24 maio 2006

incompletudes 4 - ou: o que é possível para uns, é desejável para todos?

Numa sociedade, nem tudo o que é considerado incorrecto é matéria de direito penal; nem tudo o que não é matéria de direito penal se transforma automaticamente num direito que tem de ser garantido e suportado financeiramente pela sociedade.

No limite, o raciocínio "se os outros fazem, eu também posso" leva ao fim da civilização: em vez de nos entendermos ao nível ético, passa a ser legítimo tudo aquilo que tiver algum precedente.
Penso que não é por aí.

Aceito que a vida não é perfeita - em sociedade nenhuma, em família nenhuma. E que as escolhas pessoais ocorrem dentro de um espaço de liberdade onde muitas vezes a carência prega rasteiras à consciência e ao mais elementar bom-senso.
Vivendo num contexto de imperfeição pessoal e social, cabe-nos escolher entre procurar um caminho ético que nos humanize (e é sempre uma busca, nunca um ponto de chegada), ou nivelar por baixo.
No caso concreto da fecundidade, o caminho passaria mais pela educação de todos para uma sexualidade responsável e para a tomada de consciência do imenso respeito que um filho merece. Apostar na consciência, e não no controle. E muito menos no "vale tudo".

O facto de haver mulheres que resolvem engravidar de um desconhecido não torna essa prática desejável ou eticamente aceitável - e muito menos obriga a Ciência e o Estado a oferecer a mesma possibilidade a mulheres que sofrem de esterilidade.
Contudo, se aceitássemos essa hipótese, qual seria a percentagem de casos precedentes necessária para haver quorum de mudança?
- bastaria haver a possibilidade de engravidar num one-night-stand para que o Estado fosse obrigado a pagar um tratamento de fertilidade a qualquer mulher single que é estéril, em nome da igualdade de oportunidades?
- ou seria preciso que, digamos, 10% das mulheres férteis tivessem uma criança de pai incógnito para isso se tornar um direito também das mulheres estéreis na nossa sociedade? Ou 5%? Ou 20%?

A propósito do argumento "se não penaliza umas, não pode penalizar as outras": quem disse que a sociedade não penaliza uma mulher que decide ter um filho de um homem que nem conhece e sonega ao filho a referência paterna? Não vai para a cadeia, isso não, mas será penalizada à mesma. O diagnóstico irá do maluca até ao puta irresponsável, passando pela fúria uterina. O choque, o escândalo, a incredulidade, a desconfiança, os murmúrios pelas costas, as críticas pela frente, as bocas de tangente. Os comentários e as perguntas da família, dos amigos, dos inimigos, dos conhecidos e desconhecidos. "Faz xixi na cama? Não admira, com aquela mãe...", "Faz birras? Pois, coitadinho, sente a falta do pai".
E depois a criança cresce e começa a fazer perguntas no infantário, na escola, no psicólogo - e toda essa gente pressiona a mãe, interroga, invade, acusa.

E já que estou a falar em penalizações: do que conheço nos quadros legislativos americano e alemão, nos casos de concepção pelos métodos tradicionais, os pais biológicos têm cada vez mais direitos/responsabilidades em relação à criança. Conheço mulheres que fazem os possíveis para expulsarem o pai da vida do seu filho, mas são obrigadas a conviver com esse "castigo".
Parece ser esse o entendimento geral: conta mais que a criança tenha acesso ao pai que o desejo da mãe se ver livre daquele homem que a incomoda.
De modo que este conselho de avó está cada vez mais actual: nunca durmas com um gajo que não consigas imaginar como pai de um filho teu.
E - não querem ver que afinal vou concordar com o CA?!... - se vale para as mulheres férteis, também tem de valer para as inférteis. Nunca aceites esperma de um gajo que não consigas imaginar como pai de um filho teu...


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Aviso à navegação: amanhã é feriado, depois de amanhã é ponte. Deixei os célebres caixotes de lado, estou a fazer as malas. Volto na segunda.

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