O espaço do blog é muito traiçoeiro.
Ao permitir escrever e gravar mais depressa que o pensamento, acaba por apresentar posts com ideias mal explicadas.
Peço desculpa aos leitores e reactores pela desnecessária agitação de neurónios e nervos, e faço aqui algumas adendas - a ver se nos entendemos melhor!
Começo por esclarecer que os dois posts que escrevi sobre este assunto foram influenciados por posts no Da Literatura, de que destaco:
- Uma pergunta de Eduardo Pitta: "E as mulheres sós? As que estão sós por opção, as que enviuvaram cedo, as que mandaram o marido às urtigas."
- Uma exigência, na carta para a Assembleia da República, de que "Todos os casais e todas as mulheres inférteis devem ter acesso às técnicas de Procriação Medicamente Assistida"
e que, associados, suscitam uma questão importante:
Há que perguntar se a renúncia ao outro no acto procriativo e como co-responsável na educação de um filho é um direito da mulher ou a expressão de um solipsismo crescente a evitar.
(texto completo aqui)
Para evitar o risco deste egoísmo que vitimiza a criança - os tais pruridos éticos - optei por uma provocação ...que me saiu pela culatra!
Retiro essa provocação, e reformulo a frase:
Uma criança que vai ser gerada por fecundação artificial
- tem o direito a um pai e uma mãe, co-responsáveis pela sua educação e pela envolvente parental sócio-afectiva
- tem o direito a conhecer a identidade dos seus progenitores biológicos.
E é melhor nem começar a falar em toda uma série de riscos na fecundação artificial
(agora misturo tudo: um casal ou uma mulher só, com um ou vários progenitores biológicos diferentes dos pais sócio-afectivos), tais como:
- a imposição de distância e anonimidade ao progenitor biológico (pode parecer fácil no caso do pai; mas que dizer de impor uma separação definitiva, por motivos contratuais, à "mãe hospedeira" que durante a gravidez criou uma relação intensa com a criança?)
- por falha dos serviços médicos, a criança gerada não corresponde à "encomenda" ("raça" ou sexo, por exemplo);
- a criança nasce com deficiência (se não me engano, já houve um caso de isso acontecer a uma criança que cresceu num útero emprestado, e que foi rejeitada pelos "futuros" pais)
- o pai não biológico vive em situação de sofrimento por ser estéril e saber que aquela criança não é biologicamente sua filha (não estou a inventar nada)
- o processo de fecundação artificial esgota e frustra o casal de tal modo (não estou a inventar nada), que a criança acaba por nascer num lar já muito desgastado.
***
Alguns desenvolvimentos, para quem tiver interesse e paciência:
Jurídico
- este artigo, sobre o direito à identidade genética.
Psicológico
Muitos psicólogos chamam a atenção para os riscos de mentir sobre as circunstâncias do nascimento, ou de ocultar a identidade do progenitor biológico.
A Psicologia também refere a importância fundamental de haver dois "actores" na vida da criança: para além riqueza de referências e modelos, a existência de um pai relativiza o poder da mãe, e vice-versa.
Não se trata, obviamente, de fazer juízos de valor sobre a qualidade das famílias monoparentais que surgem por força das circunstâncias, mas da sua desejabilidade, do ponto de vista do interesse da criança.
De um relatório americano sobre implicações sociais e psicológicas desta prática:
Issues for the Child
"Is the desire to have a child at whatever price more important than the self-esteem of the person you create?"
(New York Times Magazine, July 20, 1980, p 14).
It was largely through the efforts of adult adoptees that the various professionals and the public were made aware that this group had been denied certain basic rights and had been reduced to an inferior status by virtue of the secrecies involved in most of the adoption processes. Now we are seeing the same sort of situation arise in the case of AID and surrogate births, only the problem is even more complex.
"They need never know," one might say. But they frequently do find out in spite of the best attempts at secrecy. When they do find out they feel cheated and betrayed. And when they then try to find out the true story of their birth they often embark on a path marked by frustration and many unanswerable questions. The effect on the personality and behavior of an AID or surrogate child can be profound and lifelong.
We do not mean to imply that knowing the facts relating to the birth will insure a normal emotional development. Quite the contrary. Persons conceived by these means will always have some problems of adjustment and acceptance of their status but we do feel that they are better off knowing the truth from the outset.
Psicanalítica
Cada vez mais a procriação deixa de ser tratada como uma problemática simbólica, ficando reduzida à esperança de que se possa conquistar a reprodução sem sexualidade (SZAPIRO, 2002). As discussões sobre a clonagem falam desde um imaginário em que a questão do sujeito passa a adquirir um sentido absolutamente diverso daquele de um sujeito da intersubjetividade, nascido do encontro dos corpos de um homem e de uma mulher. Mas que lugar seria este fora da História, cabe-nos perguntar?
