho, que sentido faz deslocar os escassos recursos financeiros para ajudar outra mulher a ter um filho em condições que, sabe-se à partida, serão provavelmente fonte de muito sofrimento psicológico? (estou a falar da mulher sem relação estável e que exige um dador anónimo)
E numa perspectiva mais alargada: ao criar fundos para a pesquisa e a prática da PMA, deslocando-os da pesquisa de outras doenças, está-se a atribuir valores diferentes às pessoas. Aliás: não é por acaso que há mais meios para pesquisa e tratamento na área das doenças dos continentes ricos que na das doenças catastróficas que alastram em África.
Quais são os critérios dos gabinetes governamentais e das empresas farmacêuticas para decidir que salvar a vida de muitos africanos é menos importante que satisfazer os desejos de procriação de alguns europeus ou americanos?
Enfim, este argumento vale o que vale. Quantos africanos se podiam salvar se os membros do governo andassem de Fiat 127...

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