(...)
Em “Construções do feminino: um estudo sobre a ‘produção independente’ dos anos sessenta” (SZAPIRO, 1998), examinei, como mencionei anteriormente, a maternidade de “produção independente”, compreendendo-a como resultado da inflexão do paradigma individualista no discurso feminista. Este paradigma, aprofundando o modelo de um indivíduo universal, sugere uma igualdade entre homens e mulheres, na dimensão de uma autonomia jurídica (SIMMEL, 1971) que sugere um apagamento da diferença sexual do ponto de vista simbólico e induz, assim, à reprodução do “mesmo”.
Impõe-se aqui uma interrogação: como, a partir do pensamento binário, pode ser ainda possível pensarmos a questão da transmissão e o lugar da filiação? Como articular a problemática da transmissão nas novas concepções de família contemporânea?
(texto completo aqui)
Alguns testemunhos de pessoas nascidas nessas condições:
Margaret Brown:
"Tenho um sonho recorrente: me vejo flutuando no meio da escuridão enquanto giro cada vez mais rápido em uma região sem nome, fora do tempo, quase não terrenal. Fico angustiada e quero pôr os pés no chão. Mas não há nada sobre o que plantar os pés. Este é meu pesadelo: sou uma pessoa gerada por inseminação artificial com esperma de doador e nunca conhecerei metade de minha identidade. (...) Sinto raiva e confusão e me vem milhares de perguntas: De quem são os olhos que tenho? Quem pôs na cabeça de minha família a idéia de que minhas raízes biológicas não importavam? Não se pode negar a ninguém o direito de conhecer suas origens biológicas".
Texto tirado daqui. O artigo (Whose Eyes are These, Whose Nose?) foi publicado originalmente em 1994 na Newsweek magazine
Outros testemunhos (lista tirada daqui):
A Spermdonor Baby Grows Up - Suzanne Rubin (1983) Excerpt from “The Technological Woman.”
I Finally Figured it Out - Baran & Pannor (1989) Excerpt from the book “Lethal Secrets”
A Call for Openness in Donor Insemination - Candace Turner (1993) Politics & Life Sciences
Looking for a Donor to call Dad - Peggy Orenstein (1995) The New York Times magazine
Sperm Donors Missing in Action - Paula Goodyer (1996) Elle magazine
Issues for Donor Inseminated Offspring - Lauren Taylor (1996) Presented at the Donor Issues Forum in Sydney
I Don’t Know Who I Am - Nicole Robinson (1997) The Sun-Herald
Search for Donor Dad - Helen Carter (1998) Herald Sun
Where Did I Come From? - Kathy Evans (1999) Sunday Life
A Personal Story of Blood & Belonging - Janice Stevens Botsford (2000) DC Network News
Where’s My Father? - Martin Daly (2000) The Sunday Age
Donor Dads Step out of the Shadows - Geesche Jacobsen (2001) Sydney Morning Herald
Yule not regret Seeing Sons - Fiona Hudson (2001) Herald Sun.
Give Me My Own History - David Gollancz (2002) The Guardian
My Father? - Nina Burleigh (2002) The Redbook magazine
Who’s My Birth Father? - Susan McClelland (2002) MacLean’s magazine
Speaking for Ourselves (2003) - Quotes from men & women created by DI.
Finalmente, os pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
- nº 44, sobre procriação medicamente assistida (Julho 2004)
- Relatório-Parecer sobre reprodução medicamente assistida - 3/CNE/93
fazem uma análise bastante equilibrada deste tema.
***
E para o Miguel, uma explicação sobre egoísmo:
Penso que uma criança deve nascer da livre vontade e do amor de um homem e uma mulher, e que a articulação desses dois sujeitos é fundamental para o seu crescimento equilibrado e para o seu bem-estar.
Desconfio de uma mulher que decide ter um filho, mas de antemão lhe recusa um pai. Não se quererá sujeitar ao diálogo/confronto com o pai da criança? Quer um filho só dela, mesmo que isso possa provocar sofrimento à criança?
É a isso que chamo egoísmo.
E, como dizia a outra: "a reprodução medicamente assistida deverá limitar-se a ultrapassar obstáculos de ordem biológica ou psicológica na capacidade procriativa de alguns casais ou destinar-se-á a satisfazer todos os desejos que o ser humano for capaz de se pôr a si mesmo?"
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PS (só para o Miguel): deves-me cinco caixotes!
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